Jesus finalmente está de volta em nossa casa

– Quem era ao telefone? Cruzes, você está branca...

 – Era Pedro. Diz que ele vem. Finalmente.

– Ele quem mulher?

– O hôme.

– Que “hôme”? Desembucha mulher, toma este copo de água. Quem vem? Ai! Ai, Jesus, não vá me dizer que...

– O próprio. Pedro, Jesus e a turma toda.

– Quando? – Agora!
– Assim de última hora? Minha Nossa Senhora!

– Ela vem, também. E olha a casa, olha essa bagunça! Pensa que Maria não repara? E agora? Ai meu jesuscristinho...

– Já sei, vamos chamar a Marli. Ela tem uma mão de ouro pra limpeza, e é rápida a danada. Ela começa pelos banheiros, ajeita os quartos...

– Ai Jesus!

– Que foi, para de tomar o nome dele em vão...

–Toalhas de mesa! E guardanapos. E lençóis, se ele resolver pousar, e fronhas, e toalhas de banho, de rosto, toalhas de mão, e não esqueça que grande parte das amigas de Jesus são damas da alta sociedade.

– Que isso, mulher, seu enxoval é lindo. E as toalhas bordadas que trouxemos da Ilha da Madeira?

– Meu enxoval está lindamente enfiado numa gaveta cheirando naftalina!

– Toca lavar tudo.

– Sem sol? Não vai secar. Lembra daquela secadora que você ficou de consertar?!

– Já sei, vamos pedir pra Amarílis.

– Beleza, liga pra ela. Só que...
– ai Jesus...

– PARA DE TOMAR O NOME DELE, que foi agora?

– Esqueceu dos seus sobrinhos? Que comem feito lima nova? Imagine aquelas três dragas aqui, mais a Amarílis, ou você acha que ela vai se contentar em lavar a roupa e não vir aqui pra boca livre? Fora a tropa toda, O QUE NÓS VAMOS SERVIR?!

– Calma. Calma. Fique calma.

– Não me mande ficar calma. Estou em pânico. Precisa ser algo elegante, o que acha?

– Não se preocupe, o importante é a variedade. Veja: bacalhau desfiado temos um tantão no friser, e carnes temos cupim, picanha, filés, lombo... – lombo não pode, esqueceu? – Ah, mulher, Jesus não liga mais pra isso não. Olha, fica faltando mesmo uns camarões pra uma moqueca, umas lagostas para dar um toque requintado, um pirão caprichado, pode deixar, estou indo ao mercado municipal.

– Camarões e lagostas também ouvi dizer que... esquece, ok, traz.

O Jão ligando o carro eu corro atrás dele: – Traz batatas também, um montão. E cebolas, e temperos, e frutas, Jesus ama frutas, e não se esquece da farinha de mandioca, ai meu Deus!!

– Agora é Deus? O que mais?

 – Precisamos de vinho. Precisamos de MUITO vinho. Passa naquela Maison bacana lá.

– Você está louca? O preço lá é pela hora da morte. Deixa que eu
me viro no mercadão. Er... me dá o seu cartão?...

– Afe. Leva o de débito e o de crédito, acho que não temos limite para tudo isso. Tenta parcelar o vinho.

– Oi, bom dia! É dona Iracema que chega. Que corre-corre é esse, ouvi dizer que a Marli foi convocada pra vir limpar a casa às pressas, vai chegar quem?

– Er, é... bem...Jesus.

– O quê? E você não falava nada? Eu vou já pra sua cozinha fazer meu famoso doce de batata doce com cravo, que eu sei que Jesus adora, é o tempinho de ir lá em casa buscar os ingredientes...

O problema é que dona Iracema tem marido e cinco filhos, eu penso, já começando a sentir um início de desespero. E eles virão, com certeza. Chega Amarílis.

– Já joguei tudo na máquina. Precisa amaciante, você tem?

– Não, e o pior é que o Jão levou meus dois cartões no mercadão.

– Pode deixar, eu penduro.

 – Mas não comente nada que...

Tarde demais, ela já foi. E pior, vai comentar. E o dono da venda tem esposa e filhos, tudo bacuri, e tudo morto de fome, e a molecada adora ver Jesus. Melhor ver se tem refrigerante. Claro, não tem.


 – Alô, seu Domingos? Olha, a Amarílis está chegando aí, pede pra ela trazer três dúzias de refrigerantes...

– Quem vai chegar em sua casa? Os três reis magos?

– Quase. É... bem...Jesus. Pedro ligou.

– Jesus? A meninada vai adorar saber. Sabia que ele adora pudim de leite condensado? Minha sogra dona Célia faz como ninguém, vou já pedir pra ela fazer bem uns quatro aqui no forno da padaria. Vem a tropa toda, não vem?

– É... parece que sim, Jesus não costuma andar sozinho por aí...

– Vou mandar umas cervejinhas.

– Cervejinha não, o Mestre pode não gostar, ele...tum-tum, o Domingos desligou. Tudo bem, cervejinhas.

E em menos de quinze minutos está tudo lá, quatro engradados de cerveja, quatro engradados de refrigerantes, e dona Iracema já está tomando conta da cozinha com os preparativos do doce de batatas, o que me lembra de ligar pro Jão perguntar o que é dos camarões e as lagostas.

– Já estão aqui, já estou voltando, problema é o trânsito dos diá... problema é o trânsito. Comprei atum também, lindo, enorme, o Tomé não vai acreditar, vai achar que é um golfinho, ah, e comprei carne seca, se não me engano o Pedro deu de gostar de carne seca fritinha. E comprei as frutas, e farinha de mandioca, e mandioca. Pra fazer frita.

– E o vinho, foi...tipo...muito caro?

– Foi uma fortuna, melhor eu nem falar, como estão as coisas por aí?

– Eu já coloquei o bacalhau no forno, estou fazendo um panelão de arroz, outro de feijão, estou assando as carnes, dona Célia está fazendo uma cacet...um monte de pudim, e...bagunça da Marli...dona Iracema, afe...Chega logo, por misericórdia.

Quem chega é o Carlão. – É verdade esse beó? O hôme está chegando aí?

– Não chame a chegada do Mestre de beó. Sim, ele vem, mais a turma.

– E você vai receber Jesus com camarãozinho e bacalhauzinho? Mas só mulher mesmo, e a bichinha do meu irmão. Esse evento pede é um churrasco, coisa de macho, deixa comigo que eu vou chamar os caras.

– Chamar quem?! Nem pense em trazer o Bafo e o Bola, era só o que faltava, Carlão, É O MESTRE!!

Mas o Carlão já foi. Atrás dos caras e dos pertences do churrasco. E não adianta reclamar, eles já estão lá, fazendo um fumaceiro medonho, e já estão deitando as linguicinhas e as asinhas de frango, e a tralha toda. E já estão tomando cervejas, Jesus Cristo, cervejas.

– Tiá, vai ter caldinho de feijão? É o folgado do Bola.

– Bem, eu...tá...vai. Daqui a pouco eu levo lá. Eu levo o caldinho e vejo um balde de sardinhas, NINGUÉM VAI LIMPAR SARDINHAS NO MEU TANQUE!

– E ninguém vai me impedir de assar sardinhas na brasa pra Jesus, é o Bafo, faca em riste, recuo diplomática e cautelosamente, da faca, do bafo e do Bafo, ok, sardinhada pra Jesus. O balde transborda, é bom que o Mestre venha com muita fome...

A bacalhoada já está quase pronta, o atum já está apurando no forno com as batatas, os camarões e as lagostas estão deixando um cheiro delicioso no ar, dona Iracema, prova esta carne, não está cheirando peixe? – Não, filha, nossos sentidos nos enganam. Dona Iracema citando Descartes era só o que me faltava... A Marli resolveu lavar toda a porcelana, bagunça total na cozinha, Amarílis chegando com as roupas cheirosas e passadinhas, dona Iracema quase que queima o doce de batata doce, e os netos da dona Célia chegaram cada um segurando um formoso prato de pudim. Ainda bem que eu e o Jão investimos numa cozinha grande e equipada, na verdade nosso sonho sempre foi esse, e no fundo sabíamos que mais dia menos dia Jesus passaria de novo por aqui.

– Gente, não vai ter uma saladinha? É a esposa do seu Domingos do mercadinho, a Rosa. Imagina, não servir uma saladinha...

– Os rapazes lá fora fizeram um vinagrete...

– Ah, mas aquilo é molho de churrasco, falo de uma salada bem caprichada....

– É...do jeito que a mulherada que acompanha Jesus é cheia das finuras, acho melhor uma salada sim, faz uma salada e bota uns ovos. Não tem ovos.

– Me dá o seu cartão?

– Que tal o SEU cartão?

– Não fique estressada, está bem, o meu cartão, pô, vem o Mestre, Paz!

– Paz... com o MEU cartão. Sei... Ai Senhor Amado, como vou pagar essa conta? Esse vinho?

Barulho terrível lá fora, um pagodaço, chegou uma turma com instrumentos, o churrasco rola solto, um cara que eu nunca vi está na minha cozinha fazendo uma jarra enorme de caipirinha de vodka, CAIPIRINHA DE VODKA NÃO, O MESTRE NÃO VAI GOSTAR.

Falei pras paredes. E dá-lhe caipirinha de vodka, e não é que ficou boa demais? – Humm... E com esse caldinho de feijão então? O Jão, animado, resolve fritar torresmos. Uma babilônia de torresmos. E mandioca frita. E batatas fritas.

– Jão, isso é uma Torre de Babel de mandiocas, mais um Monte Sinai de batatas...

– Os filhos de Zebedeu. Adoram frituras.

– Virgem Santa, (– Ó, Maria não gosta que chama ela assim não...) é verdade, ainda bem que o Jão lembrou. E trocamos um beijo besuntado a torresmo. E eu não posso esquecer que eles adoram assentar à direita e à esquerda do Mestre, preciso tomar cuidado senão sai briga... O que mais está faltando?

– Polenta! A Madalena adora uma polenta.

– Deixa que eu faço, é a Raissa do Carlão, de top e shorts curtíssimos. Boto um molho da hora por cima tia, com parmesão ralado e azeitonas. Tem azeitonas?

– Misericórdia! Não. Um dos filhos da Amarílis corre comprar, e por milagre (do Mestre, à distância, só pode ser), não pede dinheiro.

Pagode no maior volume, parece que alguém compôs um
sambinha especial pra Jesus. Fumaceiro medonho, alguém trouxe uma imensa picanha, (corte especial pra Jesus, é o Décio, açougueiro) e está rolando cerveja e caipirinha com pão de alho e queijo de coalho, e NÃO TOQUEM NO VINHO! Falando em vinho, ai meu Jesus...

– Que foi agora, pergunta o Jão.

– As taças quebraram na mudança! Acha que eu vou servir vinho pra Jesus em copos de requeijão? Preciso de taças, não há taça que chegue!

– Minha sobrinha que casou ganhou um monte, vou lá e trago, diz a Marli.

Traz as taças e a sobrinha, pensei, já passando do desespero para o pânico absoluto, a turma só aumenta... E o maridão folgado dela, o Tato, sujeito folgado, ai jesuscristinho...

Mas as taças chegam, e a sobrinha com o marido folgado também, parece que Jesus esteve no casamento deles, querem mostrar as fotos pra ele. Nossa elegante e espaçosa sala de jantar tem uma linda mesa, que na verdade compramos pensando nele. Mas agora vejo que só vai dar pra comportar Jesus, os discípulos e as mulheres, como a notícia da chegada de Jesus se espalha! O que fazer? Mas o Tato mostrou que serve para alguma coisa, e em um instante está trazendo com os rapazes do pagode aquelas horrorosas mesas de plástico de boteco, com as inevitáveis cadeiras brancas. Um horror! Se a decoradora de nossa casa visse... Não vai dar pra todo mundo, a maioria senta no chão ou nas poltronas, paciência. A toalha mais linda, branca, da Ilha da Madeira, fica na mesa principal. Juntamos as mesas e emendamos as outras toalhas, ficou um colorido bonito. E flores? Ninguém vai pôr flores na mesa? Maria ama flores...

– Pode deixar, tia, eu trago as flores, diz um rapazinho que nunca vi na vida, quem é ele?

– É o Vladimir, saiu ontem, puxou dois anos. Diz que precisa

porque precisa "levar um lero" com o Mestre.

– Um ex-presidiário aqui!! Meu Deus, mas é o Mestre! E aposto que ele vai trazer flor roubada do cemitério.

Parece que o Vladimir ouviu e gostou da ideia, porque dali a minutos ele volta com uma imensa braçada de cravos-de-defunto amarelos, saidinhos dos túmulos, decerto, ou de alguma coroa de flores, porque o Vladimir é rapaz de expediente.

Paciência. Flor de defunto, tudo bem. As meninas do pagode fazem uns arranjos, e colocam ramos e fitas nas emendas e não é que ficou bom?

– Jão, essas meninas do pagode não poderiam estar com um pouquinho só mais de roupa?

– Fazer o que mulher, elas são da Comunidade do Córrego, e lá usa se vestir assim. Jesus anda sempre por lá ensinando, elas o amam tanto quanto nós, a notícia espalhou...

– É... bom...então tá.

O telefone toca, é Pedro: – Estou com pouca bateria, está tudo certo aí? Já estamos chegando, é que tem uma turma enorme em volta de Jesus que estamos tentando afastar, mas periga de a gente não conseguir e eles irem junto. Vocês fizeram doce de abóbora? Jesus adora doce de abóbora.

Doce de abóbora!

Mas a santa dona Iracema tinha feito. De batata doce, de abóbora e de mamão verde, segundo ela os favoritos de Jesus. Merece um beijo a fofa. E cocada de colher e doce de leite, gente, essa mulher não existe! E ainda mandou o neto buscar cinco potes de sorvete de sabores variados, não é uma gata?

– Eu trouxe um de napolitano, Jesus é maluco por napolitano diz o moleque todo suado da corrida, orgulhoso por também conhecer o gosto de Jesus.

O Jão: – que tal se a gente botasse uma mesa lá fora pras crianças?

– Você cheirou o bafo do Bafo, só pode. E por acaso as crianças desgrudam do Mestre? – Ih, pior que é...

– Jão, volta pras suas frituras, está boa essa carne seca não?...Acho que vou fazer uns pasteizinhos com elas...

Alguém: – Ó Jão, tem um carinha estranho lá fora, sei não, mas acho que ele está puxando fumo...

– Está sim, fui lá, falei com ele. Diz que precisa muito "trocar uma ideia" com o Mestre. Deixa ele lá.

– Mas...drogas no nosso quintal?... – Mulher, calma. Isso é assunto para Jesus resolver.

– Então tá...

O Carlão lá de fora, piadista: – Resolver eu tenho certeza que Jesus resolve, agora problema é resolver a larica...

– Carlão, tu não presta...

Parece que está tudo pronto. Jesus!! Preciso me arrumar, olha como estou suada, e cheiro o sovaco, e vejo ao espelho meu cabelo oleoso, desgrenhado, cheirando a sardinha, olha você Jão, marido do céu, vamos dar um trato, a mulherada repara.

– Não vai não, os chuveiros todos de cima pifaram estou vindo agorinha do banheiro da suíte de vocês, olhei os outros quartos, nenhum está funcionando, algum problema no 220. É a Marli. Com a bela notícia. Vamos receber o Mestre sem um banho. Mas e se o Mestre resolver tomar um banho? Ai meu Jesus, e eu já perdi a conta de quantas vezes tomei seu nome em vão nessa bagunça toda da preparação da festa.

– Pode deixar tia, a gente conserta, diz outro dos filhos da Amarílis, mas pode demorar.

– Então eu vou pelo menos trocar de roupa, gente abaixa esse som! E essa meninada correndo? E quem está assistindo essa televisão? Cuidado menino, você quase derruba esse copo, ai, nããão! O cachorro tinha que fazer bem agora, Jão, corre, limpa aí esse...

– Paz seja nesta casa.

Parece que o tempo para. Parece que nem ouço mais barulho algum vindo de fora. Parece que apenas Ele está aqui. A sua voz e a sua presença dominam todos os espaços. Passou a sensação de cansaço, de suor grudado no corpo, sinto o corpo leve como se tivesse saído de um banho... E eu corro e me penduro ao pescoço do Mestre, o Jão disfarçando o choro se abraça em nós dois e assim ficamos um tempo que eu não saberia dizer, nós três, um bloco. O cachorro late e pula frenético a nossa volta, o Jão acaba se entregando e chora feito um bebê, a cabeça declinada no ombro do nosso amigo amado. Eu, que não posso ver ninguém chorar, desabo meu aguaceiro. Quanta saudade meu Deus... Quanta coisa eu teria pra dizer, mas tudo que quero é ficar abraçada aqui, sentindo o perfume dos seus cabelos castanhos, sua presença reconfortante e suave... E lá longe, muito longe, aquela correria toda, aquela preocupação toda, o cartão de crédito estourado, a turma da boca livre, a fumaça, o ar empestado de cheiro de sardinha, o pagodaço, a cervejada, a rapaziada puxando fumo, as mocinhas em trajes mínimos, a bagunça da cozinha, a meninada correndo, a comida que talvez não chegue, a sujeira do cachorro, o chuveiro que queimou e...

Paz. Estou em absoluta paz. Jesus finalmente está de volta em nossa casa.

analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua

É uma sala envidraçada da metade para cima das divisórias de madeira compensada, grande, quadrada, tendo como único mobiliário uma cadeira com rodízios e uma bancada que toma toda a volta do ambiente. Possui três guichês recortados nos vidros. Um à frente, os outros dois aos lados direito e esquerdo. Pelo da frente, onde fica a porta sempre fechada, entram papéis novos, para serem analisados. Nas aberturas à direita e à esquerda do Analista Carimbador Limitante, respectivamente, pois que estamos falando do Analista Carimbador Limitante, há as Salas de Remissão e Finalização. A sua sala chama-se Sala do Limite. Sobre a bancada, centenas de carimbos, dos quais ele sabe a exata localização, acharia seus carimbos no escuro. Carimbo retirado, carimbo devolvido sempre ao mesmo lugar. Os carimbos ficam pendentes em suportes, como cachos, que ficam alinhados em várias filas e em ordem sobre a bancada às centenas, aproximando do milhar, tendo à sua frente inúmeras almofadas de tintas azuis, verdes e vermelhas por sobre toda a bancada, e também muito bem alinhadas. Seu dia de trabalho começa pontualmente às oito da manhã, e ele embora sabendo que a sala está limpa, gosta de começar seu dia passando sobre os suportes dos guichês uma flanelinha amarela, é o seu ritual de começar.

Às oito horas e cinco minutos, chega o Encarregado da Distribuição de Papéis. Ali não há o hábito da conversa, apenas rápidos cumprimentos, muitas vezes somente um leve aceno de cabeça. O trabalho, todos sabem, é difícil, doloroso, não resta vontade de conversar sobre frivolidades. Mesmo que houvesse, ele, o Analista Carimbador, não teria nenhum assunto que não fossem os casos que analisa, ele não possui vida fora dali. Recebendo os novos papéis, ele inverte cuidadosamente a ordem deles e os coloca sob a pilha em que está trabalhando, tomando o cuidado de não alterar a ordem de entrada de nenhum caso. A primeira Vida que entra é sempre a primeira Vida que sai.

Seu trabalho é analisar Vidas. Sua sala não é a única. O local de trabalho é como um imenso aquário subdividido, onde todos se dedicam a estudar papéis, solitários e em silêncio.

Ele desconhece se seu trabalho e de seus colegas terminam ali, ou se são supervisionados pelos tais Graduados, que todos sabem que existem, mas que nunca viram, mas é bem provável que sim. Ele se sente tão menor, que acha impossível que algo tão importante como Vidas esteja apenas em suas mãos. Mas realiza seu trabalho com a mesma meticulosidade, sabendo-se supervisionado ou não, com a importância que o trabalho merece. Não há nada mais importante do que Vidas, ele sabe. Sabe, porque o que mais desejaria nesse espaço de existência que eles chamam de Estado de Processo, seria justamente ter uma Vida, que a julgar pelos papéis que lê, é algo totalmente diferente do que ele tem. Ele desconhece outro afazer que não seja o de ler e carimbar. Sua jornada termina às seis da tarde, e reinicia às oito da manhã, mas desse período de pausa ele nada recorda. Teme perguntar se seus colegas recordam, e ouvir uma história diferente da sua.

Tudo o que ele sabe é que habita uma existência que fica a meio caminho entre humana e angélica. Se fosse anjo, pensa, teria asas, voaria por aí salvando criancinhas em perigo, e com uma pontada mista de sarcasmo e rancor acrescenta ao seu pensar: – e não viriam tantos papéis assim para a Sala do Limite...

Isso é tudo o que ele pensa, porque o trabalho é extenso, é ler. Ler sem envolvimento emocional, uma leitura racional dos fatos:

Um jovem totalmente dependente de substâncias químicas ilícitas, já consumiu todos os bens da família e agora rouba para sustentar a dependência. Está fraco, alimenta-se mal, compartilha seringas injetáveis com outros dependentes, também abusa de bebidas alcoólicas, é de família pobre, seus pais, exaustos após tantas lutas para a sua recuperação, o abandonaram à própria sorte, está só no mundo sem esperança alguma. São os carimbos da parte esquerda da sala: Finalização. Abaixo desse: Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Outro carimbo: Pneumonia. Abaixo desse, mais um carimbo: Provável Alvo de Extermínio por Seres Malévolos. Para essa Vida não há esperança. Limites como esse, que analisa aos milhares, são de rápida conclusão, não costumam trazer um único facilitador remissivo, qualquer humano faria a mesma análise. E num suspiro junta esses papéis aos que seguirão no final do dia para o seu lado esquerdo, o da Finalização. Desconhece o trabalho do Finalizador, mas pensa que ele é um dos tais Graduados, que reanalisa e carimba a forma efetiva de Finalização, ou que talvez tenha poder para reverter para Remissão, ele não sabe.

As histórias não são sempre assim, dilacerantes, embora o Analista Carimbador não veja nenhum motivo como banal. Há uma enormidade de casos de finalização por idade, e seus motivos desencadeantes, que são na sua grande maioria comuns a todos. A maioria dos casos é o de idosos que praticaram excessos na juventude. E há outra enormidade de casos de finalizações chamadas de naturais pelos humanos, mas ali todos sabem que finalização natural não existe, todas vêm de intrincados caminhos, que são analisados justamente ali, na Sala do Limite. Toda doença vem de algum excesso ou escassez de algo tangível ou intangível. E há outras causas desencadeantes além de doenças, os Limites são em grande quantidade, daí a enormidade de carimbos, muitos são utilizados combinados entre si. Todos os casos possuem múltiplas implicações e complicações, em muitas vezes ele passa o dia analisando uma única Vida, tantas são as variáveis envolvidas. E finalmente há os da tarja vermelha, apenas para serem carimbados: – Finalização. Esses vêm direto dos Graduados, já vêm analisados, é só carimbar. Ele às vezes lê detalhadamente algumas dessas Vidas, por curiosidade, e constata que não existe linha de raciocínio algum, precedente algum, que as leve à enfermidade, ao acidente, à finalização súbita, enfim, ao Limite, mas que passarão por isso, inapelavelmente. São em grande número, para tristeza do Carimbador, que só não é total porque também chegam casos absolutamente sem solução com a tarja verde para o carimbo: Remissão.

Remissão. Felizmente há casos onde se vislumbra uma esperança: um novo tratamento médico, uma intervenção bem sucedida, terapias alternativas, colaboração humana, uma conversão de caminhos: um novo emprego, uma vida mais saudável, um filho, e até eventos intangíveis como o tempo, perdão, amor, preces, às vezes algo simples como uma viagem, e é com um suspiro de alívio que ele envia esses papéis ao seu lado direito, para a Remissão, com os carimbos: Remissão. Esperança. E um outro carimbo com algumas das variáveis acima, ou outras. O maior facilitador dos processos remissivos é o Amor, ofertado ou recebido, assim como Preces.

Ele já não se recorda de há quanto tempo trabalha ali, e bem que gostaria de ter acesso a seus próprios papéis, mas sabe que eles estão em outro Departamento, e não viriam para a sua Sala do Limite. Mas sabe também que bastaria pedir ao Encarregado da Distribuição de Papéis, em toda sua longa existência nunca pediu nada, e sabe que ali não abundam manifestações de sentimentos, a ordem geral é uma só: trabalho. Sabe, portanto, que seria atendido. Mas vai adiando, tem medo, – o meu Estado de Processo terá fim? – ele vai pensando entre uma análise e outra. O medo é de descobrir que não, que aquele seu estado é eterno. –Seria muito triste, pensa.

Não precisou nem formular em palavras ao Encarregado da Distribuição de Papéis, bastou um olhar significativo, algo raro por ali. Há finalização ou remissão para mim? – pensava, e foi isso que transmitiu com o olhar ao Encarregado. Começava a se lembrar de vozes, seria isso o que acontecia em suas noites esquecidas? Vozes que discorriam sobre Estágios de Compreensão. Pausa para Humanização. Pausa para Regulação dos Batimentos Cardíacos. Enxugamento de Emoções Banais. Enfrentamento Racional. Apaziguamento com o Passado. Abandono de Ilusões. Essas lembranças não vieram à sua memória no mesmo instante, vieram no correr de todos os papéis que ele lia e carimbava, lia e carimbava, vieram ao longo do interminável começar e recomeçar de muitos e muitos dias de trabalho. – Estou processando novas orientações, logo, este estado poderá ter fim, – animava-se ele.

E foi assim que num desses dias, pontualmente às oito horas e cinco minutos, a história de seu Estado de Processo eram os primeiros papéis da pilha que recebeu no guichê do meio, que ele colocou cuidadosamente como últimos sob os papéis que já tinha em curso, sem alteração dos batimentos cardíacos e sem ser vencido pela curiosidade. As Vidas tinham mais importância. E nas pausas entre suas análises pensava que caso viesse a remir seu Estado de Processo, gostaria de ganhar uma Vida. Mesmo que fosse para ela finalizar como todas, empilhada, analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua.

cada um voltou a tocar a sua vida da melhor maneira que conseguiu


Esta história se passou numa cidade nada romântica, uma cidade feia; preferimos dizer cidade seca. Ela não tinha árvores, as casas não eram caprichadas, ninguém plantava flores, o sol era escaldante e o povo vivia mal humorado. O senhor prefeito era pouco afeito em cuidar dos assuntos municipais, antes preferia investir os recursos públicos em assuntos de seu próprio interesse. Mas quando chegavam as eleições, ninguém queria tomar a frente de uma cidade com as contas falidas, e ele se reelegia, com sua péssima administração.

A cidade não tinha nenhum ponto turístico, melhor dizendo, tinha um, na forçada, que não passava de um simples olho d’água, que seguia num pobre filete indo juntar-se ao tristonho rio que atravessava a cidade de ponta a ponta. Um rio quase seco, maltratado como o resto da cidade, margens de terra nua, cenário deprimente.

Mas como as pessoas precisam de histórias, e o povo daquela cidade não era diferente, inventaram a história de que o casal enamorado que tirasse fotos ao lado do olho d’água atrairia boa sorte. Era o único ponto para onde afluíam moradores e visitantes, notadamente recém-casados, muitos ainda em seus trajes nupciais, para tirar fotos.

O japonês que tirava fotos resolveu, para amenizar a feiura da paisagem, espetar por ali acolá umas samambaias e outras flores de plástico que, claro, ficaram medonhas, mas que nas fotos davam algum efeito. E assim a coisa ficou.

A cidade, como a grande maioria das cidades pequenas, tinha o seu personagem esquisito, que as pessoas achavam ser uma feiticeira, e isso tão somente porque aquela mulher usava roupas diferentes, meio parecidas com roupas de cigana, fumava cachimbo, plantava ervas estranhas e era solitária. As crianças gostavam de provocar valentias umas às outras, para ver quem tinha coragem de se aventurar até as proximidades da casa dela, que ficava nos altos. Os adultos também cochichavam quando ela passava, sua casa mais de uma vez amanheceu pichada ou com alguma vidraça partida por uma pedra, e as mulheres quando a viam passar recolhiam as crianças e a chamavam de bruxa. Aquelas provocações acabaram por irritar a mulher, ora, tudo o que ela queria era viver em paz, ficar no seu canto, ela não incomodava e não se incomodava com ninguém, então em seu íntimo articulou uma vingança, lançando mão de alguns conhecimentos que julgava possuir.

Então um dia aconteceu. Mais de uma pessoa viu. Aquela mulher desceu dos altos onde morava, em seus trajes longos, pulseiras e brincos esquisitos, perfumes fortes, carregando nas mãos um prato de sal, sim, era sal, ela derramou um pouco pelo caminho, alguém colocou cuidadosamente na língua, não tinha dúvida, era sal. Resolveram acompanhá-la. A mulher desembocou exatamente no local onde ficava o olho d’água, e derramou ali o conteúdo do prato, um prato de sal. Nada aconteceu, as pessoas apenas olharam para esse ato um tanto confusas, mas a mulher tranquilamente voltou para os altos onde morava, sem pronunciar uma única palavra.

O pequeno olho d’agua também era procurado pelas crianças no ir e vir de suas brincadeiras de bola, e é aí que os problemas da cidade começaram. Naquela tarde, as crianças notaram um líquido preto e viscoso misturado às águas, e correram chamar os adultos.

Os adultos coçaram a cabeça, e foram chamar uns barbudinhos de óculos, avental e papetes de uma universidade federal que ficava numa cidade ali pertinho. Que vieram e trouxeram todo um aparato nunca visto, maquininhas que faziam tic-tic-tic, cavoucaram, colheram amostras naquelas pipetas enormes, catalogaram tudo e foram embora, mas dias depois voltaram com técnicos e a notícia – era petróleo.

O senhor prefeito lançou-se sobre aquele terreno como um goleiro ao gol – essas terras são da prefeitura, disse, e tratou de chamar seus homens para murar o espaço, no que foi devidamente vaiado pela população. – Ora, quando vínhamos cá apenas para tirar fotos, o senhor não providenciou nenhum embelezamento, não fosse o japonês que espetou as flores de plástico nem isso haveria, como agora o senhor quer tomar posse de um terreno que não é de ninguém e nunca foi do interesse da prefeitura?

O prefeito evocou leis, parágrafos e incisos, e alegou ser o espaço pertencente ao poder municipal.

No dia seguinte os técnicos da companhia voltaram, com o tal do cavalinho de petróleo, que é aquela engenhoca utilizada para extrair o petróleo de sítios onde a quantidade não pede aparatos mais sofisticados. Pela lei, a companhia e o governo federal tem uma parte nos lucros, o município outra, e os populares, donos do terreno também tem a sua parte. Foi aí que começaram as brigas.

Ocorre que o terreno não era de fato da prefeitura, pertencia a famílias, famílias grandes, que nunca se entenderam justamente em questões de propriedade, e que não iam se entender assim tão facilmente, no calor desse fantástico acontecimento. As brigas foram feias. Podemos resumir dizendo que gente ameaçou gente, que gente matou gente, gente deixou de falar com gente, gente abandonou a casa onde vivia e foi acampar nas proximidades do fio d’água, houve gente que ameaçou o senhor prefeito, enfim, a briga foi de grandes proporções.

O tempo passou. Uma noite a mulher acordou, e dos altos onde morava pode ver a feia engenhoca, que recortada contra o luar lembrava um pavoroso monstro, no seu lento ir e vir, soltando guinchos metálicos arrepiantes. E em sua insônia constatou que se a cidade já era feia em termos geográficos, agora era feia em termos relacionais. Famílias se separaram. Filhos saíram de casa para nunca mais voltar. Pessoas foram mortas à faca, era raro uma noite em que não se ouvia som de tiro de revólver. E os namorados, esses perderam o único ponto de encontro, porque lá se fora para sempre o olhinho d’água. Arrependida, a mulher chorou.

Então no dia seguinte aconteceu. Mais de uma pessoa viu. Aquela mulher desceu dos altos onde morava, em seus trajes longos, pulseiras e brincos esquisitos, perfumes fortes, carregando nas mãos um prato de açúcar, sim, era açúcar, ela derramou um pouco pelo caminho, alguém colocou cuidadosamente na língua, não tinha dúvida, era açúcar. Resolveram acompanhá-la. A mulher desembocou exatamente no local onde ficava o cavalinho de petróleo, cenário de tantas brigas e derramou sobre aquela engenhoca o conteúdo do prato, um prato de açúcar.

O que aconteceu foi que a engenhoca funcionou mais uns minutos, para finalmente, num guincho estranho, parar, numa espécie de estertor final. Chamaram-se os homens técnicos da companhia, e eles cavaram daqui, cavaram de lá, fizeram aquelas medições complicadas para finalmente anunciar, solenes – o petróleo acabou. E desmontaram aquele monstrengo e foram embora, deixando para trás a população embasbacada, agora sem petróleo algum.

No dia seguinte as crianças que voltavam do jogo de bola constataram que o olho d’água tinha voltado. A boa e refrescante água do olhinho tinha voltado! E saíram anunciado.

Gostaríamos de contar que todos viveram felizes para sempre, mas não foi bem assim. Pessoas, como dissemos, morreram. Famílias se separaram. Rancores antigos vieram à tona para não reverterem assim tão facilmente. A cidade contraiu pesadas dívidas.

Mas os enamorados voltaram a tirar fotos no local.

Algumas pessoas subiram aos altos onde morava a mulher, e constataram que ela não era uma mulher má, era apenas uma mulher que tinha sido ferida sem nenhum motivo pelos moradores da cidade. Ela, condescendente, os recebeu com um cheiroso café, pães doces, bolo de aipim, cocadas e outros docinhos, era muito hospitaleira e simpática. Os mais céticos e os menos místicos foram unânimes em afirmar que tudo não tinha passado de um capricho da natureza, e assim os ânimos foram apaziguados em torno de uma mesa de café e coisas gostosas. Foi ela quem deu a ideia de a população plantar grama, rosas, azaleias, margaridinhas do campo, copos-de-leite, bem como árvores e arbustos, no local das fotos, emprestando assim beleza e vida natural ao ambiente preferido dos namorados, o que foi feito, tornando aquele cantinho muito acolhedor. Também fizeram sinuosos passeios, ao largo do qual um carpinteiro colocou uns agradáveis bancos, e as fotos saíram muito mais bonitas, e o local passou a ser muito mais frequentado.

O senhor prefeito, para não ficar atrás, também mandou plantar grama e arbustos floridos nas margens do rio, e transplantou belas árvores como ipês, salgueiros chorões, plátanos, coqueiros, quaresmeiras e fícus, tornando com o tempo a cidade bem mais fresca e agradável. Os moradores por sua vez, para fazer birra ao senhor prefeito, pintaram suas casas em belas cores multicoloridas, plantaram hera nos muros, roseirais nos quintais, margaridas, dálias, cravos, árvores embelezadoras como primaveras e hibiscos, e frutíferas como laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e pereiras, deixando a cidade, num curto espaço de tempo, bela como eles mesmos não eram capazes de imaginar, o que atraiu turistas, dinheiro e por consequência o progresso.

E todos trataram de dar boa conta de suas feridas, de resolverem seus problemas, e cada um voltou a tocar a sua vida da melhor maneira que conseguiu.

nem existia ponte alguma


Um leve sopro e todas as pontes caíram.Nem que eu queira eu consigo retornar. O desamparo é absoluto, a dor é real. Você esfarelou no vento.

Não há mais nada que eu possa fazer, pensando bem nunca houve. Mas o meu frágil conforto era pensar que havia.

Os caminhos se estendem em leque a minha frente. Mas eu não sinto desejo de tomar nenhum. Desisto de viver, pois não desisti de você?

Tenho apenas um retrato pra mirar, sempre, até que se gastem: o retrato, ou meus olhos, ou minha vontade de viver, ou tudo junto.

(Vai ver que nem existia ponte alguma).

chato, entediante e insosso momento de normalidade


Meninas, onde há por aqui um salão com manicures boas e rápidas, era eu perguntando às colegas do novo emprego, toda mulher um dia já fez ou fará essa pergunta. Aqui perto há um, fica logo ali, assim assim, me explicaram. Todas as moças são boas, alertaram, só não vai com a dona Amelinha, por que, porque ela é lerda e meio lesada das ideias, oi boa tarde, a dona Amelinha está livre pra fazer minha unha?

Claro que eu não iria perder a oportunidade sempre divertida de conhecer uma manicure lesada. Não gosto da palavra lesada, mas que é engraçada é. Mas escolhi uma lesada porque de normal e sem graça já bastava eu, uma secretária fazendo uma chata faculdade de Letras, trabalhando num escritório besta, enfiada, melhor dizendo, conformada, a um apertado uniforme cinza com echarpe bege, horrendo.

Todas as moças do salão levantaram a cabeça, achando que eu sim era a lesada do dia, e lá fui eu, ao lugar indicado, para ser atendida pela dona Amelinha.

Sim, ela era lenta. E desajeitada, e mal vestida, deveria ter a mesma idade de minha mãe, uns quarenta e cinco anos, mas aparentava dez anos mais, a pobre. Usava óculos de um arame grosso, que eu pensava não existirem mais. E os óculos viviam escorregando, pesadões, sobre seu nariz oleoso, e que ela ia empurrando de cinco em cinco minutos. De cinco em cinco minutos sim, eu marquei.

Não dá vontade de arrancar os óculos da cara da criatura, pegar um alicatezinho, apertar, depois limpar aquele rosto oleoso com um lencinho apropriado, entendem, consertar a pessoa? Era o que dona Amelinha inspirava. A necessidade de um conserto urgente.

Parêntesis. Falando em conserto pensei em concerto, e lembrei de uma cena em que o Mozart do filme Amadeus, de Milos Forman, compunha uma obra em pé, sobre uma mesa de bilhar ou sei lá eu que jogo da época, jogando uma bolinha que batia, quicava e voltava para ele, que apanhava a bolinha e repetia o gesto enquanto compunha, imperturbável. Quem se perturba é justamente gente como nós, os normais, que sente vontade de entrar dentro do filme e arrancar a bolinha das mãos dele, me dá essa porra dessa bolinha, você está compondo, cara! Cara, você é o Mozart! e está compondo! só pra você se enquadrar na real. Que cara mais sem noção...

Fecho esse parêntesis filosófico, porque talvez dona Amelinha aparentava nem sentir que empurrava os óculos, imperturbável como um Mozart, talvez ela fosse um gênio como ele, gostei de você vou fazer em você a melhor unha que já fiz, ham?

Não, não falei o ham, mas olhei para ela divertida, isso não se fala dona Amelinha, imagine um cardiologista: gostei de você, vou operar direitinho seu coração. Um dentista: fui com a sua cara, vou aplicar anestesia direitinho em você...

Claro que não disse nada, explicar isso pra dona Amelinha tiraria justamente a graça da coisa, e não é que ela fez mesmo? Após tirar minhas cutículas com a suavidade de uma fada, repuxou a pele de cada um dos meus dedos, e cuidadosamente fez uma nova e suave retirada, eu não imaginava que tinha tanta cutícula por baixo daquela primeira, até aprendi a técnica, minhas unhas dando aquela impressão de que tinham nascido sem cutícula na casa de Irene o chão está sempre encerado.

Dessa vez eu fiz o – ham? Aquela frase vinha tão descontextualizada mesmo para uma dona Amelinha, que retirei delicadamente minha mão pra demonstrar que não tinha entendido.

Ela retomou minha mão e me contou que havia uma casa de tolerância, aquilo que nós conhecemos como puteiro, de uma tal dona Irene, onde havia muita alegria, as pessoas entravam e saiam dia e noite, muito mais à noite, e nesse entrar e sair, e nesse dançar e rir, dona Irene não tinha preocupação em lustrar o chão, porque o chão da casa dela era sempre lustro.

Sim, ela disse lustro. Era lesada, mas tinha preocupação em falar corretamente, errado no caso. Talvez pensasse que era errado falar lustrado, aquela coisa lesada de se falar errado achando que é o certo, que todo mundo um dia já fez, mas que nela ficava engraçado.

Mas naquela altura eu já deixava de ficar divertida para ficar matutando, minha Nossa Senhora, que mecanismos de associação essa boa mulher fez para ligar a minha pessoa, uma secretária conformada a um traje cinza-bege-horrendo, a uma senhora dona de uma casa de tolerância, ou seja, uma puta proxeneta, e mais, a essa história estranha de uma mulher que tem o chão sempre lustro?

Nem quis perguntar, porque perguntando eu tirava a graça da coisa toda em si.

E até o final da manicure ela foi dando detalhes, ou melhor, repetindo os mesmos detalhes, de gente que entrava, saia, cantava, ria, dançava e que com todas essas passadas deixavam o chão sempre lustro; dona Irene nunca tinha preocupação em encerar e lustrar o chão, porque na casa de Irene o chão vivia sempre encerado.

Em casa mamãe me contou que havia uma letra de música, italiana, falando da tal casa de Irene, uma casa de gente que entra e sai, rindo, dançando noite adentro, achamos a música na internet, ouvimos, até gostei. Mas nem mamãe conseguiu entender qual foi a associação que passou pela cabeça da dona Amelinha, será que debaixo daquela desajeitada pessoinha havia uma dama da noite querendo sair? Rimos muito mamãe e eu.

Escolhe qualquer esmalte eu disse, para agradá-la, se a gente quer agradar uma manicure é deixar a escolha do esmalte por conta dela. Dona Amelinha levou uma eternidade procurando em sua maleta, e vira que revira, para vir de lá com um rendinha tão fininho e delicado, que certamente teria desagradado dona Irene. Deixou minhas unhas lindas como se fossem de porcelana pega aqui no meu bolsinho o dinheiro, dona Amelinha? E esse trocadinho é para a senhora. Ela me agradeceu muito. Demoramos nisso tudo uma hora e vinte minutos, detalhe, uma manicure esperta faz uma mão em no máximo quarenta minutos, exagerando.

Não, não voltei mais lá. Não poderia me dar ao luxo de perder aquele tempo todo. Não gostaria também de pedir outra moça e preterir dona Amelinha. Mas o mais importante – não gostaria de pedir pela dona Amelinha e ter a decepção de encontrar uma dona Amelinha esquecida de que existe uma casa alegre como a casa de dona Irene, de encontrar dona Amelinha em algum chato, entediante e insosso momento de normalidade.

notícia alguma, jamais


Estou muito velho para lembrar com exatidão como se desenrolaram os fatos, mas vou tentar. Perdoem-me por escrever em português, e ainda usar os acentos, melhor dizendo, perdoem-me por escrever! Acho indecente gravar meus argumentos em ridículos chips e sair distribuindo-os por aí e ouvir um distraído ah, sim, ouvirei mais tarde. Depois da obrigatoriedade da Língua Americana como oficial, depois que os e-mails foram banidos para facilitar o aprendizado do idioma, e as pessoas foram proibidas de manter blogues, redes sociais ou saites que não fossem escritos em bom americano, tudo ficou muito mais difícil para mim. Vamos aos fatos, este velho processador de texto não aguentará o calor por muito tempo, mas não esperem nada surpreendente. É que vieram me perguntar o que ocorreu com ela, e dada a minha idade avançada, sou o único a saber.

 

Ela era a mais novinha do seu grupo familiar. Seu irmão era seis anos mais velho que ela, e as primas oscilavam nessa faixa, para pouco menos ou pouco mais. Sua prima mais próxima em idade era quatro anos mais velha que ela. Ela era o pudim do grupo, daí o excesso de mimos. Era só cair, ou se machucar, uma raladinha leve, fazer beicinho, que as priminhas acudiam. Uma delas, quando de algum tombo, dava de brigar com o chão, mas que chão feio! bate nesse chão, bate, bate, e batia no chão, o que fazia a menininha desabrochar de rir e esquecer-se do tombo. Quando em sua casa a menininha se machucava, em raladinhas leves, a mamãe botava o bandaide, que as classes mais pobres ainda usavam, mas que já estava caindo em desuso, com a chegada do restaurador imediato de epiderme, que era caro. Ela, porém, adorava o bandaide, e imediatamente reclamava por uma visita às priminhas. A mãe a levava, ela ia com o dedo empinadinho, talvez de medo que o bandaide caísse. Chegava, ó, dodói; dodói môzinho? E a pegavam no colo, e assopravam o dedinho e faziam carinho na cabecinha dela feito como a gente fazia num gatinho, quando eles existiam. Tanto que mamãe resolveu dar um basta naquilo, pois começou de a menina querer bandaide sem machucado nenhum.

 

As crianças cresceram um tantinho. A priminha quatro anos mais velha passou todos os ensinamentos que uma quase mocinha precisava saber naqueles tempos: fazer flores e bichinhos artificiais, confeccionar franjas e perucas, ajeitar os cristaizinhos de enfeite nos cabelos. Mais tarde, já mocinha, foi a priminha quem a ensinou como tomar o comprimido estancador de sangue, como usar a maquininha de fazer unhas, a de ajeitar as sobrancelhas, o lêiser depilador de pernas e no seu ouvido falou coisas sobre meninos, que nunca mudaram em tempo algum. Também olhava seus cadernos eletrônicos, corrigia, e às vezes até fazia alguns exercícios, para ela não se cansar tanto, o que era repreendido carinhosamente por mamãe: - ela precisa fazer sozinha seus deveres. Mas escondida da titia, ela fazia assim mesmo.

 

Isso significa que a menina cresceu cheia de manhas, cercada pelo irmão, priminhas e priminhos que faziam todas as suas vontades.

 

Mas a mamãe das priminhas morreu de câncer, que desde sempre nunca foi combatido. E as priminhas que já eram órfãs de pai, foram sensatas em procurar maridos, e encontraram maridos muito bons. E se casaram, e tiveram filhos, e viraram gente grande aos dezesseis, dezessete anos. O irmão, não aguentando os maus tratos recebidos do pai, que era consumidor exagerado da bebida chamada Espantador de Problemas, distribuída largamente pelos americanos, fugiu de casa. Ela, não sabendo para onde ir, ou tendo medo da rua que era de fato muito perigosa, ficou.

 

Ficou e continuou os estudos, a tempo de descobrir que lá fora, no mundo, não existiam priminhas. A amiguinha de hoje era aquela que estaria falando mal dela amanhã. Ou que se fazia de amiga apenas para pedir algo emprestado, ou um intranet não permitido na prova, pois ela era mais adiantada que as demais. Os amiguinhos deixavam bem claro o que queriam das amiguinhas, pois nesse quesito como eu já disse, nada jamais mudou.

 

Ninguém mais queria saber de jogar vídeo game ou qualquer outra diversão eletrônica para crianças. – Gente, chega de brigar, vamos brincar, ela se pegava dizendo às vezes na hora do recreio. Qual o quê! Era um tal de e aí eu peguei e disse, aí ela pegou e disse,  e imagine você o que ela disse? Ela disse que ele disse que ela disse, aí eu peguei e falei assim que eu não disse, e de repente alguém se virava pra ela: - bem que você não é nossa amiga, pois ontem estava junto com a coisinha que pegou e disse. E ela, assustada, gaguejava tentando explicar que só estivera com a coisinha porque a coisinha lhe pagara um quadrado de avitaminado doce gelado. E ela nem sabia que o quadrado era só pra saber de coisas das outras menininhas. Bobinha, entrava de tonta em situações das quais não sabia sair.

 

Afastou-se de todo mundo, afundou-se na internet: essa menina precisa de óculos disse o Direcionador Mental na reunião dos Companheiros e Facilitadores. Naquele tempo já havia o implante de lentes gratuito para toda a população, um dos primeiros itens introduzidos pelos americanos, para que todos tivessem olhos verdes ou azuis, mas havia uma longa fila de espera, ela teve de usar óculos por algum tempo. Sendo a única a usar óculos, sentiu-se feia, virou a esquisita da turma, aquela que ninguém tira para dançar nas pistas eletrônicas.

 

Noto que estou falando demais e não estou chegando ao assunto, mas essa contação toda era para explicar o que aconteceu na internet. A internet tinha a facilidade de reunir, num mesmo grupo, pessoas com interesses afins, sendo elas de aqui ou de qualquer lugar do mundo. Salas de bate-papo, blogues, redes sociais, mas disso todo mundo se lembra. Foram elas que disseminaram, sob ordens, o Poderoso Vírus, do qual poucos escaparam, e os que escaparam acabaram justamente nesta casa de Conformação Social em que me encontro.  É aí que nossa história começa, na internet.

 

Ela o conheceu.

 

Tímida a princípio, ela escolhia as palavras para mandar e-mails, lembram-se dos e-mails? com perguntas educadas, questionamentos gentis, e aqui e acolá, longe longe, alguma demonstração de fino senso de humor. Para que ele a notasse.

 
Ele respondia no mesmo padrão. Tão gentil, sensível e educado, que ela dava de pensar que ele também tivera irmãzinhas carinhosas, primos e primas meigos como ela tivera. Diferente dos rapazes que conhecia, ele conversava de assuntos variados, e não somente sobre técnicas avançadas para vencer nos Enredos Eletrônicos Ajustadores de Hormônios, e que, por assumirem tantos personagens ao mesmo tempo, nunca se sabia ao certo como eram. Afora que todos já dominavam o inglês, e ela, por sofrer de uma leve gagueira e algum desvio de atenção, não conseguia dominar de forma alguma. Não havia com quem pudesse conversar.

 

Apenas com ele.

 

Mas vamos ao conflito desta história, eu mesmo já me sinto cansado e – fenômeno – desejando um chip. Ele morava numa região onde viviam os chamados germanorgulhosos. Somente com vistos especiais é que se ia para lá, vistos que ela, simples moça do Entorno dos Centros de Decisões, não conseguiria jamais. Os germanorgulhosos eram mal vistos pelos americanos. Eram brasileiros, como todos nós, mas recusaram-se terminantemente a aprender inglês, a deixar o seu próprio sotaque, a consumirem os sofisticados produtos facilitadores, alimentícios e eletro eletrônicos, o que fez deles uma região extremamente pobre, vivendo exclusivamente de sua economia, a saber: malte de cevada e lúpulo. Que não era aceita em outros mercados quer fossem internos e muito menos externos, deixando sua economia em um estado de pobreza de fazer dó, pobreza econômica e física, pois esses dois produtos, das mais variadas formas, eram a base de toda a sua alimentação. O resto era conseguido a muito custo no mercado negro, que nunca deixará de existir.

 

Não, claro que não, não havia guerra. O domínio americano foi pacífico, lembro-me como se fosse hoje do dia em que eles vieram, com suas roupas metálicas, longas capas arrastando a sujeira do chão, deixando as mocinhas brasileiras em estado de febril comoção, muitas desmaiaram. O Presidente, num discurso emocionado, entregou ao Maioral deles a Faixa Presidencial e a chave do Brasil entalhada em ametista enfeitada em feixes de trigo e olhos de guaraná; foi dia de festa, feriado nacional. Sendo assim, uma nação pacífica como a americana jamais poderia forçar nenhum dos Acomodados da Pacificada União Brasileira a aceitá-los, mesmo porque, a Vigília Permanente dos Povos, que funcionava na República dos Camarões, estava alerta.

 

O que fizeram foi dar aos germanorgulhosos um disfarçado boicote, não tão disfarçado assim, mas como as Janelas Para o Mundo não noticiavam, e a Internet ia pouco a pouco se tornando americana, o povo não ficava sabendo.

 

Onde tudo isso se cruza com a história dos dois? Ora, que a comunicação entre eles tornou-se impossível. Não havia vistos de viagem, no Acomodado Germano a Internet deixou de funcionar, ou só funcionava a altas horas da madrugada, os telefones estavam sendo substituídos por chips de comunicação telepática – em inglês, idioma que ele conhecia, ela não.  Ou seja, não havia possibilidade de comunicação.

 

De tempos em tempos, em um código nunca assumido entre os dois, mas que ambos entenderam, ele ou ela mandavam a alguma pessoa uma mensagem num chip comunicador, sabendo que por formas cruzadas, complicadas, mas que eles conheciam, chegariam ao encontro do outro, e dentro dessas falas, aparentemente destinadas a outrem, havia mensagens que bastaria decodificar. Simples assim. Vocês podem achar difícil, mas para os dois era tão fácil como beber água. Não foi boa a comparação, pois beber água era mais fácil no Acomodado dele, onde as águas não receberam os detritos fisiológicos dos que foram contaminados pelo Poderoso Vírus, claro.

 

Mas ele se cansou da brincadeira primeiro do que ela. Ou encontrou a sua amada para todo sempre enquanto plantava ou colhia cevada, isso não se sabe. O que sabemos, a única coisa que sabemos, foi que um amigo que ocupava o posto de Grande Homem Brasileiro no novo governo, penalizado por saber de sua solidão, deu a ela uma senha para entrar num ponto cego da recém-implantada Americanet, onde ela poderia, sossegadamente, escrever sua solidão em português, passando assim o seu tempo, o que fazia a ela um enorme bem, mesmo sabendo-se não lida por ninguém, mas sempre acalentando a ilusão de que ele a encontrasse. Algum Vigilante de algum escalão a descobriu, mas achando um caso de pouca importância apenas jogou naquele ponto cego um vírus que afugentava qualquer iniciativa de leitura por parte de qualquer máquina, mas isso ela nunca ficou sabendo.

 

Como sei que ela morreu de câncer? Porque fui um dos primos, e ela confiou-me a  senha. Meu neto, abusado, mexendo em minhas coisas, a descobriu, e no dia em que se comemorava o Dia do Orgulho Americano em Terras Brasileiras, divulgou todas as suas histórias – traduzidas para o Americano, na Americanet. Era um nunca acabar de histórias, uma mais linda que a outra: de amor, de humor, de espionagem, de terror, de ficção científica, infantis, tragédias, sagas familiares, eróticas, onde ele e ela eram, de uma forma ou de outra, os personagens.

 

Naqueles tempos os americanos, já mais acostumados com os costumes brasileiros, dançando maravilhosamente o xote, o samba e o forró, encantados com nossas comidas e costumes, com a beleza de nossas florestas e mulatas, foram abrasileirando sua fala, e pouco a pouco o português foi voltando, mas de modo informal.  O Alto Governo jamais assumiu, e pune até hoje quem fala ameriportu, mas o faz de forma velada, disfarçada, então a Vigília Permanente dos Povos, agora no Panamá, nunca fica sabendo das punições. As duas principais são privar o transgressor da Americanet e do Espantador de Problemas. Mas o que quero dizer é que os americanos olharam para o lado, e também interessados, permitiram que os escritos dela circulassem, em americano e português, permitiram até livros! E ela passou a ser a personagem do momento, todos citando suas histórias, as Janelas para o Mundo criando sofisticados Macro Digitalizados em N Dimensões com muitas delas, os jovens estudando seus escritos nas escolas, os Direcionadores de Mente escrevendo teses sobre ela, e até os Jogos de Enredos Ajustadores de Hormônios utilizaram muitas de suas personagens.

 

Ela, sem saber de nada disso, pois não tinha contato algum com o mundo, morreu de tristeza e câncer, nessa mesma proporção, duas doenças para qual os americanos nunca trouxeram cura.

 

Dele não se teve notícia alguma, jamais.

quem não conseguiu se acalmar por si mesmo nessa triste vida


Era o dia do encontro e não havia batom. Mas havia beterrabas, morangos e mel. Dessa feliz combinação seguramente sairia algo que embelezasse e perfumasse meus lábios, o que com um pincelzinho fino eu consegui. Ideia! E se eu embelezasse e perfumasse também a minha flor? Sim, eu sei, ninguém mais chama de flor, mas isto é um diário, melhor me precaver de alguma tia velha, minha flor, isso, assim está bom, e foi o que fiz, mas sem ajuda de nenhum pincelzinho, é claro. Com as mãos. Que ficaram impregnadas e perfumadas dessa feliz mistura. Sem problemas, para isso existem meus grossos fios de cabelo. Os romanos não limpavam as mãos sujas de comida nos cabelos dos escravos? Eca. Mas ao contrário das mãos dos imperadores, minha mão estava deliciosamente impregnada de mim, o que fez um enorme bem também aos meus cabelos. Fui.

 

O local do encontro era longe, mas fui ao encontro dele caminhando, em parte porque era cedo, e em parte porque queria ter mais coisas para contar. Penso melhor quando caminho. E dei justamente de pensar que aquele cosmético improvisado, ele sim, era minha vestimenta. O jeans, a camiseta, o sapatinho de plástico e a jaqueta descolada da qual eu tanto me orgulhava eram perecíveis, iriam um dia dar no mundo das coisas perdidas, mas aquele perfume era eterno. Vinha da terra, das abelhas e de mim, eram de Deus, portanto. Não sabia se daria conta de dizer isso a ele, creio que não, teria vergonha, ele ia me achar mais pueril do que já me achava. Pensando bem, nem sei se daria a conta da ideia do improviso do batom.

 

Você cheira bem ele disse, ao me dar o selinho de sempre, o selinho inicial, eu sabia, era o nosso jeito. E eu dei aquela reviradinha de olhar que ele não entendeu, mas eu sim, e que significava aguarde pelo melhor.

 

O melhor não houve, pois o que eu não sabia, ele sim, era que aquele era um dia de despedida. Ele também viera caminhando, mas ensaiando o discurso de adeus, isso ele não disse. Mas era um discurso muito alinhavado para não ter sido ensaiado umas quatro vezes, no mínimo. Ele citou até personagem de filme, me remeteu a livros clássicos!...

 

E assim o adeus aconteceu, e eu não vou deitar aqui os detalhes porque não quero borrar de lágrimas o meu querido diário. Os detalhes são os de sempre, e sempre terminam com um a gente se vê por aí.

 

Agora estou aqui com o potinho onde coloquei o que restou da mistura que embelezou meus lábios e minha flor, inúteis já, e eu falo da mistura, dos lábios e da flor. Mas como minha única ocupação é pensar, resolvi que vou pensar escrevendo até acabar este caderno, e quando acabar este, vou comprar outro, e outro, e mais outro, a ponto de a minha família, preocupada, chamar os homens de branco pra me levar. Não tenho outro destino, minha vida não tem outra função.

 

Frutos da terra e mel de abelhas, somados ao perfume da minha flor nos meus cabelos não deram conta de segurar o homem que eu amo. Reavaliando a frase, quem não deu conta fui eu, o cosmético foi recurso de última hora, romântico mais foi. Numa outra pegada ele teria entendido mas... já era tarde...

 

Sendo assim querido diário, vou impregnar de  recursos perdidos meus cadernos da tilibra, mas na forma de poesia, lamento e dor. Até que alguém venha me buscar. Nem que sejam os homens de branco, com aquela vestimenta branca de acalmar quem não conseguiu se acalmar por si mesmo nesta triste vida.

que ninguém quis


 Nossa conversa mal(iciosamente) recor(t)dada

 Que era meta(nóia)de para(nóias)fusos deslocados

 Mal(sinada)sucedida de des(velos)fechos plan(ej)(t)ados

 Solitária per(dida)eira acenando (a) deus

 Solitária pereira perdida acenando adeus.

 

 Sem(pre) (você) fal(ta)ará uma per(dida)eira nessa s(i)(e)lva

 Sem(pre) (você) haverá per(dida)eiras re(jei)(a)tadas

 Tom(b)adas (lamen)(ofer)tando fr(l)utos que ninguém quis

 

 Frutos e lutos que ninguém quis.


te amo demais, Olívia. é por isso que preciso te esquecer


Ele vinha brincar com o irmão dela de vez em quando. Bolinhas de gude. Naquele tempo menino não brincava com menina, e embora ela soubesse jogar, pois brincava com o irmão, aceitava resignada o seu papel de menininha observadora. Quatro aninhos mais nova que os dois.

 

Era vê-lo empurrando o portãozinho de madeira que ela corria até a penteadeira da mãe pentear o já penteado cabelinho, ajeitar a já ajeitada fitinha xadrez, que mãe colocava todo sempre. Não havendo perfume – havia, mas era da mãe – a solução era passar leite de colônia, e bem disfarçadamente, o pó da caixinha, que naquele tempo se chamava pó-de-arroz.

 

A mãe percebia esses truques, dava uma risadinha íntima e fingia que não via, concordava com o bom gosto da filha, porque bonitinho ele era.

 

Bonitinho e bem arrumado, pois o que ela não sabia, era que ele também se arrumava para vir brincar. Insistia com a mãe para que deixasse ajeitada a blusinha polo de listras em vermelho, azul marinho e verde, e gola vermelha, de que ele tanto gostava.

 

Um gostando do outro, o outro gostando do um, e ambos envergonhados disso.

 

Ele queria puxar assunto, mas não havia assunto a puxar, até porque ela era muito novinha, perguntar o quê, de boneca?

 

Quantas flores vocês tem neste jardim, não? iniciou um expediente perguntando ao irmão, você sabe o nome delas? Ele sabia que menino não sabe nome de flor. E o irmão deu de ombros, e sem sair da posição de ataque para rapelar a amarela de olhinho, apontou a irmã com a cabeça.

 

O coraçãozinho dela deu um pulo, e sentindo o rosto queimadinho de vergonha, deu de falar essa é a dália, esse é o girassol, o menino, girassol eu sei, e essa? essas são hortênsias – ela sabia usar a concordância gramatical. E foi apontando os pés de hibiscos, flor-de-maravilha, brincos de princesa, azaleias, e deixou por último os lisiantus, as rosas amarelas, e os cravos, também amarelos, orgulho de suas tias.

 

A casa em que moravam era nos fundos, na frente moravam a avó e as tias, mas o quintalzinho bem cuidado, que além de flores também comportava um limoeiro, um caquizeiro, uma mangueira de mangas enfezadas, além de morangos silvestres à roda, subindo pelos muros, era das crianças, que, cuidadosas, sabiam brincar sem destruir nada, ao contrário do que faz a grande maioria das crianças que há. O capricho principal daquelas mulheres eram os girassóis, as tias se enchiam de orgulho ao dizer que girassol é dificultoso de cultivar, então os irmãos tomavam todo o cuidado do mundo quando brincavam de bola, e era uma beleza quando eles floresciam, cabecinhas todas viradas para o sol. Isso somado aos cravos e flores-de-maravilha amarelos, deixava o quintal lindo, de um amarelo só, combinando com a casinha, em estilo americano, com seu telhado de duas águas, também amarela, amarelo desmaiado, segundo a avó.

 

Mas um dia acabou a infância. O irmão foi trabalhar em algum lugar, o amiguinho – Wellington, ou Lelo, foi trabalhar em uma fábrica, e ela seguiu com os estudos, e com isso virou menina metida.

 

Naqueles tempos não era moda como é hoje ser operário, modismo era ser estudante, andar de calça ou macacão jeans, camiseta de uma cor só, tênis brancos que se chamavam kédis, e cara lavada e cabelão solto para as meninas, moda que vinha sendo introduzida pela Sônia Braga no programa Vila Sésamo, que todos assistiam dando uma de superiores, ora, assistimos porque é bonitinho, mas isso é para crianças. Mas ela não perdia um programa, e adorava.

 

Completando seu estilo, óculos redondinhos e coloridos como os da Rita Lee. Cadernos e livros nos braços, cara de importante, passou a se achar melhor que os outros, principalmente muito melhor que o Lelo, que usava uniforme de operário e tinha as mãos sujas de graxa.

 

Mas eles se encontravam, moravam perto, ele oi, ela oi, tudo bem? Fazendo o tipo condescendente. Até gostava quando alguma coleguinha via que ela cumprimentava um operário. Era o esnobismo do esnobismo

 

O tempo continuou passando. A avó e as tias morreram, a família veio morar na casa da frente, o irmão casou, ficaram só ela e os pais, e ele de tempos em tempos via a menina agora uma moça – Olívia, chegando ou saindo de carro com as amigas e às vezes com os amigos, namorados, carinhas. Mas até onde ele soube, ela nunca se casou.

 

O tempo passou para eles mais uma vezada. Ele já não era mais Wellington nem tampouco Lelo, mas sim Oliveira, e era representante de artigos hidráulicos. Trabalhava com seu próprio carro, um Fiat 147. Foi nesse carro em que aprendeu a dirigir, e o pai, para ensinar o teste de ladeira antes do exame de motorista o levou justamente para frente da casa dela. Ele morreu de vergonha que ela o visse, mas aquela era de fato a melhor ladeira do bairro, e ela morava bem no cume. Enquanto enfiava e afundava os pés desastradamente nos pedais de embreagem, notou que o jardim ainda era cuidado com carinho. Lembrou que gostava daquele constante frescor do quintalzinho, do perfume um pouco enjoativo da dama da noite, foi pior ontem de noite! o irmão dizia. Lembrou-se do constante cheiro de grama e terra molhada, e lembrou que gostava de encontrar a menininha de laços no cabelo e rosto cheirando a pó-de-arroz.

 

E era então como Oliveira, já motorizado, os blocos de pedidos empilhados sobre o banco do passageiro, caixas de peças no banco de trás, que ele sempre dava um jeito de passar por lá, mesmo modificando o trajeto, para ver a casinha amarela com seus girassóis, cujo estilo resistia às mudanças do tempo. Ainda se encontravam. E era o mesmo oi, oi tudo bem? e nada mais.

 

O que ele não sabia, e nem ela com clareza, é que ela gostava dele, e lembrava, sim, de seu coraçãozinho batendo quando ele abria o portão, e lamentava que... lamentava o quê mesmo? Ela não sabia. Lamentava que algo tinha se partido, e talvez por  bobeira dela, porque ela notava e gostava, quando mocinha, dos olhares esticados dele pra ela, e de suas esnobadas de garota metida.

 

A bobeira dela se esticou demais, pois Oliveira um dia se encontrou com aquela que viria a ser sua esposa, que de fato foi, e que lhe deu filhos. Eles mudaram para uma outra casa no mesmo bairro. Soube por alto que os pais dela morreram, e que ela vivia só, na casinha, com suas flores. Ela já não usava mais o cabelo Sônia Braga, mas sim aquele cabelinho de jovem senhora à altura do pescoço, tingido de loiro ruivinho. E as calças jeans deram lugar a longos vestidos de pano fininho com flores miúdas que de longe pareciam estar sujos, ou gastos.

 

Ele ainda passava por lá, até que um dia foi formando na cabeça a ideia de tocar a campainha.

 

Mas... falar o quê? pensava. A nossa conversa esses anos todos não passou de oi tudo bem? Pedir para entrar? Se não tinha entrado nem quando moleque, não passava do quintal? Perguntar do irmão? Já nem se lembrava do nome dele, o irmão era só um pretexto para ir lá!

 

Um dia parou o carro que já não era mais o 147, mas o Uno, do outro lado da rua, com o coração batendo acelerado como no dia em que tirou a carteira de habilitação. Ela estava bem no meio do jardim, ajoelhada, usando luvas de jardinagem, arrancando matinhos do chão. Só o que os separava era uma fita de asfalto, mas aquilo foi para ele como a vastidão do mar. Faltou coragem, girou a chave, foi.

 

Desse dia em diante passou a parar sempre em frente a casa, fingindo que anotava algum pedido, falando ao Telesp Celular, aparelho maldito que não dava sinal mas que todo mundo queria ter.

 

Um dia abaixou o vidro do carro só para sentir aquele perfume mistura de terra e flor, mas quem funcionou não foi seu olfato e sim sua audição – saía som de piano de dentro da casa. - Então ela toca piano... será professora?

 

Em outras passadas conseguiu numa pescoçada ver que havia uma estante cheia de livros ao lado de uma cristaleira na sala da frente. E se imaginou lá dentro conversando sobre... sobre...Oliveira?! era o Nextel. Plim! Fala Germano! Plim! Sabe aquelas braçadeiras da Petrópolis 915? Plim! Já sei qual foi o problema, já estou indo para lá. E se obrigando a aceitar que não havia nada para se conversar entre um atacadista de peças e uma pianista que cultivava flores num quintal amarelo, ele empurrou o garotinho do passado, que insistia em sair pra conversar com uma garotinha do passado, e o escondeu bem escondido dentro da jaqueta de couro fechando o zíper, não sem sentir um nó na garganta, e foi.

 

Essa ainda não foi a última vez. Ele veio um dia para se despedir. Ela usava o mesmo vestido amarelo com estampas que de longe pareciam flores desbotadas, longo, fino, esvoaçante, era a brisa da tarde passando. Amarrava uns cachos de brincos de princesa nos galhos. O que ele não sabia, era que naquele exato momento ela se lembrava da garotinha que estava no quintal brincando de colar um brinco de princesa com durex na orelha, e que correu envergonhada para dentro de casa quando o viu chegar.

 

Naquele momento um operário recebia o Diploma de Presidente da República, e ela, lembrando-se de como desdenhara o macacão azul desbotado do Lelo, sentia-se uma grandessíssima besta, e apaixonada que era pelo Roberto Carlos, contemplava seu jardinzinho cantarolando De que vale tudo isso se você não está aqui.

 

Nem sabia que era um dia de despedida, nunca reparou em um carro quase sempre parado por ali, que naquele dia era um Vectra.

 

Ele foi embora para Florianópolis, onde tinha convite para sociedade num próspero atacadista de peças hidráulicas, levando de Olívia só as esparsas lembranças da menininha acompanhando o jogo de bolinhas de gude, a fita xadrez, o cheiro de pó-de-arroz, os variados perfumes e os nomes de todas as flores, que decorou.

 

Mas de quando em quando ele voltava a São Paulo, a negócios. Vinha de avião, mas alugava um carro de primeira linha para visitar os clientes e ao final de tudo, passava por lá. Ficava zangado consigo mesmo, precisava tomar coragem e pedir para entrar, nem que fosse numa primeira e última vez, mas entrar, falar algo, ele já era um empresário, poxa!

 

Mas parado no carro alugado defronte ao quintal que insistia em não acompanhar os modismos, o empresário ponderou o que vinha insistindo em não ver, como se não estivesse sempre ali, à sua frente: – que não haveria possibilidade alguma de relacionamento entre ele, um homem casado, com dois filhos, uma filha prestes a ganhar bebê, que só fizera correr pela vida atrás de peças, e aquela delicada mulher, que escolheu viver sozinha, regando flores, lendo livros e tocando piano.

 

Não posso mais voltar aqui, ele se pegou falando alto, sem se preocupar, conhecia aquela rua tão bem que sabia do seu silêncio sepulcral. Não posso pedir para entrar numa casa sem ser convidado. Plim! era o filho: já estou indo Plim!, e subiu a ladeira no Peugeot alugado, sem chorar porque homem até chora, mas nesse caso já não era mais tempo de  lágrimas, mas piscando a marejada ideia de entrar arrematou: Não posso pisar nunca mais nesse jardim amarelo, porque te amo demais, e porque te amo demais é que preciso te esquecer.

 

Se a Farah Maluf estiver boa chego em trinta minutos no aeroporto, no máximo quarenta. Plim!

 

E o garotinho de blusinha de listras abandonou para sempre a garotinha de fita xadrez. Da janelinha do avião, como se estivesse à janelinha do Fiat 147, via mentalmente o jardim nos seus escondidos detalhes, e repetiu te amo demais, Olívia. É por isso que preciso te esquecer.