cândido! meigo e bom

Acontece que sei de tuas maldades. Uma a uma, eu as anotei em um caderno pequeno. Pequeno porque precisava de algo que coubesse em minha bolsinha de passear no parque. Sei de tuas artimanhas, o modo sorrateiro com que arquitetas tua ruindade, tuas complexas vinganças muitas vezes disfarçadas de bem querer. Sei de tuas terceiras intenções, e de como ris, intimamente, quando retesas o arco, algumas vezes em minha direção. Sei de tua arrogância e, o que mais dói, sei do desprezo que nutres por mim. Está tudo lá, no pequeno caderno de espiral, que levava ao parque.

O caderno que já era pequeno foi se apequenando ainda mais; faltou espaço para tuas ondas de ciúme, ciúme e curiosidade pelos segredos que não desvelo a ninguém, pelas cartas que escrevo e nunca te envio, pelos poemas que deveriam ser teus, mas que encerro em qualquer gaveta, ao lado de tocos de vela e barbante.

Cansada de anotar tua ruindade, acabei desenhando os sabiás laranjeira que há muitos por lá, e que na falta de lápis de cor laranja ou pela inabilidade de quem os desenhava, acabaram virando cinzentos pássaros tristes. Pensei em teu canto assim, que de tão mavioso iludiu a tantos, mas que só eu via como simples algaravia de pardais.

Acabou-se o caderninho, passei a não anotar, passei a não pensar, passei a esquecer. Foi assim que tua maldade evanesceu, diluiu-se nos desenhos do meu tosco grafite, passou a ser os pássaros que me faziam companhia na grama e no ar dos jardins onde eu não mais te amargava. Apeguei-me novamente ao canto dos sabiás, e eles só me dizem de ti coisas boas, que és cândido, meigo e bom.

Hoje não te procuro
mais, nem te rascunho em papéis. Adivinho belezas novas e raras em teu canto, mas só te vejo e te beijo no ar, e parece que os sabiazinhos me devolvem, deliciados: cândido, meigo e bom, cândido meigo e bom, cândido! meigo e bom.