- No meu enterro eu quero que o povo cante as
“incelença”!
Era Severina, mãe de três filhos, o menor de oito, a
do meio com dez, o mais velho, doze. Ao seu lado o marido, assistindo ao
futebol, enquanto as crianças se distraiam ao computador, aquisição recente, e
para orgulho do pai, o Severino. Foi um casamento maduro, ela se casou aos trinta e cinco,
ele aos quarenta, o que não impediu a ela de dar ao marido três lindos
filhos, sua maior alegria, além da Severina, que era um mulherão da gota.
- Ôxe! Que conversa é essa mulé? Vixe! Era o marido.
O sotaque dele era de fato nordestino. O dela era
imitado. Explicamos: imitado, porque ela tinha vindo para a Capital na barriga
de Mainha, e ficou falando como eles
de ouvir a parentada. E fazia questão de conservar, para divertimento da
filharada que achava aquilo puro esnobismo da mãe.
- Ôxe! Se Caetano que é CAETÂNO, deixou Santo Amaro
da Purificação no século retrasado, e ainda fala com sutaque, porque é que eu
havera de não pudê? Me digue!
E tudo acabava em graça. Mas a do meio quis saber o
que era aquilo de incelença, e ia teclando na internet, quando o mais velho
interviu, não maninha, você precisa teclar da maneira correta:
E-x-c-e-l-ê-n-c-i-a!
- Pois tu tá errado, atalhou a mãe. Tu vai carregar
a página com um tantão de excelências, e não vai achar o costume do povo, que é
INCELENÇA mesmo.
Como é que a mãe entendia isso de internet? Até o marido
olhou meio desconfiado, mas foi de o mais velho teclar como a mãe disse e
aparecer: canções entoadas em velórios à beira do defunto, ainda em uso nas
regiões tal, tal e tal do país.
- Viste? Fez ela orgulhosa de seus saberes.
As crianças se interessaram: - conta mais, mãe. Por
mais que ela tentasse, eles não se acostumaram a chamá-la de Mainha, tão lindo
Mainha, tão doce o costume do meu povo... – Mãe, ouviu? Conta mais.
E ela, como se entendesse de um tudo que dissesse
respeito ao sertão, pôs-se a cantar uma incelença, que era uma monótona
cantilena do tipo: uma incelença, o corpo quer ir embora, duas incelença, o
corpo quer ir embora, ela não lembrava muito bem, quem tinha contado essa das
incelenças era a bisavó.
Afe mãe, fez uma careta o mais novo. Primeiro: Nunca que a
senhora vai morrer. Segundo: Nunca que a gente vai ficar nessa música triste a
noite inteira.
- Nisso tu tá mais é certo, fez a mãe, puxando de um
tantão a blusa e mostrando os peitos para o marido. Ela nunca se descuidava nem
um bocadinho, vai que uma sonsa aparece, eu heim? Era blusa decotada, mini
sainha, e de noite, calcinhas atrevidas. E o Severino babava de gosto. – Cantem,
continuou ela, mas só de um tantinho. Pra manter a tradição de nosso povo.
- Mas já vão anotando aí que eu vou deixar as
instruções do meu velório. E só por brincadeira a do meio abriu uma página do
bloco de notas e começou, fala aí mãe:
- Primeiro anotem os nãos: - Não botar em cima de
mim defunta aquele ridículo veuzinho roxo da prefeitura. Quero fúcsia.
- Fu o quê, fez o mais velho, já com cara de
malandro, e foi rápido pra escapar do tapão da mãe.
- Fúcsia é pink, seus burros, o que é que vocês
aprendem lá naquela escola, an?
- Ela está certa, disse o Severino, que tinha
algumas letras. Isso de usar palavra inglesa chama-se anglicismo.
- Êba, vou tirar um barato dos caras na lanchonete,
abaixo o hot dog, seus linguicistas! E escapou da tapona da irmã.
A do meio se irritava, vocês estão mudando o
assunto, mãe, manda aí o próximo não.
- Não quero choradeira em cima de mim. Até porque
algo me diz que eu vou morrer bem velhinha de algum acidente bem engraçado.
- Engraçado de que tipo, dá uma idéia, pediu o
menor. Mas ela não tinha nenhuma idéia. – Ah, será algo engraçado. Fulano vai
ligar pra Beltrano avisando que a Severina morreu, e quando Beltrano perguntar
de que, e Fulano responder, ficará uma vontade de rir no ar. Finalmente, no
velório, sempre aparecerá uma pessoa mais desbocada que vai escancarar a piada,
e todos vão rir à farta. Se eu vim ao mundo de um modo ridículo, é normal sair
dele assim também.
Todos já conheciam de cor e salteado a história. O voinho, que não entendia como
funcionavam as coisas na capital, vendo a mulher nos trabalhos de parto, a
internou no primeiro hospital que viu pela frente. Na hora de pagar, era muito
mais do que ele tinha trazido achando que com aquele tanto passaria o seu
primeiro ano. O diretor do hospital não quis saber de conversa: ou paga, ou
essa história acaba na delegacia de polícia. Depois amenizou: - tudo bem, a mãe
pode sair. Mas a criança fica. E foi assim que Severina nasceu. Afiançando a
dívida do pai. – já nasci afiançada, ela disse pela milionésima vez, puxando o
decote e patenteando um belo par de seios aprisionados por um sutiã preto com
babados e rendas vermelhas.
As crianças riam, embora ninguém tivesse muita
certeza de que a história era verdadeira; todos da família já tinham morrido,
mas na boca de Severina o que verdade era, verdade ficava, assim como seu
sotaque, que ela treinava era nas novelas da televisão. E com o marido, este
sim, um autêntico nordestino, e dos bons, e bota bom nisso, ela pensava, na
feira, quando encomendava, já chegou aquele conjuntinho de meia de renda com
lacinhos e corpete pretinho, já? O Severino só passava no bar pra molhar a
goela com um rabo de galo e rumava aprumado pra casa, vai que o Ricardão
descobre o caminho?
- Fala outro não, mainha, fez a do meio, sabendo que
a mãe adorava esse chamego.
- Chega de nãos, agora é só sim. Quero maquilagem,
quero ir com minha camisola vermelha bordada, camisola mãe? Que falta de
respeito, disse o mais velho.
- O defunto é meu, ela disse botando a mão no
decotaço! E todo mundo riu.
- Tá bom, camisola, que mais?
- Quero flores de crochê de seda, e não preciso nem
indicar quem faz, que todo mundo aqui já sabe.
Como não saber, se toda roupa de Mainha era bordada,
customizada, explicava a menina. Severina sempre achava que sua roupa precisava
de um brilho a mais, de um paetê a mais, de umas pérolas a mais, até nas
sapatilhas ela mandava colar enfeites e brilhozinhos.
- A Tiana! Responderam todos.
- Iiisso, fez a Mãe. Agora o detalhe, prestem muita
atenção: quero incenso, e dos bons, acentuou bem “ e dos bons” queimando o
tempo todo. E velas cor de rosa e perfumadas. E agora vem o mais importante, o
principal, a música, que vai tocar na repetença o tempo todo do meu velório.
Repetição, fez o marido. – Pois foi o que eu disse, abanou os peitos cheirosos
na cara do marido – repetição.
- Ué, o que houve com as incelenças, começou a gozar
o maridão, mas teve de fugir de um sopapo.
- Eu sei qual a música, minha flor do nordeste: -
Aceito Seu Coração, do segundo amor de sua vida, o Rei Roberto. Eles tinham
mandado tocar na hora do bolo, no casamento, bolo que ela não conseguiu nem
provar, de enjoada que estava da gravidez do mais velho.
- A nossa música, terminou o Severino, emocionado,
olho no decotão à sua espera, logo mais, na fofa cama do casal.
- Errou, disse ela. A música é Chiquitita, do Abba!
- Ham?! estranharam todos. Ninguém nunca ouviu falar
disso aí, tecla aí maninha. Achada a música, ouvida, traduzida pela ferramenta
de tradução, ninguém entendeu foi nada.
- Mas mãe, essa coisa horrível aí fala de uma pessoa
triste, que passou por decepção, que está precisando de um carinho, nada
parecido com sua vida, disse a menina, e todos apoiaram, inclusive o maridão,
que se sentiu até ofendido. Ele dava pra ela vida de princesa, uma linda casa
própria, o quarto deles com suíte, móveis afofados, cozinha resplandecente,
quartos pros meninos, carro do ano na garagem, e agora a tevê de LED a cabo com
computador, maior alegria que ele teve em comprar do melhor, o mais caro, e ela
vem com essa música de tristeza aí, ah não...
- Severina não arredou pé. A música é essa. E usou o
recurso que Cleópatra já devia ter usado ao seduzir Marco Antonio: bateu as
pestanas, balançou a cabeça para fazer barulhinho com os brincos e jogou os
cabelos para trás num leve suspiro sem explicar mais nada, deixando evidente
que uma mulher esperta, mas esperta mesmo, que quer segurar seu homem, tem de
ter sempre um segredo bem escondidinho na manga.
- É Chiquitita. Do Abba. E ponto.