no entorno de sua existência


Eu me lembro do nome do livro, é Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski. Fala da dura vida numa prisão gelada na Sibéria contada pela visão de um nobre, no caso o próprio segundo dizem, não sei ao certo, e já estou muito velho e cansado para ficar recorrendo a motores de busca, e nem isso importa tanto para o que quero contar. O que quero contar, e o caso não é exatamente contar, mas segurar uma ideia, é a de um pobre diabo encarcerado entre tantos ali, com ele. O sujeito, segundo a narrativa, passava os seus dias andando de um lado para o outro com aparência atarefada, como se estivesse a serviço de alguém ou algo muito importante. Ia e vinha nessa, digamos ocupação. Não sei por que me vem à mente a imagem de um maníaco depressivo, assim mesmo, o nome politicamente incorreto do transtorno bipolar do humor. Ou um psicótico obsessivo compulsivo, sinto isso entre as linhas da narrativa, um sujeito indo para lá e para cá, parecendo ocupado numa prisão, sinto pena. De tempos em tempos, do nada, ele interrompe suas idas e vindas, para em frente ao narrador e pergunta algo, ouve a resposta, agradece e volta ao seu caminhar desvairado, essa sendo a única comunicação entre ambos por anos. Não lembro agora do teor das perguntas, mas eram descontextualizadas. Nada como que dia da semana é hoje ou você sabe as horas. Ele pede respostas a perguntas específicas. Não me lembro, mas posso dar um exemplo: você é passageiro de um mesmo ônibus todos os dias, no mesmo horário e com as mesmas pessoas. Um determinado sujeito que você conhece apenas de vista, do nada lhe pergunta, por exemplo, se você sabe o nome completo do governador do estado, uma data histórica, ou o autor de um romance. Isso tudo levando a crer que aquele indivíduo tem você na conta de um erudito, um portador de respostas. Você, educadamente, dá a resposta correta, e não faz nenhum comentário do tipo você me conhece? E a vida segue assim, por anos e anos, a comunicação entre os dois não passando disso.

Deu pra entender?

O perguntador esquisito era eu, mendigando sua atenção. O respondedor educado era você. E hoje isso me é tão claro, que chego a corar de constrangimento. Tentando ver pela ótica do miserável encarcerado, sinto que ele precisava ter algum vínculo com aquele preso que ele considerava especial, mas que na falta de diálogos comuns, dada a distância cultural e de afinidades, só conseguia fazê-lo através de perguntas imaginadamente cultas. Era um vínculo pequeno, mas um vínculo do qual ele precisava, e daí o espaço de tempo – as perguntas eram poucas. Imagino o pobre matutando em suas andanças pela prisão sobre o que perguntar...

Quis fazer esta confissão, porque é o único discurso que consigo articular no lugar de um adeus, agora que me conscientizei disso e não tenho mais nada a dizer, então adeus a quê? Não sei. Mas minha mente de antigo contabilista precisa colocar esse pensamento em uma prateleira apropriada, para equilibrar os dois lados desse balancete.

Sim, é isso.

Pensando melhor, não é a vergonha de ter me comportado como esse pobre o que melhor cabe aqui. O que melhor cabe aqui é o agradecimento por sua atenção, suas falas gentis, educadas, corretas, completamente desvinculadas de perguntas e emoções rasas. Pelo respeito.

Pensei em algo óbvio agora: quando nos libertamos da prisão, nos libertamos também dos companheiros de prisão. Aquelas duas vidas tão diferentes se libertaram uma da outra quando as portas se abriram ao narrador. O narrador ofuscado pela alegria da liberdade se esquece desse detalhe, mas com o fim daquela situação, ele deixou de ter de se inclinar gentilmente de tempos em tempos e dar respostas educadas a um sujeito interessado, sabe-se lá Deus por que, em umas poucas respostas. Um desvairado manso. Um eu.

Qualquer vínculo desigual é uma prisão, para todos os envolvidos. Essa porta está aberta agora, para nós dois. Minha admiração por você não necessita mais que eu esteja no entorno de sua existência.