Jesus finalmente está de volta em nossa casa

– Quem era ao telefone? Cruzes, você está branca...

 – Era Pedro. Diz que ele vem. Finalmente.

– Ele quem mulher?

– O hôme.

– Que “hôme”? Desembucha mulher, toma este copo de água. Quem vem? Ai! Ai, Jesus, não vá me dizer que...

– O próprio. Pedro, Jesus e a turma toda.

– Quando? – Agora!
– Assim de última hora? Minha Nossa Senhora!

– Ela vem, também. E olha a casa, olha essa bagunça! Pensa que Maria não repara? E agora? Ai meu jesuscristinho...

– Já sei, vamos chamar a Marli. Ela tem uma mão de ouro pra limpeza, e é rápida a danada. Ela começa pelos banheiros, ajeita os quartos...

– Ai Jesus!

– Que foi, para de tomar o nome dele em vão...

–Toalhas de mesa! E guardanapos. E lençóis, se ele resolver pousar, e fronhas, e toalhas de banho, de rosto, toalhas de mão, e não esqueça que grande parte das amigas de Jesus são damas da alta sociedade.

– Que isso, mulher, seu enxoval é lindo. E as toalhas bordadas que trouxemos da Ilha da Madeira?

– Meu enxoval está lindamente enfiado numa gaveta cheirando naftalina!

– Toca lavar tudo.

– Sem sol? Não vai secar. Lembra daquela secadora que você ficou de consertar?!

– Já sei, vamos pedir pra Amarílis.

– Beleza, liga pra ela. Só que...
– ai Jesus...

– PARA DE TOMAR O NOME DELE, que foi agora?

– Esqueceu dos seus sobrinhos? Que comem feito lima nova? Imagine aquelas três dragas aqui, mais a Amarílis, ou você acha que ela vai se contentar em lavar a roupa e não vir aqui pra boca livre? Fora a tropa toda, O QUE NÓS VAMOS SERVIR?!

– Calma. Calma. Fique calma.

– Não me mande ficar calma. Estou em pânico. Precisa ser algo elegante, o que acha?

– Não se preocupe, o importante é a variedade. Veja: bacalhau desfiado temos um tantão no friser, e carnes temos cupim, picanha, filés, lombo... – lombo não pode, esqueceu? – Ah, mulher, Jesus não liga mais pra isso não. Olha, fica faltando mesmo uns camarões pra uma moqueca, umas lagostas para dar um toque requintado, um pirão caprichado, pode deixar, estou indo ao mercado municipal.

– Camarões e lagostas também ouvi dizer que... esquece, ok, traz.

O Jão ligando o carro eu corro atrás dele: – Traz batatas também, um montão. E cebolas, e temperos, e frutas, Jesus ama frutas, e não se esquece da farinha de mandioca, ai meu Deus!!

– Agora é Deus? O que mais?

 – Precisamos de vinho. Precisamos de MUITO vinho. Passa naquela Maison bacana lá.

– Você está louca? O preço lá é pela hora da morte. Deixa que eu
me viro no mercadão. Er... me dá o seu cartão?...

– Afe. Leva o de débito e o de crédito, acho que não temos limite para tudo isso. Tenta parcelar o vinho.

– Oi, bom dia! É dona Iracema que chega. Que corre-corre é esse, ouvi dizer que a Marli foi convocada pra vir limpar a casa às pressas, vai chegar quem?

– Er, é... bem...Jesus.

– O quê? E você não falava nada? Eu vou já pra sua cozinha fazer meu famoso doce de batata doce com cravo, que eu sei que Jesus adora, é o tempinho de ir lá em casa buscar os ingredientes...

O problema é que dona Iracema tem marido e cinco filhos, eu penso, já começando a sentir um início de desespero. E eles virão, com certeza. Chega Amarílis.

– Já joguei tudo na máquina. Precisa amaciante, você tem?

– Não, e o pior é que o Jão levou meus dois cartões no mercadão.

– Pode deixar, eu penduro.

 – Mas não comente nada que...

Tarde demais, ela já foi. E pior, vai comentar. E o dono da venda tem esposa e filhos, tudo bacuri, e tudo morto de fome, e a molecada adora ver Jesus. Melhor ver se tem refrigerante. Claro, não tem.


 – Alô, seu Domingos? Olha, a Amarílis está chegando aí, pede pra ela trazer três dúzias de refrigerantes...

– Quem vai chegar em sua casa? Os três reis magos?

– Quase. É... bem...Jesus. Pedro ligou.

– Jesus? A meninada vai adorar saber. Sabia que ele adora pudim de leite condensado? Minha sogra dona Célia faz como ninguém, vou já pedir pra ela fazer bem uns quatro aqui no forno da padaria. Vem a tropa toda, não vem?

– É... parece que sim, Jesus não costuma andar sozinho por aí...

– Vou mandar umas cervejinhas.

– Cervejinha não, o Mestre pode não gostar, ele...tum-tum, o Domingos desligou. Tudo bem, cervejinhas.

E em menos de quinze minutos está tudo lá, quatro engradados de cerveja, quatro engradados de refrigerantes, e dona Iracema já está tomando conta da cozinha com os preparativos do doce de batatas, o que me lembra de ligar pro Jão perguntar o que é dos camarões e as lagostas.

– Já estão aqui, já estou voltando, problema é o trânsito dos diá... problema é o trânsito. Comprei atum também, lindo, enorme, o Tomé não vai acreditar, vai achar que é um golfinho, ah, e comprei carne seca, se não me engano o Pedro deu de gostar de carne seca fritinha. E comprei as frutas, e farinha de mandioca, e mandioca. Pra fazer frita.

– E o vinho, foi...tipo...muito caro?

– Foi uma fortuna, melhor eu nem falar, como estão as coisas por aí?

– Eu já coloquei o bacalhau no forno, estou fazendo um panelão de arroz, outro de feijão, estou assando as carnes, dona Célia está fazendo uma cacet...um monte de pudim, e...bagunça da Marli...dona Iracema, afe...Chega logo, por misericórdia.

Quem chega é o Carlão. – É verdade esse beó? O hôme está chegando aí?

– Não chame a chegada do Mestre de beó. Sim, ele vem, mais a turma.

– E você vai receber Jesus com camarãozinho e bacalhauzinho? Mas só mulher mesmo, e a bichinha do meu irmão. Esse evento pede é um churrasco, coisa de macho, deixa comigo que eu vou chamar os caras.

– Chamar quem?! Nem pense em trazer o Bafo e o Bola, era só o que faltava, Carlão, É O MESTRE!!

Mas o Carlão já foi. Atrás dos caras e dos pertences do churrasco. E não adianta reclamar, eles já estão lá, fazendo um fumaceiro medonho, e já estão deitando as linguicinhas e as asinhas de frango, e a tralha toda. E já estão tomando cervejas, Jesus Cristo, cervejas.

– Tiá, vai ter caldinho de feijão? É o folgado do Bola.

– Bem, eu...tá...vai. Daqui a pouco eu levo lá. Eu levo o caldinho e vejo um balde de sardinhas, NINGUÉM VAI LIMPAR SARDINHAS NO MEU TANQUE!

– E ninguém vai me impedir de assar sardinhas na brasa pra Jesus, é o Bafo, faca em riste, recuo diplomática e cautelosamente, da faca, do bafo e do Bafo, ok, sardinhada pra Jesus. O balde transborda, é bom que o Mestre venha com muita fome...

A bacalhoada já está quase pronta, o atum já está apurando no forno com as batatas, os camarões e as lagostas estão deixando um cheiro delicioso no ar, dona Iracema, prova esta carne, não está cheirando peixe? – Não, filha, nossos sentidos nos enganam. Dona Iracema citando Descartes era só o que me faltava... A Marli resolveu lavar toda a porcelana, bagunça total na cozinha, Amarílis chegando com as roupas cheirosas e passadinhas, dona Iracema quase que queima o doce de batata doce, e os netos da dona Célia chegaram cada um segurando um formoso prato de pudim. Ainda bem que eu e o Jão investimos numa cozinha grande e equipada, na verdade nosso sonho sempre foi esse, e no fundo sabíamos que mais dia menos dia Jesus passaria de novo por aqui.

– Gente, não vai ter uma saladinha? É a esposa do seu Domingos do mercadinho, a Rosa. Imagina, não servir uma saladinha...

– Os rapazes lá fora fizeram um vinagrete...

– Ah, mas aquilo é molho de churrasco, falo de uma salada bem caprichada....

– É...do jeito que a mulherada que acompanha Jesus é cheia das finuras, acho melhor uma salada sim, faz uma salada e bota uns ovos. Não tem ovos.

– Me dá o seu cartão?

– Que tal o SEU cartão?

– Não fique estressada, está bem, o meu cartão, pô, vem o Mestre, Paz!

– Paz... com o MEU cartão. Sei... Ai Senhor Amado, como vou pagar essa conta? Esse vinho?

Barulho terrível lá fora, um pagodaço, chegou uma turma com instrumentos, o churrasco rola solto, um cara que eu nunca vi está na minha cozinha fazendo uma jarra enorme de caipirinha de vodka, CAIPIRINHA DE VODKA NÃO, O MESTRE NÃO VAI GOSTAR.

Falei pras paredes. E dá-lhe caipirinha de vodka, e não é que ficou boa demais? – Humm... E com esse caldinho de feijão então? O Jão, animado, resolve fritar torresmos. Uma babilônia de torresmos. E mandioca frita. E batatas fritas.

– Jão, isso é uma Torre de Babel de mandiocas, mais um Monte Sinai de batatas...

– Os filhos de Zebedeu. Adoram frituras.

– Virgem Santa, (– Ó, Maria não gosta que chama ela assim não...) é verdade, ainda bem que o Jão lembrou. E trocamos um beijo besuntado a torresmo. E eu não posso esquecer que eles adoram assentar à direita e à esquerda do Mestre, preciso tomar cuidado senão sai briga... O que mais está faltando?

– Polenta! A Madalena adora uma polenta.

– Deixa que eu faço, é a Raissa do Carlão, de top e shorts curtíssimos. Boto um molho da hora por cima tia, com parmesão ralado e azeitonas. Tem azeitonas?

– Misericórdia! Não. Um dos filhos da Amarílis corre comprar, e por milagre (do Mestre, à distância, só pode ser), não pede dinheiro.

Pagode no maior volume, parece que alguém compôs um
sambinha especial pra Jesus. Fumaceiro medonho, alguém trouxe uma imensa picanha, (corte especial pra Jesus, é o Décio, açougueiro) e está rolando cerveja e caipirinha com pão de alho e queijo de coalho, e NÃO TOQUEM NO VINHO! Falando em vinho, ai meu Jesus...

– Que foi agora, pergunta o Jão.

– As taças quebraram na mudança! Acha que eu vou servir vinho pra Jesus em copos de requeijão? Preciso de taças, não há taça que chegue!

– Minha sobrinha que casou ganhou um monte, vou lá e trago, diz a Marli.

Traz as taças e a sobrinha, pensei, já passando do desespero para o pânico absoluto, a turma só aumenta... E o maridão folgado dela, o Tato, sujeito folgado, ai jesuscristinho...

Mas as taças chegam, e a sobrinha com o marido folgado também, parece que Jesus esteve no casamento deles, querem mostrar as fotos pra ele. Nossa elegante e espaçosa sala de jantar tem uma linda mesa, que na verdade compramos pensando nele. Mas agora vejo que só vai dar pra comportar Jesus, os discípulos e as mulheres, como a notícia da chegada de Jesus se espalha! O que fazer? Mas o Tato mostrou que serve para alguma coisa, e em um instante está trazendo com os rapazes do pagode aquelas horrorosas mesas de plástico de boteco, com as inevitáveis cadeiras brancas. Um horror! Se a decoradora de nossa casa visse... Não vai dar pra todo mundo, a maioria senta no chão ou nas poltronas, paciência. A toalha mais linda, branca, da Ilha da Madeira, fica na mesa principal. Juntamos as mesas e emendamos as outras toalhas, ficou um colorido bonito. E flores? Ninguém vai pôr flores na mesa? Maria ama flores...

– Pode deixar, tia, eu trago as flores, diz um rapazinho que nunca vi na vida, quem é ele?

– É o Vladimir, saiu ontem, puxou dois anos. Diz que precisa

porque precisa "levar um lero" com o Mestre.

– Um ex-presidiário aqui!! Meu Deus, mas é o Mestre! E aposto que ele vai trazer flor roubada do cemitério.

Parece que o Vladimir ouviu e gostou da ideia, porque dali a minutos ele volta com uma imensa braçada de cravos-de-defunto amarelos, saidinhos dos túmulos, decerto, ou de alguma coroa de flores, porque o Vladimir é rapaz de expediente.

Paciência. Flor de defunto, tudo bem. As meninas do pagode fazem uns arranjos, e colocam ramos e fitas nas emendas e não é que ficou bom?

– Jão, essas meninas do pagode não poderiam estar com um pouquinho só mais de roupa?

– Fazer o que mulher, elas são da Comunidade do Córrego, e lá usa se vestir assim. Jesus anda sempre por lá ensinando, elas o amam tanto quanto nós, a notícia espalhou...

– É... bom...então tá.

O telefone toca, é Pedro: – Estou com pouca bateria, está tudo certo aí? Já estamos chegando, é que tem uma turma enorme em volta de Jesus que estamos tentando afastar, mas periga de a gente não conseguir e eles irem junto. Vocês fizeram doce de abóbora? Jesus adora doce de abóbora.

Doce de abóbora!

Mas a santa dona Iracema tinha feito. De batata doce, de abóbora e de mamão verde, segundo ela os favoritos de Jesus. Merece um beijo a fofa. E cocada de colher e doce de leite, gente, essa mulher não existe! E ainda mandou o neto buscar cinco potes de sorvete de sabores variados, não é uma gata?

– Eu trouxe um de napolitano, Jesus é maluco por napolitano diz o moleque todo suado da corrida, orgulhoso por também conhecer o gosto de Jesus.

O Jão: – que tal se a gente botasse uma mesa lá fora pras crianças?

– Você cheirou o bafo do Bafo, só pode. E por acaso as crianças desgrudam do Mestre? – Ih, pior que é...

– Jão, volta pras suas frituras, está boa essa carne seca não?...Acho que vou fazer uns pasteizinhos com elas...

Alguém: – Ó Jão, tem um carinha estranho lá fora, sei não, mas acho que ele está puxando fumo...

– Está sim, fui lá, falei com ele. Diz que precisa muito "trocar uma ideia" com o Mestre. Deixa ele lá.

– Mas...drogas no nosso quintal?... – Mulher, calma. Isso é assunto para Jesus resolver.

– Então tá...

O Carlão lá de fora, piadista: – Resolver eu tenho certeza que Jesus resolve, agora problema é resolver a larica...

– Carlão, tu não presta...

Parece que está tudo pronto. Jesus!! Preciso me arrumar, olha como estou suada, e cheiro o sovaco, e vejo ao espelho meu cabelo oleoso, desgrenhado, cheirando a sardinha, olha você Jão, marido do céu, vamos dar um trato, a mulherada repara.

– Não vai não, os chuveiros todos de cima pifaram estou vindo agorinha do banheiro da suíte de vocês, olhei os outros quartos, nenhum está funcionando, algum problema no 220. É a Marli. Com a bela notícia. Vamos receber o Mestre sem um banho. Mas e se o Mestre resolver tomar um banho? Ai meu Jesus, e eu já perdi a conta de quantas vezes tomei seu nome em vão nessa bagunça toda da preparação da festa.

– Pode deixar tia, a gente conserta, diz outro dos filhos da Amarílis, mas pode demorar.

– Então eu vou pelo menos trocar de roupa, gente abaixa esse som! E essa meninada correndo? E quem está assistindo essa televisão? Cuidado menino, você quase derruba esse copo, ai, nããão! O cachorro tinha que fazer bem agora, Jão, corre, limpa aí esse...

– Paz seja nesta casa.

Parece que o tempo para. Parece que nem ouço mais barulho algum vindo de fora. Parece que apenas Ele está aqui. A sua voz e a sua presença dominam todos os espaços. Passou a sensação de cansaço, de suor grudado no corpo, sinto o corpo leve como se tivesse saído de um banho... E eu corro e me penduro ao pescoço do Mestre, o Jão disfarçando o choro se abraça em nós dois e assim ficamos um tempo que eu não saberia dizer, nós três, um bloco. O cachorro late e pula frenético a nossa volta, o Jão acaba se entregando e chora feito um bebê, a cabeça declinada no ombro do nosso amigo amado. Eu, que não posso ver ninguém chorar, desabo meu aguaceiro. Quanta saudade meu Deus... Quanta coisa eu teria pra dizer, mas tudo que quero é ficar abraçada aqui, sentindo o perfume dos seus cabelos castanhos, sua presença reconfortante e suave... E lá longe, muito longe, aquela correria toda, aquela preocupação toda, o cartão de crédito estourado, a turma da boca livre, a fumaça, o ar empestado de cheiro de sardinha, o pagodaço, a cervejada, a rapaziada puxando fumo, as mocinhas em trajes mínimos, a bagunça da cozinha, a meninada correndo, a comida que talvez não chegue, a sujeira do cachorro, o chuveiro que queimou e...

Paz. Estou em absoluta paz. Jesus finalmente está de volta em nossa casa.

analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua

É uma sala envidraçada da metade para cima das divisórias de madeira compensada, grande, quadrada, tendo como único mobiliário uma cadeira com rodízios e uma bancada que toma toda a volta do ambiente. Possui três guichês recortados nos vidros. Um à frente, os outros dois aos lados direito e esquerdo. Pelo da frente, onde fica a porta sempre fechada, entram papéis novos, para serem analisados. Nas aberturas à direita e à esquerda do Analista Carimbador Limitante, respectivamente, pois que estamos falando do Analista Carimbador Limitante, há as Salas de Remissão e Finalização. A sua sala chama-se Sala do Limite. Sobre a bancada, centenas de carimbos, dos quais ele sabe a exata localização, acharia seus carimbos no escuro. Carimbo retirado, carimbo devolvido sempre ao mesmo lugar. Os carimbos ficam pendentes em suportes, como cachos, que ficam alinhados em várias filas e em ordem sobre a bancada às centenas, aproximando do milhar, tendo à sua frente inúmeras almofadas de tintas azuis, verdes e vermelhas por sobre toda a bancada, e também muito bem alinhadas. Seu dia de trabalho começa pontualmente às oito da manhã, e ele embora sabendo que a sala está limpa, gosta de começar seu dia passando sobre os suportes dos guichês uma flanelinha amarela, é o seu ritual de começar.

Às oito horas e cinco minutos, chega o Encarregado da Distribuição de Papéis. Ali não há o hábito da conversa, apenas rápidos cumprimentos, muitas vezes somente um leve aceno de cabeça. O trabalho, todos sabem, é difícil, doloroso, não resta vontade de conversar sobre frivolidades. Mesmo que houvesse, ele, o Analista Carimbador, não teria nenhum assunto que não fossem os casos que analisa, ele não possui vida fora dali. Recebendo os novos papéis, ele inverte cuidadosamente a ordem deles e os coloca sob a pilha em que está trabalhando, tomando o cuidado de não alterar a ordem de entrada de nenhum caso. A primeira Vida que entra é sempre a primeira Vida que sai.

Seu trabalho é analisar Vidas. Sua sala não é a única. O local de trabalho é como um imenso aquário subdividido, onde todos se dedicam a estudar papéis, solitários e em silêncio.

Ele desconhece se seu trabalho e de seus colegas terminam ali, ou se são supervisionados pelos tais Graduados, que todos sabem que existem, mas que nunca viram, mas é bem provável que sim. Ele se sente tão menor, que acha impossível que algo tão importante como Vidas esteja apenas em suas mãos. Mas realiza seu trabalho com a mesma meticulosidade, sabendo-se supervisionado ou não, com a importância que o trabalho merece. Não há nada mais importante do que Vidas, ele sabe. Sabe, porque o que mais desejaria nesse espaço de existência que eles chamam de Estado de Processo, seria justamente ter uma Vida, que a julgar pelos papéis que lê, é algo totalmente diferente do que ele tem. Ele desconhece outro afazer que não seja o de ler e carimbar. Sua jornada termina às seis da tarde, e reinicia às oito da manhã, mas desse período de pausa ele nada recorda. Teme perguntar se seus colegas recordam, e ouvir uma história diferente da sua.

Tudo o que ele sabe é que habita uma existência que fica a meio caminho entre humana e angélica. Se fosse anjo, pensa, teria asas, voaria por aí salvando criancinhas em perigo, e com uma pontada mista de sarcasmo e rancor acrescenta ao seu pensar: – e não viriam tantos papéis assim para a Sala do Limite...

Isso é tudo o que ele pensa, porque o trabalho é extenso, é ler. Ler sem envolvimento emocional, uma leitura racional dos fatos:

Um jovem totalmente dependente de substâncias químicas ilícitas, já consumiu todos os bens da família e agora rouba para sustentar a dependência. Está fraco, alimenta-se mal, compartilha seringas injetáveis com outros dependentes, também abusa de bebidas alcoólicas, é de família pobre, seus pais, exaustos após tantas lutas para a sua recuperação, o abandonaram à própria sorte, está só no mundo sem esperança alguma. São os carimbos da parte esquerda da sala: Finalização. Abaixo desse: Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Outro carimbo: Pneumonia. Abaixo desse, mais um carimbo: Provável Alvo de Extermínio por Seres Malévolos. Para essa Vida não há esperança. Limites como esse, que analisa aos milhares, são de rápida conclusão, não costumam trazer um único facilitador remissivo, qualquer humano faria a mesma análise. E num suspiro junta esses papéis aos que seguirão no final do dia para o seu lado esquerdo, o da Finalização. Desconhece o trabalho do Finalizador, mas pensa que ele é um dos tais Graduados, que reanalisa e carimba a forma efetiva de Finalização, ou que talvez tenha poder para reverter para Remissão, ele não sabe.

As histórias não são sempre assim, dilacerantes, embora o Analista Carimbador não veja nenhum motivo como banal. Há uma enormidade de casos de finalização por idade, e seus motivos desencadeantes, que são na sua grande maioria comuns a todos. A maioria dos casos é o de idosos que praticaram excessos na juventude. E há outra enormidade de casos de finalizações chamadas de naturais pelos humanos, mas ali todos sabem que finalização natural não existe, todas vêm de intrincados caminhos, que são analisados justamente ali, na Sala do Limite. Toda doença vem de algum excesso ou escassez de algo tangível ou intangível. E há outras causas desencadeantes além de doenças, os Limites são em grande quantidade, daí a enormidade de carimbos, muitos são utilizados combinados entre si. Todos os casos possuem múltiplas implicações e complicações, em muitas vezes ele passa o dia analisando uma única Vida, tantas são as variáveis envolvidas. E finalmente há os da tarja vermelha, apenas para serem carimbados: – Finalização. Esses vêm direto dos Graduados, já vêm analisados, é só carimbar. Ele às vezes lê detalhadamente algumas dessas Vidas, por curiosidade, e constata que não existe linha de raciocínio algum, precedente algum, que as leve à enfermidade, ao acidente, à finalização súbita, enfim, ao Limite, mas que passarão por isso, inapelavelmente. São em grande número, para tristeza do Carimbador, que só não é total porque também chegam casos absolutamente sem solução com a tarja verde para o carimbo: Remissão.

Remissão. Felizmente há casos onde se vislumbra uma esperança: um novo tratamento médico, uma intervenção bem sucedida, terapias alternativas, colaboração humana, uma conversão de caminhos: um novo emprego, uma vida mais saudável, um filho, e até eventos intangíveis como o tempo, perdão, amor, preces, às vezes algo simples como uma viagem, e é com um suspiro de alívio que ele envia esses papéis ao seu lado direito, para a Remissão, com os carimbos: Remissão. Esperança. E um outro carimbo com algumas das variáveis acima, ou outras. O maior facilitador dos processos remissivos é o Amor, ofertado ou recebido, assim como Preces.

Ele já não se recorda de há quanto tempo trabalha ali, e bem que gostaria de ter acesso a seus próprios papéis, mas sabe que eles estão em outro Departamento, e não viriam para a sua Sala do Limite. Mas sabe também que bastaria pedir ao Encarregado da Distribuição de Papéis, em toda sua longa existência nunca pediu nada, e sabe que ali não abundam manifestações de sentimentos, a ordem geral é uma só: trabalho. Sabe, portanto, que seria atendido. Mas vai adiando, tem medo, – o meu Estado de Processo terá fim? – ele vai pensando entre uma análise e outra. O medo é de descobrir que não, que aquele seu estado é eterno. –Seria muito triste, pensa.

Não precisou nem formular em palavras ao Encarregado da Distribuição de Papéis, bastou um olhar significativo, algo raro por ali. Há finalização ou remissão para mim? – pensava, e foi isso que transmitiu com o olhar ao Encarregado. Começava a se lembrar de vozes, seria isso o que acontecia em suas noites esquecidas? Vozes que discorriam sobre Estágios de Compreensão. Pausa para Humanização. Pausa para Regulação dos Batimentos Cardíacos. Enxugamento de Emoções Banais. Enfrentamento Racional. Apaziguamento com o Passado. Abandono de Ilusões. Essas lembranças não vieram à sua memória no mesmo instante, vieram no correr de todos os papéis que ele lia e carimbava, lia e carimbava, vieram ao longo do interminável começar e recomeçar de muitos e muitos dias de trabalho. – Estou processando novas orientações, logo, este estado poderá ter fim, – animava-se ele.

E foi assim que num desses dias, pontualmente às oito horas e cinco minutos, a história de seu Estado de Processo eram os primeiros papéis da pilha que recebeu no guichê do meio, que ele colocou cuidadosamente como últimos sob os papéis que já tinha em curso, sem alteração dos batimentos cardíacos e sem ser vencido pela curiosidade. As Vidas tinham mais importância. E nas pausas entre suas análises pensava que caso viesse a remir seu Estado de Processo, gostaria de ganhar uma Vida. Mesmo que fosse para ela finalizar como todas, empilhada, analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua.

cada um voltou a tocar a sua vida da melhor maneira que conseguiu


Esta história se passou numa cidade nada romântica, uma cidade feia; preferimos dizer cidade seca. Ela não tinha árvores, as casas não eram caprichadas, ninguém plantava flores, o sol era escaldante e o povo vivia mal humorado. O senhor prefeito era pouco afeito em cuidar dos assuntos municipais, antes preferia investir os recursos públicos em assuntos de seu próprio interesse. Mas quando chegavam as eleições, ninguém queria tomar a frente de uma cidade com as contas falidas, e ele se reelegia, com sua péssima administração.

A cidade não tinha nenhum ponto turístico, melhor dizendo, tinha um, na forçada, que não passava de um simples olho d’água, que seguia num pobre filete indo juntar-se ao tristonho rio que atravessava a cidade de ponta a ponta. Um rio quase seco, maltratado como o resto da cidade, margens de terra nua, cenário deprimente.

Mas como as pessoas precisam de histórias, e o povo daquela cidade não era diferente, inventaram a história de que o casal enamorado que tirasse fotos ao lado do olho d’água atrairia boa sorte. Era o único ponto para onde afluíam moradores e visitantes, notadamente recém-casados, muitos ainda em seus trajes nupciais, para tirar fotos.

O japonês que tirava fotos resolveu, para amenizar a feiura da paisagem, espetar por ali acolá umas samambaias e outras flores de plástico que, claro, ficaram medonhas, mas que nas fotos davam algum efeito. E assim a coisa ficou.

A cidade, como a grande maioria das cidades pequenas, tinha o seu personagem esquisito, que as pessoas achavam ser uma feiticeira, e isso tão somente porque aquela mulher usava roupas diferentes, meio parecidas com roupas de cigana, fumava cachimbo, plantava ervas estranhas e era solitária. As crianças gostavam de provocar valentias umas às outras, para ver quem tinha coragem de se aventurar até as proximidades da casa dela, que ficava nos altos. Os adultos também cochichavam quando ela passava, sua casa mais de uma vez amanheceu pichada ou com alguma vidraça partida por uma pedra, e as mulheres quando a viam passar recolhiam as crianças e a chamavam de bruxa. Aquelas provocações acabaram por irritar a mulher, ora, tudo o que ela queria era viver em paz, ficar no seu canto, ela não incomodava e não se incomodava com ninguém, então em seu íntimo articulou uma vingança, lançando mão de alguns conhecimentos que julgava possuir.

Então um dia aconteceu. Mais de uma pessoa viu. Aquela mulher desceu dos altos onde morava, em seus trajes longos, pulseiras e brincos esquisitos, perfumes fortes, carregando nas mãos um prato de sal, sim, era sal, ela derramou um pouco pelo caminho, alguém colocou cuidadosamente na língua, não tinha dúvida, era sal. Resolveram acompanhá-la. A mulher desembocou exatamente no local onde ficava o olho d’água, e derramou ali o conteúdo do prato, um prato de sal. Nada aconteceu, as pessoas apenas olharam para esse ato um tanto confusas, mas a mulher tranquilamente voltou para os altos onde morava, sem pronunciar uma única palavra.

O pequeno olho d’agua também era procurado pelas crianças no ir e vir de suas brincadeiras de bola, e é aí que os problemas da cidade começaram. Naquela tarde, as crianças notaram um líquido preto e viscoso misturado às águas, e correram chamar os adultos.

Os adultos coçaram a cabeça, e foram chamar uns barbudinhos de óculos, avental e papetes de uma universidade federal que ficava numa cidade ali pertinho. Que vieram e trouxeram todo um aparato nunca visto, maquininhas que faziam tic-tic-tic, cavoucaram, colheram amostras naquelas pipetas enormes, catalogaram tudo e foram embora, mas dias depois voltaram com técnicos e a notícia – era petróleo.

O senhor prefeito lançou-se sobre aquele terreno como um goleiro ao gol – essas terras são da prefeitura, disse, e tratou de chamar seus homens para murar o espaço, no que foi devidamente vaiado pela população. – Ora, quando vínhamos cá apenas para tirar fotos, o senhor não providenciou nenhum embelezamento, não fosse o japonês que espetou as flores de plástico nem isso haveria, como agora o senhor quer tomar posse de um terreno que não é de ninguém e nunca foi do interesse da prefeitura?

O prefeito evocou leis, parágrafos e incisos, e alegou ser o espaço pertencente ao poder municipal.

No dia seguinte os técnicos da companhia voltaram, com o tal do cavalinho de petróleo, que é aquela engenhoca utilizada para extrair o petróleo de sítios onde a quantidade não pede aparatos mais sofisticados. Pela lei, a companhia e o governo federal tem uma parte nos lucros, o município outra, e os populares, donos do terreno também tem a sua parte. Foi aí que começaram as brigas.

Ocorre que o terreno não era de fato da prefeitura, pertencia a famílias, famílias grandes, que nunca se entenderam justamente em questões de propriedade, e que não iam se entender assim tão facilmente, no calor desse fantástico acontecimento. As brigas foram feias. Podemos resumir dizendo que gente ameaçou gente, que gente matou gente, gente deixou de falar com gente, gente abandonou a casa onde vivia e foi acampar nas proximidades do fio d’água, houve gente que ameaçou o senhor prefeito, enfim, a briga foi de grandes proporções.

O tempo passou. Uma noite a mulher acordou, e dos altos onde morava pode ver a feia engenhoca, que recortada contra o luar lembrava um pavoroso monstro, no seu lento ir e vir, soltando guinchos metálicos arrepiantes. E em sua insônia constatou que se a cidade já era feia em termos geográficos, agora era feia em termos relacionais. Famílias se separaram. Filhos saíram de casa para nunca mais voltar. Pessoas foram mortas à faca, era raro uma noite em que não se ouvia som de tiro de revólver. E os namorados, esses perderam o único ponto de encontro, porque lá se fora para sempre o olhinho d’água. Arrependida, a mulher chorou.

Então no dia seguinte aconteceu. Mais de uma pessoa viu. Aquela mulher desceu dos altos onde morava, em seus trajes longos, pulseiras e brincos esquisitos, perfumes fortes, carregando nas mãos um prato de açúcar, sim, era açúcar, ela derramou um pouco pelo caminho, alguém colocou cuidadosamente na língua, não tinha dúvida, era açúcar. Resolveram acompanhá-la. A mulher desembocou exatamente no local onde ficava o cavalinho de petróleo, cenário de tantas brigas e derramou sobre aquela engenhoca o conteúdo do prato, um prato de açúcar.

O que aconteceu foi que a engenhoca funcionou mais uns minutos, para finalmente, num guincho estranho, parar, numa espécie de estertor final. Chamaram-se os homens técnicos da companhia, e eles cavaram daqui, cavaram de lá, fizeram aquelas medições complicadas para finalmente anunciar, solenes – o petróleo acabou. E desmontaram aquele monstrengo e foram embora, deixando para trás a população embasbacada, agora sem petróleo algum.

No dia seguinte as crianças que voltavam do jogo de bola constataram que o olho d’água tinha voltado. A boa e refrescante água do olhinho tinha voltado! E saíram anunciado.

Gostaríamos de contar que todos viveram felizes para sempre, mas não foi bem assim. Pessoas, como dissemos, morreram. Famílias se separaram. Rancores antigos vieram à tona para não reverterem assim tão facilmente. A cidade contraiu pesadas dívidas.

Mas os enamorados voltaram a tirar fotos no local.

Algumas pessoas subiram aos altos onde morava a mulher, e constataram que ela não era uma mulher má, era apenas uma mulher que tinha sido ferida sem nenhum motivo pelos moradores da cidade. Ela, condescendente, os recebeu com um cheiroso café, pães doces, bolo de aipim, cocadas e outros docinhos, era muito hospitaleira e simpática. Os mais céticos e os menos místicos foram unânimes em afirmar que tudo não tinha passado de um capricho da natureza, e assim os ânimos foram apaziguados em torno de uma mesa de café e coisas gostosas. Foi ela quem deu a ideia de a população plantar grama, rosas, azaleias, margaridinhas do campo, copos-de-leite, bem como árvores e arbustos, no local das fotos, emprestando assim beleza e vida natural ao ambiente preferido dos namorados, o que foi feito, tornando aquele cantinho muito acolhedor. Também fizeram sinuosos passeios, ao largo do qual um carpinteiro colocou uns agradáveis bancos, e as fotos saíram muito mais bonitas, e o local passou a ser muito mais frequentado.

O senhor prefeito, para não ficar atrás, também mandou plantar grama e arbustos floridos nas margens do rio, e transplantou belas árvores como ipês, salgueiros chorões, plátanos, coqueiros, quaresmeiras e fícus, tornando com o tempo a cidade bem mais fresca e agradável. Os moradores por sua vez, para fazer birra ao senhor prefeito, pintaram suas casas em belas cores multicoloridas, plantaram hera nos muros, roseirais nos quintais, margaridas, dálias, cravos, árvores embelezadoras como primaveras e hibiscos, e frutíferas como laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e pereiras, deixando a cidade, num curto espaço de tempo, bela como eles mesmos não eram capazes de imaginar, o que atraiu turistas, dinheiro e por consequência o progresso.

E todos trataram de dar boa conta de suas feridas, de resolverem seus problemas, e cada um voltou a tocar a sua vida da melhor maneira que conseguiu.