eu posso sim. sempre

Quando alguém percebe que Alessandra não é bela já é tarde demais. Eu mesma paradoxalmente já não consigo suportar essa frase porque Alessandra é bela para mim. Analisando sua beleza comparada a um rosto de beleza clássica, eu diria... eu diria, ora, o que vem a ser beleza clássica? A beleza de Alessandra é clássica, pois não? Há um olhar macio docemente enquadrado por um rosto suave. Há uma boca sempre risonha e linda. Há cabelos ondulados realizando flocos na moldura desse rosto. Há um delicado corpo esguio. Há suavidade de gestos, o que mais falta para essa beleza ser clássica? Nada. É a clássica beleza de Alessandra, é o que dizemos todos nós, seus amigos admiradores, e lá estava eu, na condição de amiga e admiradora ouvindo Alessandra falar.

Alessandra escolhe um pedacinho de pano da blusa, ou de qualquer parte de suas longas saias esvoaçantes para dali extrair um fiozinho que apenas ela percebe, e fala conosco ajeitando esse fio invisível. Ninguém tem coragem de dizer a ela que não há fio nenhum, vai que é algum vestidinho de fada que ela costura, não passa pela cabeça de nenhum de nós atrapalhar seu trabalho. E costurando que costurando, Alessandra vai costurando as ideias, enquanto eu me sinto até culpada por estar forçando-a a falar tanto, mas como resistir se é um deleite?

Eu estava em casa me sentindo estúpida por ter passado semanas jogando absurdos joguinhos ao computador, e para espanar essa doideira procurei Alessandra como quem procura um padre, precisava me confessar, quem foi que disse que confessar algo não é libertador? Pois ela me libertou:

– Alicinha, o compulsivo não é melhor nem pior do que aquele que não é compulsivo. – Me diga: o que é ficar um dia inteiro de frente para o mar, tomando cerveja? – Não é também uma compulsão? – Você já reparou que algumas compulsões a sociedade aceita, outras não?

Preferi não enveredar por tão delicado assunto, pois dali poderia sobrevir, pela lógica da argumentação, justificação para a mais variada gama de atividades, então resolvi extrair do argumento de minha amiga a parte boa, no caso, que jogar ao computador não era maléfico de modo algum. – Só é maléfico, ela disse, se o jogo estiver ocupando todos os espaços de sua vida onde você poderia estar realizando algo melhor para você, para seu bem estar, para sua qualidade de vida, mas pega leve com você mesma, e não se sinta culpada ao sentir prazer nos seus joguinhos coloridos. Jogue, se você se sente bem.

Deixando de lado um chapeuzinho de gnomo que costurava para melhor gesticular, Alessandra olhou para os céus como a reclamar com Deus: – Culpa, culpa, culpa. Odeio a culpa. Eu só não odeio Deus por causa da culpa, porque Deus não tem culpa da culpa. A gente inventou a culpa porque precisava dar a Deus uma forma limitante. – Cara, a gente não podia deixar Deus na vastidão do universo, cuidando lá dos terremotos e maremotos, porque precisamos enquadrar o cara numa caixinha chamada culpa? – Putz, cara, e ela retomava a costura do chapeuzinho de gnomo, – é um papel muito pequeno para um Ser que dizem ser maior que o mundo – o de patrocinador das nossas culpas, você não acha Alicinha?

Alessandra está entre os poucos que me chamam de Alicinha, os poucos que me respeitam deveras, porque ela sabe que eu sei que me chamar de Alicinha é um respeito. Eu, não ouso dar a ela um apelido. Pronunciar Alessandra é gostoso demais, e a sua figura, embora frágil, não comporta apelidos, sim Alessandra, concordo. É apequenar Deus, disse, e pior, é dar a Ele um atributo oriundo das trapaças do nosso ego. Já me sentia melhor por ela ter me absolvido dos jogos eletrônicos. – Alicinha, ela disse, se a compulsão para os jogos lhe incomoda, direcione sua compulsão para outra coisa, e eu pensei no sempre adiado curso de inglês, how do you do, Alicinha?, jogado nos porões da minha preguiça.

– Eu não tenho raiva de Deus, disse ela costurando rendinhas na barra do vestidinho de fada, eu tenho raiva do que as pessoas fazem com a suposta figura de Deus, é daí que sou ateia, é daí que eu choco as pessoas. – Se Deus existe, eu não preciso acreditar nele, lá eu duvido da existência do fogo, do ar? – É o caso, sim, de perguntar se Deus acredita em mim, porque a minha parte eu faço, ele que faça a dele, e que de preferência seja a de acreditar em mim e me deixar em paz, que cuide do universo, que não haja maremotos e terremotos. – Você acredita que uma funcionária da minha equipe me disse que ia rezar para que Deus abençoasse o nosso trabalho para que nada saísse errado no dia da reunião com o presidente? – Eu disse a ela – minha querida: vamos fazer tudo para que nada saia errado, é mais seguro. Risco zero de nossa parte é o que eu sempre digo a meus funcionários. Quero chegar ao presidente e dizer que a nossa equipe está estalando de perfeita, e não que se Deus quiser tudo sairá bem. Alessandra é assessora em um importante órgão do governo, acho que lá ela não costura vestidinho de fada não. – Deus que faça e muito bem feita a parte dele, que eu por aqui me encarrego da minha. Quem conhece o órgão do governo a que ela pertence sabe que não é uma simples fala de efeito, lá a coisa funciona pra valer, e Alessandra tem sua grande participação nisso.

– Mas Alicinha, isso choca as pessoas, ela diz. Todo mundo quer atribuir uma parcela de suas culpas ou de suas vitórias a Deus, parece que todo mundo tem medo de se assumir, depois dizem que seguem a Jesus, e Jesus não foi um cara que super se assumiu? Claro que ela sabe que eu sei que o Jesus a que ela se refere tanto pode ser o de carne e osso quanto um Mito, o que para ela não faz nenhuma diferença. Ela continua: Jesus não pediu seguidores, ele veio e fez a coisa certa, e a mensagem que ele deixou foi: – agora façam vocês a coisa certa. O que vale dizer: – não sigam meus passos perfeitos, deem os seus passos perfeitos nesse mundo imperfeito, e enfatiza deixando de lado um bolsinho do vestido da fadinha: os seus passos perfeitos. Parece até que ela se picou na minúscula e invisível agulhinha, porque nesse momento Alessandra fica a olhar para as próprias mãos, pensativa.

Ela sabe idiomas, sabe cozinhar, cuidar de plantas, pintar, tocar instrumentos, ela sabe escrever histórias para adultos e crianças, isso tudo além de assessorar num alto escalão deste Brasil, e o que é melhor: ela existe de verdade, e não só nos meus sonhos. Ela existe e está ali, costurando um vestidinho quiçá para a minha fadinha ou uma túnica para o meu anjinho da guarda, e quem vê o sorriso no rosto de Alessandra ao falar acredita que de fato ela vê aquela fadinha ou aquele anjinho ali, pairando em sua magnífica sala por ela mesma decorada.

Eu já cansava Alessandra demais, e ela teria um voo para Brasília ainda naquela noite, urgia que eu fosse, uma pena.

E beijos, e volte, e telefone, aquelas frases de despedida. Quando me vi na calçada da ruazinha quieta pensei imediatamente em Sparkenbroke, de Charles Morgan.

Não saberia descrever os detalhes do trecho, creio que um clérigo conversava com uma fiel. Analisava a cena em que Jesus convida Pedro a pisar no mar da fé: Pedro chega a caminhar alguns passos, mas duvida, não de Cristo, mas dele mesmo, e afunda. Se Pedro tivesse segurado para sempre aquele instante em que ele foi impactado pela própria coragem sem medir consequências, se aquele esforço tivesse ficado por mais tempo em seu ânimo, Pedro viraria um Cristo, e talvez a história hoje fosse outra. Pedro, de um pequeno lago em um lugar esquecido do planeta, se alçaria ao céu do qual ele duvidou.

A história seria outra se Pedro fosse Alessandra, e esse pensamento me deixou transbordante de felicidade: eu conheço alguém capaz de mudar a história, e se eu estou voltando para casa com o conselho dessa pessoa, eu tenho um pedaço dela em mim, então eu sou um pouco Alessandra agora, e posso mudar ao menos a minha história. Se ela tem esse ânimo, eu tenho também, só deve estar escondido em algum lugar e eu devo achar. Então não faz diferença nenhuma o joguinho ou o curso de inglês, agora eu entendo com o coração. O meu valor está em o quanto eu lanço de mim no mar da vida, no mar da fé. Sim cara!, falei alto como se falasse com Alessandra, sim, sim!, eu tenho esse valor e eu posso sim. Sempre.

no entorno de sua existência


Eu me lembro do nome do livro, é Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski. Fala da dura vida numa prisão gelada na Sibéria contada pela visão de um nobre, no caso o próprio segundo dizem, não sei ao certo, e já estou muito velho e cansado para ficar recorrendo a motores de busca, e nem isso importa tanto para o que quero contar. O que quero contar, e o caso não é exatamente contar, mas segurar uma ideia, é a de um pobre diabo encarcerado entre tantos ali, com ele. O sujeito, segundo a narrativa, passava os seus dias andando de um lado para o outro com aparência atarefada, como se estivesse a serviço de alguém ou algo muito importante. Ia e vinha nessa, digamos ocupação. Não sei por que me vem à mente a imagem de um maníaco depressivo, assim mesmo, o nome politicamente incorreto do transtorno bipolar do humor. Ou um psicótico obsessivo compulsivo, sinto isso entre as linhas da narrativa, um sujeito indo para lá e para cá, parecendo ocupado numa prisão, sinto pena. De tempos em tempos, do nada, ele interrompe suas idas e vindas, para em frente ao narrador e pergunta algo, ouve a resposta, agradece e volta ao seu caminhar desvairado, essa sendo a única comunicação entre ambos por anos. Não lembro agora do teor das perguntas, mas eram descontextualizadas. Nada como que dia da semana é hoje ou você sabe as horas. Ele pede respostas a perguntas específicas. Não me lembro, mas posso dar um exemplo: você é passageiro de um mesmo ônibus todos os dias, no mesmo horário e com as mesmas pessoas. Um determinado sujeito que você conhece apenas de vista, do nada lhe pergunta, por exemplo, se você sabe o nome completo do governador do estado, uma data histórica, ou o autor de um romance. Isso tudo levando a crer que aquele indivíduo tem você na conta de um erudito, um portador de respostas. Você, educadamente, dá a resposta correta, e não faz nenhum comentário do tipo você me conhece? E a vida segue assim, por anos e anos, a comunicação entre os dois não passando disso.

Deu pra entender?

O perguntador esquisito era eu, mendigando sua atenção. O respondedor educado era você. E hoje isso me é tão claro, que chego a corar de constrangimento. Tentando ver pela ótica do miserável encarcerado, sinto que ele precisava ter algum vínculo com aquele preso que ele considerava especial, mas que na falta de diálogos comuns, dada a distância cultural e de afinidades, só conseguia fazê-lo através de perguntas imaginadamente cultas. Era um vínculo pequeno, mas um vínculo do qual ele precisava, e daí o espaço de tempo – as perguntas eram poucas. Imagino o pobre matutando em suas andanças pela prisão sobre o que perguntar...

Quis fazer esta confissão, porque é o único discurso que consigo articular no lugar de um adeus, agora que me conscientizei disso e não tenho mais nada a dizer, então adeus a quê? Não sei. Mas minha mente de antigo contabilista precisa colocar esse pensamento em uma prateleira apropriada, para equilibrar os dois lados desse balancete.

Sim, é isso.

Pensando melhor, não é a vergonha de ter me comportado como esse pobre o que melhor cabe aqui. O que melhor cabe aqui é o agradecimento por sua atenção, suas falas gentis, educadas, corretas, completamente desvinculadas de perguntas e emoções rasas. Pelo respeito.

Pensei em algo óbvio agora: quando nos libertamos da prisão, nos libertamos também dos companheiros de prisão. Aquelas duas vidas tão diferentes se libertaram uma da outra quando as portas se abriram ao narrador. O narrador ofuscado pela alegria da liberdade se esquece desse detalhe, mas com o fim daquela situação, ele deixou de ter de se inclinar gentilmente de tempos em tempos e dar respostas educadas a um sujeito interessado, sabe-se lá Deus por que, em umas poucas respostas. Um desvairado manso. Um eu.

Qualquer vínculo desigual é uma prisão, para todos os envolvidos. Essa porta está aberta agora, para nós dois. Minha admiração por você não necessita mais que eu esteja no entorno de sua existência.