Alessandra escolhe um pedacinho de pano da blusa, ou
de qualquer parte de suas longas saias esvoaçantes para dali extrair um
fiozinho que apenas ela percebe, e fala conosco ajeitando esse fio invisível.
Ninguém tem coragem de dizer a ela que não há fio nenhum, vai que é algum
vestidinho de fada que ela costura, não passa pela cabeça de nenhum de nós
atrapalhar seu trabalho. E costurando que costurando, Alessandra vai costurando
as ideias, enquanto eu me sinto até culpada por estar forçando-a a falar tanto,
mas como resistir se é um deleite?
Eu estava em casa me sentindo estúpida por ter
passado semanas jogando absurdos joguinhos ao computador, e para espanar essa
doideira procurei Alessandra como quem procura um padre, precisava me
confessar, quem foi que disse que confessar algo não é libertador? Pois ela me
libertou:
– Alicinha, o compulsivo não é melhor nem pior do
que aquele que não é compulsivo. – Me diga: o que é ficar um dia inteiro de
frente para o mar, tomando cerveja? – Não é também uma compulsão? – Você já
reparou que algumas compulsões a sociedade aceita, outras não?
Preferi não enveredar por tão delicado assunto, pois
dali poderia sobrevir, pela lógica da argumentação, justificação para a mais
variada gama de atividades, então resolvi extrair do argumento de minha amiga a
parte boa, no caso, que jogar ao computador não era maléfico de modo algum. –
Só é maléfico, ela disse, se o jogo estiver ocupando todos os espaços de sua
vida onde você poderia estar realizando algo melhor para você, para seu bem
estar, para sua qualidade de vida, mas pega leve com você mesma, e não se sinta
culpada ao sentir prazer nos seus joguinhos coloridos. Jogue, se você se sente bem.
Deixando de lado um chapeuzinho de gnomo que
costurava para melhor gesticular, Alessandra olhou para os céus como a reclamar
com Deus: – Culpa, culpa, culpa. Odeio a culpa. Eu só não odeio Deus por causa
da culpa, porque Deus não tem culpa da culpa. A gente inventou a culpa porque
precisava dar a Deus uma forma limitante. – Cara, a gente não podia deixar Deus
na vastidão do universo, cuidando lá dos terremotos e maremotos, porque
precisamos enquadrar o cara numa caixinha chamada culpa? – Putz, cara, e ela
retomava a costura do chapeuzinho de gnomo, – é um papel muito pequeno para um Ser
que dizem ser maior que o mundo – o de patrocinador das nossas culpas, você não
acha Alicinha?
Alessandra está entre os poucos que me chamam de
Alicinha, os poucos que me respeitam deveras, porque ela sabe que eu sei que me
chamar de Alicinha é um respeito. Eu, não ouso dar a ela um apelido. Pronunciar
Alessandra é gostoso demais, e a sua figura, embora frágil, não comporta
apelidos, sim Alessandra, concordo. É apequenar Deus, disse, e pior, é dar a
Ele um atributo oriundo das trapaças do nosso ego. Já me sentia melhor por ela
ter me absolvido dos jogos eletrônicos. – Alicinha, ela disse, se a compulsão
para os jogos lhe incomoda, direcione sua compulsão para outra coisa, e eu
pensei no sempre adiado curso de inglês, how do you do, Alicinha?, jogado nos
porões da minha preguiça.
– Eu não tenho raiva de Deus, disse ela costurando
rendinhas na barra do vestidinho de fada, eu tenho raiva do que as pessoas
fazem com a suposta figura de Deus, é daí que sou ateia, é daí que eu choco as
pessoas. – Se Deus existe, eu não preciso acreditar nele, lá eu duvido da
existência do fogo, do ar? – É o caso, sim, de perguntar se Deus acredita em
mim, porque a minha parte eu faço, ele que faça a dele, e que de preferência
seja a de acreditar em mim e me deixar em paz, que cuide do universo, que não
haja maremotos e terremotos. – Você acredita que uma funcionária da minha
equipe me disse que ia rezar para que Deus abençoasse o nosso trabalho para que
nada saísse errado no dia da reunião com o presidente? – Eu disse a ela – minha
querida: vamos fazer tudo para que nada saia errado, é mais seguro. Risco zero
de nossa parte é o que eu sempre digo a meus funcionários. Quero chegar ao
presidente e dizer que a nossa equipe está estalando de perfeita, e não que se
Deus quiser tudo sairá bem. Alessandra é assessora em um importante órgão do
governo, acho que lá ela não costura vestidinho de fada não. – Deus que faça e
muito bem feita a parte dele, que eu por aqui me encarrego da minha. Quem
conhece o órgão do governo a que ela pertence sabe que não é uma simples fala
de efeito, lá a coisa funciona pra valer, e Alessandra tem sua grande
participação nisso.
– Mas Alicinha, isso choca as pessoas, ela diz. Todo
mundo quer atribuir uma parcela de suas culpas ou de suas vitórias a Deus,
parece que todo mundo tem medo de se assumir, depois dizem que seguem a Jesus,
e Jesus não foi um cara que super se assumiu? Claro que ela sabe que eu sei que
o Jesus a que ela se refere tanto pode ser o de carne e osso quanto um Mito, o
que para ela não faz nenhuma diferença. Ela continua: Jesus não pediu
seguidores, ele veio e fez a coisa certa, e a mensagem que ele deixou foi: – agora
façam vocês a coisa certa. O que vale dizer: – não sigam meus passos perfeitos, deem
os seus passos perfeitos nesse mundo imperfeito, e enfatiza deixando de lado um
bolsinho do vestido da fadinha: os seus passos perfeitos. Parece até que ela se
picou na minúscula e invisível agulhinha, porque nesse momento Alessandra fica
a olhar para as próprias mãos, pensativa.
Ela sabe idiomas, sabe cozinhar, cuidar de plantas,
pintar, tocar instrumentos, ela sabe escrever histórias para adultos e
crianças, isso tudo além de assessorar num alto escalão deste Brasil, e o que é
melhor: ela existe de verdade, e não só nos meus sonhos. Ela existe e está ali,
costurando um vestidinho quiçá para a minha fadinha ou uma túnica para o meu
anjinho da guarda, e quem vê o sorriso no rosto de Alessandra ao falar acredita
que de fato ela vê aquela fadinha ou aquele anjinho ali, pairando em sua magnífica
sala por ela mesma decorada.
Eu já cansava Alessandra demais, e ela teria um voo
para Brasília ainda naquela noite, urgia que eu fosse, uma pena.
E beijos, e volte, e telefone, aquelas frases de
despedida. Quando me vi na calçada da ruazinha quieta pensei imediatamente em
Sparkenbroke, de Charles Morgan.
Não saberia descrever os detalhes do trecho, creio
que um clérigo conversava com uma fiel. Analisava a cena em que Jesus convida
Pedro a pisar no mar da fé: Pedro chega a caminhar alguns passos, mas duvida, não
de Cristo, mas dele mesmo, e afunda. Se Pedro tivesse segurado para sempre
aquele instante em que ele foi impactado pela própria coragem sem medir
consequências, se aquele esforço tivesse ficado por mais tempo em seu ânimo,
Pedro viraria um Cristo, e talvez a história hoje fosse outra. Pedro, de um
pequeno lago em um lugar esquecido do planeta, se alçaria ao céu do qual ele
duvidou.
A história seria outra se Pedro fosse Alessandra, e
esse pensamento me deixou transbordante de felicidade: eu conheço alguém capaz
de mudar a história, e se eu estou voltando para casa com o conselho dessa
pessoa, eu tenho um pedaço dela em mim, então eu sou um pouco Alessandra agora,
e posso mudar ao menos a minha história. Se ela tem esse ânimo, eu tenho também,
só deve estar escondido em algum lugar e eu devo achar. Então não faz diferença
nenhuma o joguinho ou o curso de inglês, agora eu entendo com o coração. O meu
valor está em o quanto eu lanço de mim no mar da vida, no mar da fé. Sim cara!,
falei alto como se falasse com Alessandra, sim, sim!, eu tenho esse valor e eu
posso sim. Sempre.