e fui dar uma demão nos preparativos da páscoa



Acordei neste domingo de Páscoa com o firme propósito de me matar. Verdade é que já tinha ensaiado ontem à noite, tomando meia dúzia disto, meia dúzia daquilo. Só serviram mesmo para me deixar lenta, onde diabos coloquei a escova de cabelos?

Meu quarto estava uma bagunça, e... o bem querer póstumo impede que. Tratei de arrumar tudo. Deixei sobre um lencinho branco toda a parafernália: remédios que tomei e tomaria, celular, documentos, cartões, chaves, carteira, e o implacável cartão do SUS, típicos de suicida bem comportado. Será que na pressa os parentes atentariam para o lencinho branco? Para o cartão do SUS, ali, tão verde e amarelo, à vista? Provavelmente não, conheço as peças.

Fui ao mercado. Comprar sucos, bolos e doces, para o café da  manhã do menino. E encomendar meio quilo de cupim, a Páscoa exige, olha dona, passe mais daqui a meia hora que já vai tá pronto. Que maçada! Queria sair de lá resolvida.

Mas urgia fazer a gelatina pro rapaz, ele leu em algum lugar que gelatina fortalece os cabelos, a pele, tudo bem desde que não seja ele que faça. Lá fui eu. Cereja. Suja toda a caneca, trabalhão pra limpar, mas tudo bem, desta vez não seria eu.

Lembrei de voltar e comprar as batatas, as batatas da maionese, Natal e Páscoa de pobre é batata, precisa de maionese. Enfim, ficou faltando só voltar e buscar o cupim.

Aproveitei para fazer uma completa nos dentes e pele. Usei as duas escovas e o fio dental. Usei o sabonete esfoliante. Passei tônico, hidratante e protetor solar, passei até creme FPS 10 nos lábios, ninguém diria que saí feia deste triste mundo. As raízes brancas recém cobertas na véspera fariam bonita figura no caixão. Leave-In nos cabelos. Aproveitei e passei uma loção Jequiti que minha norinha me deu. Olhei para as unhas, estavam feitinhas. Ótimo.

Uma repassada mental nos documentos da casa. Contas: pagas. Escrituras: Ok. Imposto de Renda: Ok. Últimos IPTU’s: Arquivados. E fodam-se, procurassem, ora.

Verdade é que podia sair, dar uma volta, ver a vida, quem sabe não voltasse assim assim. Mas onde a vontade?  E mesmo pensando na Dona Morte com sua foice à espreita, me lembrava dos trocados, os trocados que significariam a condução, o colarzinho de contas na feirinha da Liberdade, pensando bem, o nome disso não é apego não? Não quis pensar nisso, em dia de suicídio a gente não pensa muito, caso contrário não se suicida.

Uma última olhada na Bacia do Paulão, porque não? Afinal, é Páscoa, o Paulo não gosta de admitir, mas ele é tão litúrgico ou mais que eu, fala o santinho São João da Cruz: “embora seja noite...”

Não sou versada em textos bíblicos, mas lembro vagamente, ainda mais sob os eflúvios do Lexotan, que certas atividades, segundo o Mestre, devem ser feitas enquanto é dia, mas será que tentar o suicídio é coisa para se fazer de dia? Mas afinal, o que é dia e o que é noite, filosofei? Entretanto, me soou meio covarde ir embora assim, no meio da noite, embora fossem nove e pouco da manhã, mas o monge sabia do que estava falando, e tenho certeza de que o Paulo, também.

Melhor deixar o suicídio para quanto estiver tudo às claras, embora não saiba quando este dia virá, se virá.

Passei mais uma vaporizada de Jequiti e coloquei uma bandana para não engordurar os cabelos, e fui dar uma demão nos preparativos da Páscoa.

por um curto espaço de tempo esta historinha me fez feliz




Perto de onde moro, há um simpático sobradinho que serve de abrigo para idosos, e aqui vai o ponto final da frase.

Mas tudo pode melhorar, então eu lhes digo que o sobradinho é elegantemente pintado na cor rosa antigo, um charme, outro ponto.

Pensam que é só? Não é não. Algum abençoado plantou ao pé do sobrado uma bonita Primavera, que a despeito do outono, ainda está primaverando, em belíssimas flores arroxeadas, ninguém deve ter contado para ela que não é mais estação, então lá está ela, num deslumbre só, e eu gostei tanto desta frase que fico até com pena de colocar outro ponto?

Mas tudo ainda pode melhorar. O construtor do sobrado, para não ter de cortar a linda Primavera, adaptou o telhadinho da sacada, fez um buraco, por onde as flores passam, então elas formam uma magnífica renda roxa por sobre o telhado, garbosas, brilhantes, atrevidas como só primaveras fora de estação conseguem ser. E ponto.

Notaram como as palavras tem o dom de modificar tudo, para mais ou para menos, para mais no nosso caso? Eu poderia simplesmente ter dito que perto de casa há um sobradinho rosa, com um pé de Primaveras na entrada.

Outra história? Há anos meu coração bate por um moço bonito.

Num belíssimo dia, esse moço me mandou rosas. Amarelas.

E não é que junto às rosas veio um cartão? Todo branco.

E nesse bonito cartão veio escrito amo você? Só isso, o moço sabe que não necessito de muita palavração.

Certas palavras são bonitas como primaveras franjadas crescendo nos beirais das casas, não?

Mas agora vou lhes contar um segredo.

Não existe sobradinho nenhum. Primavera nenhuma. Nenhuma flor rendada em nenhuma sacada rosa.

E o moço bonito? ora o moço bonito. Nunca mais tive notícias dele, e se ele ainda estiver por aí, há muito que já se esqueceu de mim, e jamais me mandou flores, ele nunca me mandou nem um olá.

É mais fácil o astronauta americano chegar em Marte do que ele me mandar flores. E mesmo que numa hipótese surreal ele mandasse, não viriam com um cartão de amor, e em papel linho branco!

Então isso tudo me remete a: belas mesmo são as palavras. E flexíveis.

Com elas a gente faz tudo o que a gente quer.

Inventa histórias de primaveras roxas, rendadas, sacadas pintadas de rosa antigo, e de moços que de tão românticos mandam flores amarelas acompanhadas de cartões em papel linho branco.

Bom não? Por um curto espaço de tempo esta historinha me fez feliz.

achei meio lugar comum, mesmo assim foi o nome que ficou



Aquela cor especifica não me saía da cabeça. Não era um laranja, mas também não deixava de ser. Era algo entre fanta laranja e crush, lembram crush? Talvez um abóbora, desse doce de abóbora delicioso, molhadinho e vidrado que eu faço aqui em casa às sextas. Fechava os olhos e pensava na cor, saí procurando blusinhas cor de laranja, mas nada de achar. Como é que essas produtoras de revistas conseguem? Já repararam que toda revista feminina traz uma página ou duas com artigos todos da mesma cor? Abajur, porta retrato, almofada, binóculo e capinha de celular? A gente nunca acha esses produtos separados, e se achasse também não teria vontade de comprar, pra que raios eu ia precisar de um par de óculos de sol verde abacate? Mas na revista ficam tão bonitos, embora a gente saiba que é um recurso manjadíssimo, uma forma de encher página, recurso que eu vejo em revistas pra mais de trinta anos, mas que deve funcionar, o pessoal compra as tais revistas. O que me devolve à pergunta, como é que a revista Cláudia consegue? Tudo o que eu queria era um tapetinho, uma almofada laranja, daquele laranja mistura de fanta e crush com um toque de doce de abóbora, lembrando cor de bala.

Desisti das blusinhas e fui à loja de artigos para pinturas. É uma loja cheia de dondocas desocupadas que, ...mentira, vi lá uns rapazes e umas moças com cara de estudantes de arte, comprando coisas muito específicas, eu nem sabia por onde começar a pedir, meu jovem, eu queria uma tela e tintas, o que a senhora tem em mente, não sei, algo assim, e fiz um gesto com as mãos que abarcava algo em torno de  quarenta centímetros. Ele me disse que eu precisava de uma cor de fundo, e que como eu era principiante melhor que fosse branca, ou num tom pastel que não desse muito trabalho, optei por branco mesmo. Ele me vendeu uns pinceis de rolo, pequenos, que mais tarde vim a descobrir serem deliciosíssimos de trabalhar. E as tais das tintas alaranjadas, três tons. Voltei feliz para casa, pressurosa, comprei laranjas e abóboras, pensei divertida, ao constatar que fome não é só de comida como dizem lá os rapazes da banda, fome de cor há que se considerar. Não via a hora de começar.

Não foi nada difícil passar o fundo branco, foi delicioso. E agora, por onde começar? Peguei a tinta mais escura, a do doce de abóbora, e fiz duas aspas, uma em cada ponto da tela no sentido da altura, o máximo que minha criatividade alcançava. Fiz meio rabiscada, disforme, para não dar a impressão de que era uma pintura colegial. Era uma pintura colegial. Esperei secar, e tratei de preencher o interior dessas aspas, ou seja, a tela inteira, com os três tons, os de laranja e abóbora.

Ficou assim, assim. Não consegui o efeito bala de laranja que eu desejava, será que pedia uma demão de verniz? o rapaz não me dissera nada, e eu achei melhor não arriscar, ficou meio fosco, mas para um primeiro trabalho, pensando bem, já tinha visto coisas piores.

Desprendi a tela do suporte e levei à loja de molduras, nada mais desolador que uma loja de molduras de bairro, a loja atopetada de molduras de gosto pra lá de duvidoso. Depois de muito garimpar achei uma na cor original de madeira, com algumas reentrâncias  que bem poderiam não estar lá, mas era a menos piorzinha, fiquei com ela. Nada de paspatur, aí já era muita metidice pra um primeiro trabalho. O sujeito pediu pra eu voltar no dia seguinte, voltei, vem cá, as pessoas perguntaram se tem mais desses quadros pra vender, a senhora não queria fazer mais e a gente dividia os lucros? Começa assim o 171 das artes, pensei, quem sou eu, uma amadora, pra sair vendendo quadrinhos por aí? mas não, não me ocorre agora nenhuma outra cor pra fixar na parede das minhas ideias fixas, não respondi isso, disse melhor não, não me sinto preparada, o que não deixava de ser verdade.

Está no meu quarto, na parede oposta à da televisão, é um sol? perguntou a família, não, é a cor laranja respondo eu. Laranja meio crush meio fanta com um toque do doce de abóbora das sextas feiras. Botei no quadro o nome de Sunrise, achei meio lugar comum, mesmo assim foi o nome que ficou.