impensáveis, surpreendentes, absolutas


Dada a imaginar, ou melhor, a desenhar em minha mente com detalhes milimétricos tudo o que eu acho que seja ou desejo que me aconteça, não na falta de ter o que fazer, mas sim no excesso de ter o que fazer já consagrado ao automático, eu tinha pintado com todas as cores do arco-íris e com algumas outras que descobria, como seria o dia, o momento, o minuto e o segundo de lhe ver depois de tão longo tempo de sentida separação. Começava pela imaginação de como estaria o seu rosto, adivinhando as novas e desejadas rugas que eu precisava que lhe viessem logo para acompanhar as minhas, que eu tentava produzir em você a partir de cada análise que fazia do meu rosto sempre que descobria novas rugas em mim. O mesmo acontecia com os meus novos fios esbranquiçados, sempre lembrando que fios esbranquiçados masculinos são interessantes, ao contrário dos femininos, então eu dava a você o merecido desconto do gênero. À medida que embranqueciam os cabelos do charmoso jornalista da tevê, era assim que eu ia imaginando os seus, com aquelas esparsas mechas raiadas a conferir elegância ao contorno do seu rosto expressivo. Os meus, claro, eu cobria rapidinho com tonalizante, no medo que você aparecesse sem avisar e me encontrasse sem as palavras corretas para improvisar a devida explicação do porque envelhecia tão rápido, o que, claro, você não perguntaria, mas o seu olhar talvez. E assim eu ia, dia a dia, e os dias eram longos e as noites mais ainda, acrescentando detalhes ao desenho do dia do reencontro. E visualizava cenas como qual de nós estenderia primeiro as mãos para o abraço. Ou seria simultâneo? Modificava essa cena, trocava de vez a pessoa que separaria primeiro o abraço. Em outra cena você, forte como é, passaria os braços à volta da minha cintura e me ergueria do solo. Colocava lágrimas nos meus olhos ou não. Nos seus. Cheguei a me imaginar beijando longamente suas mãos que eram a minha paixão e a minha maior saudade. Era sempre na sequência do abraço que eu introduzia esse beijo em suas mãos, o que queria fazer olhando fundo nos seus olhos com os meus marejados. O interessante é que nunca pensei nas palavras, dispensando-as, creio eu, à vista da imensidão do gestual que povoava a minha imaginação. E assim se passaram os dias e os anos, e quando eu me despedia dele nos finais de noite, o quadro sempre estava acrescido de uma pincelada nova ou de uma antiga refeita.

Mas a vida existe para pregar peças na gente, senão, qual é a graça de viver? A vida ou Deus, o único concretizador autorizado de sonhos, que deve rir muito de nós, os aprendizes, os que sonhamos esquecendo ingenuamente de levar em conta a lei do caos. Eu, que me imaginava esperando por você num saguão de aeroporto ou de rodoviária, numa romântica estação de trem ou no cosmopolita bloqueio do metrô, na entrada de uma famosa sala de concertos ou num perfumado café de uma mega livraria, lhe aguardava numa constrangida cadeira que nunca habitou os corredores dos meus planos, num ambiente tristonho, também desconhecido de minhas técnicas contemplativas, sem ter absolutamente nada a olhar para preencher o tempo da espera, pois me negava a erguer os olhos e contaminá-los com coisas que não queria admitir na paisagem que a qualquer momento seria preenchida por você. Não tinha coragem nem de olhar para a porta, pois me recusava a associar aquela porta sem a mínima sugestão de encantamento à sua figura. Esperava então que você se aparecesse como um holograma, decerto, porque senão, como e por onde começaríamos?

Foi então que Deus, o autorizado concretizador de sonhos e eventual pregador de peças se fez presente, porque olhando sem atenção para um árido tapete de cor desatualizada, eu dei de cara com os seus pés materializados à minha frente, que penetraram sem introdução alguma em meu campo de visão. Não seus olhos, não suas mãos, não seus braços estendidos e muito menos seu sorriso. Não sua voz pronunciando o meu nome com as muitas entonações que idealizei, nem o mais leve suspiro acompanhado de um banal que saudades, não: – os seus pés. Autênticos e vivos, falando de você muito mais do que eu seria capaz de imaginar em meus repetidos dias de desenhista sonhadora. Seus pés se entretinham a conversar com outro par de pés que não abrangi, apenas captei numa mancha, e seus pés eram falantes, transbordantes de juventude e vitalidade, interrogadores, preocupados, interessados nos pés à frente e nos pés à volta, a pouquíssimos centímetros dos meus tímidos e pequeninos pés de senhorinha meio-idosa, essa completamente fora do seu campo de visão, mas à ínfima distância de encostar os pés nos seus e deixar que eles se dissessem olá, que saudades, ou não faço ideia do que mais, porque um diálogo entre pés nunca fez parte do meu estoque de sonhos do nosso reencontro. Não tive lembrança de evocar, mas evoco agora, os versos de Violeta "Com ellos anduve ciudades y charcos, playas e desiertos, montãnas y llanos, y la casa tuya, tu calle y tu patio", e ainda bem que não o fiz, porque teria desabado a chorar de emoção de maneira tal que as demais pessoas presentes no ambiente jamais entenderiam. Cansados como nos versos, meus pés teriam muito mais a contar do que eu, e eles falariam numa linguagem que nunca aprendi, e falariam com propriedade, porque eles sim sabiam das montanhas e planícies por onde andei, muito mais do que eu. Eles sim, conheciam cada detalhe da sua casa, sua rua, seu pátio, muito mais do que eu. Mesmo assim, nem nos meus sonhos mais espalhafatosos, eu teria colocado os nossos pés lado a lado como os personagens principais da cena do nosso reencontro, eles, e não minhas comovidas idealizações ancoradas em cenas emprestadas de novelas ou filmes antigos. Mas Deus sabe o que faz, então, naquele momento sonhado há tantos anos por mim, ninguém mais do que Ele, o próprio, dirigia a cena, ou antes, dirigia os nossos pés, você e eu sendo simples coadjuvantes da cena que nos escapava. Não me recordo de quanto tempo passou e nem dou conta de detalhar tudo o que houve, até porque não seria mística o bastante para me aventurar a dizer que nossos pés conversaram, mas posso abrir um pequeno espaço na realidade e transformá-la em fantástica, para imaginar que em algum momento eles podem ter sacado da importância de  estarem preparados para a rota do improvável, algo como o inimaginável que estava a nos acontecer, nossos pés se reencontrando antes de nós mesmos, carregados de histórias de cidades e charcos, praias e desertos, montanhas e planícies ou mesmo as histórias mais banais, das nossas ruas e pátios percorridos por eles, isso tudo dito numa linguagem que não posso utilizar aqui porque desconheço.

Em algum lugar do universo ou ali mesmo, Deus ria.  Entendi que, com minhas inúmeras colagens cênicas, eu nada mais fizera do que uma única oração estendida, para que Deus tomasse conta do que seria o momento mais significativo da minha vida, oração que naquele momento Ele respondia da forma mais original, a Dele, e como todos nós sabemos, as respostas divinas são impensáveis, surpreendentes, absolutas.