vem


Era meia noite e ela tinha acabado de tomar seu Banho Complicado. Ela dividia os banhos em Banho de Higiene, Banho Especial e Banho Complicado. O de higiene era aquele matinal, rápido, o corpo ainda pedindo sono. O que os grã finos chamam de chuveirada. Chuveirada... que palavra mais boba. O Banho Especial era aquele para onde ela se dirigia com a sua cestinha contendo esponjas, lixas para o pé, escovinhas, pedra pomes. O banho esfregão. E o Banco Complicado era quando além de tudo isso, ela lavava os cabelos. Imensos, uma complicação. Tinha sido difícil conseguir com as outras o tempo necessário, mas como ela era discreta, educada, cordata, apaziguadora, no final todas acabaram gostando dela, e até defendiam seus horários, ó, já espantei a fulana daqui, hoje é dia do seu banho de cabelão. Era como elas chamavam o seu Banho Complicado. Em outros tempos o banho complicado também comportava cremes com grânulos especiais para esfoliação e limpeza de pele do rosto e pés, mas isso foi em outro tempo.



Eu trouxe glicerina, era a prima, a única amiga que ficou do seu lado. Você faz uma mistura de glicerina e açúcar, e funciona do mesmo jeito. E de jeito em jeito as coisas foram tomando jeito.



Mas ela estava então, de Banho Complicado tomado, seu avolumado cabelão úmido às costas, molhando a camiseta que ela trazia por cima da calcinha, e só. Ela tinha exatamente seis horas para desmontar sua casa, seis horas não: cinco horas e cinquenta e cinco minutos, porque queria estar sentada e pronta quando a viessem chamar.



Começou dobrando as toalhas de crochê. Noventa e três. Três toalhas diferentes todo dia. Uma, tipo um xale, ficava estendida atravessada sobre a cama. Outra, um caminho retangular com borlas arredondadas, sobre a única cadeira. E a redonda, sobre uns caixotes que comportavam seus pertences, por sobre o qual havia uma tábua, e sobre ela, seus poucos produtos de toalete, a saber: Água de Colônia, Creme Nívea, Óleo de Amêndoas Doces da Leclerc, sempre da Leclerc. Algodão, acetona e colírio, que com o tempo passou a ser chá de camomila. É tão bom ou melhor que colírio disse a prima, você não deixe de usar, faça compressas, tua vista poderá até melhorar.



Numa caixinha de sapatos, uma infinidade de esmaltes, mas eram esmaltes itinerantes. Havia muita troca de esmaltes por lá, e a prima sempre trazia mais, porque tinha um salão de beleza. Vou levar esse, posso? Era uma colega. Não precisa pedir, dizia ela, são nossos. Essa frase são nossos, é uma frase perigosa de ser usada entre pessoas com pouca ou nenhuma consciência, mas ela sabia e não ligava. Muito esmalte não voltava jamais, ou voltava trazendo só um restinho duro no fundo do vidro, e elas nem se desculpavam.



Sem problemas, ela pensava. Já perdi coisas muito mais importantes nesta vida do que esmaltes.



Completando sua parafernália cosmética, uma caixinha jogo de sombras, pó compacto, blush, delineador, lápis e rímel, que a prima também renovava de tempos em tempos. E num copinho pentes, escova de dentes, essas tralhas. Seus cabelos eram tão complicados que ela só os penteava de tempos em tempos, com a ajuda da Cássia.



No começo as moças achavam graça daquela colega que chegava todas as manhãs na oficina de costura completamente maquilada, as unhas perfeitas, as sobrancelhas acertadinhas, pra quê isso? Nem homem temos aqui, além da Cássia... Cássia se chamava Rosicleide, e era o homem da turma, tatuadíssima, invocadíssima, boca sujíssima mas com ela, super gente fina, ei, deixem a mina em paz, a cara é dela, ela pinta como quiser.



O que ela não dizia para as colegas é que ela tinha fome de cor. Daí as toalhas de crochê, multicoloridas, a prima trazia os fios. Os esmaltes, ela chegava ao cúmulo de usar cores diferentes nas dez unhas. A maquilagem fortíssima sobre os olhos. Cor. Meu Deus, cor. Muito mais do que chocolate, muito mais do que uma lazanha ou uma pizza ou até mesmo sexo – cor!



Esses poucos pertences de toalete, mais o sabonete, a pasta, o xampu, o creme rinse e os cremes que a prima fazia por ficarem mais baratos, constituíam a soma de todos os seus pertences, mas para ela eram objetos de muita distração. Tirar lentamente as sobrancelhas. Ajeitar caprichosamente as unhas, e sem usar ferramentas. Só com o pauzinho de laranjeira, a espátula, e sempre que estava à toa esfregava nas unhas um algodão embebido em óleo, e as cutículas da mãos e dos pés foram ficando finíssimas. Levando horas penteando o cabelão, passando óleo de amêndoas, que antes esfregava nas palmas das mãos...



De vez em quando descia para assistir televisão, mas isso mais para garantir sua sociabilidade, porque os olhos ficavam na tevê, mas a mente ficava em off. Invariavelmente pensava nele, como ele estará, o que estará fazendo? E só de saber que ele estava bem, já a tranqüilizava muito.



Uma dia a prima trouxe duas imensas caixas de plástico com tampas. São caixas box, estão a venda aos montes por aí, pensei em você. Então as caixas substituíram os caixotes, e a prima conseguiu uma madeira compensada, mais leve, para substituir aquela feia tábua, e trouxe um espelho maior, com suporte. E trouxe também um painel para colocar fotos com ímas. Trouxe os ímas. E as fotos. Da mãe. Do Pai. De todos. Pena que não tinha nenhuma foto dele, ele ela só trazia nas retinas, e como tinha medo de esquecer, todo dia, ao acordar, após o sinal da cruz e do padre nosso, olhava mentalmente para o rosto dele, e sorria, e só então saia da cama.



Tudo isso ela lembrava enquanto ia retirando as fotos do painel, ajuntando seus poucos pertences.



A prima, que também era muito pobre, como ela, por uma combinação das duas, começou a trazer, de longe em longe, pacotinhos com Coisas Especiais. Que ela nem abria, porque sabia o que continham. Os pacotinhos iam sendo guardados na Bolsa Especial, uma sacola de lona cor de rosa, mas que não ficava com ela e sim com a Cássia, que defendia essas coisas com a própria vida, ai de quem chegar perto das coisas da minha amiga! E todas sabiam que a Cássia falava a verdade.



De tempos em tempos a Bolsa Especial ia ganhando pacotinhos com as Coisas Especiais.



Então ela dobrou as toalhas e as deixou num canto, não precisaria mais delas, escolheu apenas duas, uma verde e uma azul. Com os livros fez o mesmo, ela tinha uma regra – livro lido, livro descartado, ora, se eu já me alimentei deles. E os passava para outras pessoas, mas por ali ninguém gostava muito de ler. Mesmo assim os deixou, uma pequena pilha. E os esmaltes, e a maquilagem, são cores, mas ao mesmo tempo são sombras, pensou, não, não irão comigo. E toda a tralha. Deixaria tudo para a Cássia. Pensando bem, tudo não, as toalhas de crochê distribuiria entre as meninas.



Uma leve batidinha na porta, era justamente a Cássia, que silenciosa, pousou a Bolsa Especial sobre a cama, e as duas trocaram um demorado abraço. E os rostos das duas foram se aproximando, se aproximando, e ela entendeu que Cássia, pela primeira vez, cobrava o preço da proteção que lhe dera esses meses todos. Começou com um beijo. Que ela devolveu, com ternura e emoção. Um beijo delicioso, por sinal, que nunca tinha recebido de homem algum. E após algum tempo, e sem dizer nada, Cássia se foi.



A prima, caprichosa como sempre fora, etiquetou os pacotinhos por ordem numérica, que ela foi abrindo na sequência.  Pacote número um: um creme cheiroso da Avon. Pacote número dois: um par de meias soquete da Betty Boop. E assim foi. Um conjuntinho de calcinhas e sutiã de oncinha, que lindinho, que mimoso, alcinhas pretas, babadinhos pretos, ela quase chorou.  Demorou um tempão para vestir, só olhando. Uma calça Sawary, olha como ficou justinha, que linda. Uma camiseta Zahra, preta, também coladinha. All Star xadrezinho lilás, ai meu Deus, que mimo. Um colar de várias voltas de correntes fininhas tipo imitação de cobre, que ela na certa teria comprado muito baratinho na Porto Geral. E um lenço que dizia ela todo mundo estava usando, de algodão, axadrezado, com franjas brancas. Azulado Metálico. Muito bonito, você enrola como quiser no pescoço, ou deixa solto como um xale, pode até usar como um babador por sobre o peito, de qualquer maneira vai ficar bonito. Estava escrito no papelzinho, colado com durex. E várias pulseirinhas de cristal, que ela entendeu que deveria usar uma ou duas, e distribuir as outras para as moças.



Levaria ou não a bíblia? A Bíblia na Linguagem de Hoje, oferecida por uma mulher muito simpática chamada Osana, filha, Deus nos leva ao deserto para nos tratar. Você está tratando muito bem da sua aparência, mas pense no seu interior. O primeiro passo é o perdão. Você precisa perdoar.



Perdoar.



Perdoar os que a deixaram ali, trancafiada como o bule de chá verde da vovó.



Todos se safaram. Para fora do país, para suas casas de campo, suas elegantes coberturas, para suas vidas respeitáveis, e foi só ela, a tonta, a bobona, a sozinhona, a sem noçãozona, a que ficou com a carta mico na mão sem nenhuma explicação e sem um tostão para contratar advogado. A que ganhou um par de algemas e esta cela, por dois longos anos, e isso graças a sua vida pregressa, pela graça de Deus possuía ficha limpa, limpíssima. Senão seriam quatro, disse a juíza. Até carteira assinada ela tinha. Tinha, era a palavra certa. Perdeu o emprego. A liberdade. A honra. A cidadania. Os amigos.  Perdeu a saúde. O sono. Perdeu, perdeu, perdeu.



Ficava horas, à noite, pensando em como todos estariam rindo dela. E esmurrava o travesseiro, e gritava, cara enfiada no travesseiro, ei! menos! Era a Cássia. Que trazia um chá, oferecia um cigarro. Ela nunca fumou, imagina, já não tenho dentes bonitos, só o que me faltava era complicar meus dentes também.



Quando recebeu a única carta dele, em resposta a que tinha escrito narrando sua rotina, ele dissera: todos esses cuidados que você está mantendo com seu corpo, sua saúde, sua aparência, para mim significam só uma coisa – que você ainda não perdeu a esperança. Falava outras coisas mais, muito bonitas, ela decorou tudo. E bem no pé da carta, disfarçado num desenhinho, a mensagem codificada: vou arrumar comprimidos.



A prima trouxe. Se os comprimidos chegassem no dia seguinte já a encontrariam morta, ela teria cortado os pulsos nem que fosse com os dentes. Mas aqueles abençoados remédios a fizeram aguentar. A Cássia também os guardava, e cuidadosa como uma mãe, evitava que ela os tomasse demais.



Ele não mandou mais cartas, mas os comprimidos chegavam pontualmente, e ela se sentia protegida, acompanhada e abençoada por ele, e não sentia falta de correspondência. Adivinhava suas palavras por detrás dos remédios, o conhecia tão bem que sabia quais seriam suas palavras. Sabia que ele chorava por ela. E isso bastava.



Finalmente, um último pacote – para ser aberto lá fora. Grande. Fofão. O que seria?



Resolveu que levaria a bíblia, que leu de ponta a ponta cinco vezes.  No começo criou Deus os céus e a terra. A terra era vazia, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus se movia por cima da água. Então disse Deus: - Que haja luz! E a luz começou a existir!



Achou tão linda aquela poesia, que a decorou, e passou a ser sua oração matinal no lugar do padre nosso. Todas as manhãs, enfatizando – o Espírito de Deus se movia por cima das águas. E sempre que sentia à sua volta uma enorme escuridão, tão grande, tão real e compacta, que já nem era mais escuridão, porque era visível, brilhante e clara, ela pensava no Espírito de Deus, que por certo estaria ali também.



Cinco para as seis, e ela estava, como queria, pronta, sentada na cama. Pontualmente as seis vieram buscá-la. Ela segurava nas mãos a escova de dentes já com a pasta. Tomou o seu último café da manhã lá dentro. Escovou os dentes, jogou fora a escova, e foi ao pequeno escritório acertar sua vida civil. Seus papéis. Seus documentos. Sua aliança de ouro, pode ficar para você, posso? E os olhos da Agente brilharam de contentamento. E distribuiu as pulseirinhas de cristal. E a Bárbara da Oficina lhe deu um presente em nome de todas, não tivemos tempo de embrulhar, era uma almofada coração fofona, pink-love, Deus, como ela tinha desejado uma. Chorou. Abraçou todas. Caminhou carregando sua Bolsa Especial com as pouquíssimas coisas que levava, mais a almofada, seguindo a Agente. E aquele enorme portão de duas folhas foi aberto para ela, o mesmo que lhe causara o maior aperto no coração de sua vida, no dia em que por ele adentrou, no bonde, algemada: Penitenciária Feminina da Capital, a famosa PFC. A Agente lhe deu dois passes de metrô, e adeus, boa sorte, filha.



Leva um tempo para quem sai da prisão se reorientar, mesmo nascida na capital, onde estava? E a cabeça parecia que ia girando como o disco rígido de um computador velho, até que ah, sim, ali é a Cruzeiro do Sul, aqui é a Zaki Narchi, ali a Doutor Zuquim. Ali fica o metrô, aqui perto a rodoviária.



A rodoviária...



Bem que disseram que aqui agora havia um parque. Onde há parques há bancos, e ela precisava sentar. Para abrir o último Pacote Especial. O que seria?



Colado, um cartão. Não era um cartão de loja, era um cartão feito por ele, um cartão cheio de gatinhos, mas tão cheio de gatinhos, que ela demorou para entender que eram gatinhos, porque estavam todos apertadinhos uns contra os outros, aquela profusão de bigodes patas e rabos.  Que coisa mais lindinha, não precisava nenhum outro presente. Mas havia. Ao desembrulhar, seu coração quase pulou para fora, de emoção. Era uma bolsa do ursinho Puff. Pooh, como se dizia. Em couro rosa, como ela queria.  E cheia de chaveirinhos e penduricalhos coloridos, ele entendia sua fome de cor e de beleza. E dentro da bolsa, ah... dentro da bolsa.



Um gloss sabor cereja, da Natura, meu Deus, da Natura. Também da Natura um creme de mãos de ervas da Amazônia, e quase chorou ao sentir o cheiro maravilhoso. Um perfume Victoria’s  Secret. Pequeno, mas dos deuses. Uma caixinha espelho, dourada com desenhos de flores, que se abria em duas, ele sabia o quanto ela amava espelhos. Um baton Nude, da Vult. Só ele mesmo para entender que era a cor da moda. Uma caixinha estojo de sombras translúcidas, desses paraguaios, mas lindinho, cada cor num formato de coraçãozinho, novinho, cheiroso. Blush da Avon. Pó compacto Marcelo Beauty, cheiroso, pó cheiroso meu Deus. E um jogo de pincéis. Ah! E riu! Um pacotinho de absorventes diários, sem perfume, sem perfume, claro! Uma caixinha com chocolates da Cacau Show, e balas da Arcor. Um anel de fantasia com um lindo cristal vermelho, enorme, escandalosamente lindo. E as balas e os chocolates vinham envolvidos num escorregadio lenço azul celeste, azul celeste, meu Jesus!



E uma foto recente dele, acenando.



E um envelopinho com duzentos reais, acho que dá para comer um lanche na viagem não dá? Comer um lanche? Com duzentos reais ela sobrevivia quatro meses.



E uma passagem só de ida.



Uma passagem. Só de ida.



E uma chave.



E no cartão, dentro, estava escrito:



Vem. Olha, se disser que sei exatamente como te ajudar, estarei mentindo. Há muito a ser feito, você precisa retomar sua vida praticamente do zero. Não, não sei por onde começar a te ajudar. Talvez... talvez se você aprender uma profissão, você é inteligente, aprende, eu tenho alguns contatos, vamos ver, tem fé e vem.



Não sei ao certo por onde começar. Só sei que há um espaço aqui para você, para você refletir, e descansar, e repor suas forças. Depois, depois veremos. Deus nos ajudará.



Vem. A chave é para o caso de eu não estar, é que eu saio muito. Se eu não estiver você pode entrar. Deixei uma cama preparada para você, e toalhas, e lençóis, e travesseiros, e um espaço no guarda roupas para suas coisas. E comida na geladeira. Farei o possível para estar, mas se não estiver, volto logo. Vem.



Quatro vezes a palavra vem, era o próprio Espírito de Deus pairando sobre o abismo que tinha sido sua vida naqueles últimos dois anos. – Que haja luz!



O horário da passagem era para o meio dia, havia um relógio no parque, dez horas, a rodoviária era logo ali, havia tempo de sobra.



Sentindo-se muito bem com suas roupas novas, perfumada, carregando sua bonita bolsa rosa e sua enorme almofada coração pink-love, o Ursinho Puff  à tiracolo olhando para um potinho de mel e abelhas, ela passou baton sem olhar no espelho como fazia desde que se conhecia por gente, e enrolando o bonito lenço ao pescoço porque fazia frio, ela caminhou aprumada rumo ao início do resto de sua vida, só pensando na palavra mágica, chave, solução, divina, gênese da sua vida:



- Vem.