Esta
história se passou numa cidade nada romântica, uma cidade feia; preferimos
dizer cidade seca. Ela não tinha árvores, as casas não eram caprichadas,
ninguém plantava flores, o sol era escaldante e o povo vivia mal humorado. O
senhor prefeito era pouco afeito em cuidar dos assuntos municipais, antes
preferia investir os recursos públicos em assuntos de seu próprio interesse.
Mas quando chegavam as eleições, ninguém queria tomar a frente de uma cidade
com as contas falidas, e ele se reelegia, com sua péssima administração.
A
cidade não tinha nenhum ponto turístico, melhor dizendo, tinha um, na forçada, que
não passava de um simples olho d’água, que seguia num pobre filete indo
juntar-se ao tristonho rio que atravessava a cidade de ponta a ponta. Um rio quase
seco, maltratado como o resto da cidade, margens de terra nua, cenário deprimente.
Mas
como as pessoas precisam de histórias, e o povo daquela cidade não era
diferente, inventaram a história de que o casal enamorado que tirasse fotos ao
lado do olho d’água atrairia boa sorte. Era o único ponto para onde afluíam moradores
e visitantes, notadamente recém-casados, muitos ainda em seus trajes nupciais,
para tirar fotos.
O
japonês que tirava fotos resolveu, para amenizar a feiura da paisagem, espetar
por ali acolá umas samambaias e outras flores de plástico que, claro, ficaram
medonhas, mas que nas fotos davam algum efeito. E assim a coisa ficou.
A
cidade, como a grande maioria das cidades pequenas, tinha o seu personagem
esquisito, que as pessoas achavam ser uma feiticeira, e isso tão somente porque
aquela mulher usava roupas diferentes, meio parecidas com roupas de cigana, fumava
cachimbo, plantava ervas estranhas e era solitária. As crianças gostavam de
provocar valentias umas às outras, para ver quem tinha coragem de se aventurar
até as proximidades da casa dela, que ficava nos altos. Os adultos também
cochichavam quando ela passava, sua casa mais de uma vez amanheceu pichada ou
com alguma vidraça partida por uma pedra, e as mulheres quando a viam passar
recolhiam as crianças e a chamavam de bruxa. Aquelas provocações acabaram por
irritar a mulher, ora, tudo o que ela queria era viver em paz, ficar no seu
canto, ela não incomodava e não se incomodava com ninguém, então em seu íntimo
articulou uma vingança, lançando mão de alguns conhecimentos que julgava possuir.
Então
um dia aconteceu. Mais de uma pessoa viu. Aquela mulher desceu dos altos onde
morava, em seus trajes longos, pulseiras e brincos esquisitos, perfumes fortes,
carregando nas mãos um prato de sal, sim, era sal, ela derramou um pouco pelo
caminho, alguém colocou cuidadosamente na língua, não tinha dúvida, era sal.
Resolveram acompanhá-la. A mulher desembocou exatamente no local onde ficava o
olho d’água, e derramou ali o conteúdo do prato, um prato de sal. Nada
aconteceu, as pessoas apenas olharam para esse ato um tanto confusas, mas a
mulher tranquilamente voltou para os altos onde morava, sem pronunciar uma
única palavra.
O
pequeno olho d’agua também era procurado pelas crianças no ir e vir de suas
brincadeiras de bola, e é aí que os problemas da cidade começaram. Naquela
tarde, as crianças notaram um líquido preto e viscoso misturado às águas, e
correram chamar os adultos.
Os
adultos coçaram a cabeça, e foram chamar uns barbudinhos de óculos, avental e
papetes de uma universidade federal que ficava numa cidade ali pertinho. Que
vieram e trouxeram todo um aparato nunca visto, maquininhas que faziam tic-tic-tic,
cavoucaram, colheram amostras naquelas pipetas enormes, catalogaram tudo e
foram embora, mas dias depois voltaram com técnicos e a notícia – era petróleo.
O
senhor prefeito lançou-se sobre aquele terreno como um goleiro ao gol – essas
terras são da prefeitura, disse, e tratou de chamar seus homens para murar o
espaço, no que foi devidamente vaiado pela população. – Ora, quando vínhamos cá
apenas para tirar fotos, o senhor não providenciou nenhum embelezamento, não
fosse o japonês que espetou as flores de plástico nem isso haveria, como agora
o senhor quer tomar posse de um terreno que não é de ninguém e nunca foi do
interesse da prefeitura?
O
prefeito evocou leis, parágrafos e incisos, e alegou ser o espaço pertencente
ao poder municipal.
No
dia seguinte os técnicos da companhia voltaram, com o tal do cavalinho de
petróleo, que é aquela engenhoca utilizada para extrair o petróleo de sítios
onde a quantidade não pede aparatos mais sofisticados. Pela lei, a companhia e o
governo federal tem uma parte nos lucros, o município outra, e os populares,
donos do terreno também tem a sua parte. Foi aí que começaram as brigas.
Ocorre
que o terreno não era de fato da prefeitura, pertencia a famílias, famílias
grandes, que nunca se entenderam justamente em questões de propriedade, e que
não iam se entender assim tão facilmente, no calor desse fantástico
acontecimento. As brigas foram feias. Podemos resumir dizendo que gente ameaçou
gente, que gente matou gente, gente deixou de falar com gente, gente abandonou
a casa onde vivia e foi acampar nas proximidades do fio d’água, houve gente que
ameaçou o senhor prefeito, enfim, a briga foi de grandes proporções.
O
tempo passou. Uma noite a mulher acordou, e dos altos onde morava pode ver a
feia engenhoca, que recortada contra o luar lembrava um pavoroso monstro, no
seu lento ir e vir, soltando guinchos metálicos arrepiantes. E em sua insônia
constatou que se a cidade já era feia em termos geográficos, agora era feia em
termos relacionais. Famílias se separaram. Filhos saíram de casa para nunca
mais voltar. Pessoas foram mortas à faca, era raro uma noite em que não se
ouvia som de tiro de revólver. E os namorados, esses perderam o único ponto de
encontro, porque lá se fora para sempre o olhinho d’água. Arrependida, a mulher
chorou.
Então
no dia seguinte aconteceu. Mais de uma pessoa viu. Aquela mulher desceu dos
altos onde morava, em seus trajes longos, pulseiras e brincos esquisitos,
perfumes fortes, carregando nas mãos um prato de açúcar, sim, era açúcar, ela
derramou um pouco pelo caminho, alguém colocou cuidadosamente na língua, não
tinha dúvida, era açúcar. Resolveram acompanhá-la. A mulher desembocou
exatamente no local onde ficava o cavalinho de petróleo, cenário de tantas
brigas e derramou sobre aquela engenhoca o conteúdo do prato, um prato de açúcar.
O
que aconteceu foi que a engenhoca funcionou mais uns minutos, para finalmente,
num guincho estranho, parar, numa espécie de estertor final. Chamaram-se os
homens técnicos da companhia, e eles cavaram daqui, cavaram de lá, fizeram
aquelas medições complicadas para finalmente anunciar, solenes – o petróleo
acabou. E desmontaram aquele monstrengo e foram embora, deixando para trás a
população embasbacada, agora sem petróleo algum.
No
dia seguinte as crianças que voltavam do jogo de bola constataram que o olho
d’água tinha voltado. A boa e refrescante água do olhinho tinha voltado! E
saíram anunciado.
Gostaríamos
de contar que todos viveram felizes para sempre, mas não foi bem assim.
Pessoas, como dissemos, morreram. Famílias se separaram. Rancores antigos
vieram à tona para não reverterem assim tão facilmente. A cidade contraiu
pesadas dívidas.
Mas
os enamorados voltaram a tirar fotos no local.
Algumas
pessoas subiram aos altos onde morava a mulher, e constataram que ela não era
uma mulher má, era apenas uma mulher que tinha sido ferida sem nenhum motivo
pelos moradores da cidade. Ela, condescendente, os recebeu com um cheiroso
café, pães doces, bolo de aipim, cocadas e outros docinhos, era muito
hospitaleira e simpática. Os mais céticos e os menos místicos foram unânimes em
afirmar que tudo não tinha passado de um capricho da natureza, e assim os
ânimos foram apaziguados em torno de uma mesa de café e coisas gostosas. Foi
ela quem deu a ideia de a população plantar grama, rosas, azaleias,
margaridinhas do campo, copos-de-leite, bem como árvores e arbustos, no local
das fotos, emprestando assim beleza e vida natural ao ambiente preferido dos
namorados, o que foi feito, tornando aquele cantinho muito acolhedor. Também
fizeram sinuosos passeios, ao largo do qual um carpinteiro colocou uns agradáveis
bancos, e as fotos saíram muito mais bonitas, e o local passou a ser muito mais
frequentado.
O
senhor prefeito, para não ficar atrás, também mandou plantar grama e arbustos
floridos nas margens do rio, e transplantou belas árvores como ipês, salgueiros
chorões, plátanos, coqueiros, quaresmeiras e fícus, tornando com o tempo a
cidade bem mais fresca e agradável. Os moradores por sua vez, para fazer birra
ao senhor prefeito, pintaram suas casas em belas cores multicoloridas,
plantaram hera nos muros, roseirais nos quintais, margaridas, dálias, cravos,
árvores embelezadoras como primaveras e hibiscos, e frutíferas como
laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e pereiras, deixando a cidade, num
curto espaço de tempo, bela como eles mesmos não eram capazes de imaginar, o
que atraiu turistas, dinheiro e por consequência o progresso.
E
todos trataram de dar boa conta de suas feridas, de resolverem seus problemas, e
cada um voltou a tocar a sua vida da melhor maneira que conseguiu.