"Quando você vai mudar, só quer saber de caixas. Só pensa em caixas! Onde tem caixas? Entra e sai das lojas: "Tem caixas aqui?" Só consegue pensar nisso. Nem consegue conversar. "Quieto! Estou procurando caixas!" Chega um momento em que pode até farejar... Entra e sai das lojas: "Tem uma caixa aqui. Não minta, senti o cheiro." É uma obsessão...o cheirinho do papelão. Pode ser até num enterro, você vê o caixão e diz... "Que bela caixa. Sabem onde ele comprou? Será que posso usar? É super firme!" A morte é a última mudança da sua vida...o carro fúnebre é o caminhão...os carregadores são seus amigos. Só eles poderiam ajudar nessa mudança. E o caixão é a caixa perfeita...o único problema é que você está dentro dela."
Jerry Seinfeld
bete p.silva
cândido! meigo e bom
Acontece que sei de tuas maldades. Uma a uma, eu as anotei em um caderno pequeno. Pequeno porque precisava de algo que coubesse em minha bolsinha de passear no parque. Sei de tuas artimanhas, o modo sorrateiro com que arquitetas tua ruindade, tuas complexas vinganças muitas vezes disfarçadas de bem querer. Sei de tuas terceiras intenções, e de como ris, intimamente, quando retesas o arco, algumas vezes em minha direção. Sei de tua arrogância e, o que mais dói, sei do desprezo que nutres por mim. Está tudo lá, no pequeno caderno de espiral, que levava ao parque.
O caderno que já era pequeno foi se apequenando ainda mais; faltou espaço para tuas ondas de ciúme, ciúme e curiosidade pelos segredos que não desvelo a ninguém, pelas cartas que escrevo e nunca te envio, pelos poemas que deveriam ser teus, mas que encerro em qualquer gaveta, ao lado de tocos de vela e barbante.
Cansada de anotar tua ruindade, acabei desenhando os sabiás laranjeira que há muitos por lá, e que na falta de lápis de cor laranja ou pela inabilidade de quem os desenhava, acabaram virando cinzentos pássaros tristes. Pensei em teu canto assim, que de tão mavioso iludiu a tantos, mas que só eu via como simples algaravia de pardais.
Acabou-se o caderninho, passei a não anotar, passei a não pensar, passei a esquecer. Foi assim que tua maldade evanesceu, diluiu-se nos desenhos do meu tosco grafite, passou a ser os pássaros que me faziam companhia na grama e no ar dos jardins onde eu não mais te amargava. Apeguei-me novamente ao canto dos sabiás, e eles só me dizem de ti coisas boas, que és cândido, meigo e bom.
Hoje não te procuro mais, nem te rascunho em papéis. Adivinho belezas novas e raras em teu canto, mas só te vejo e te beijo no ar, e parece que os sabiazinhos me devolvem, deliciados: cândido, meigo e bom, cândido meigo e bom, cândido! meigo e bom.
O caderno que já era pequeno foi se apequenando ainda mais; faltou espaço para tuas ondas de ciúme, ciúme e curiosidade pelos segredos que não desvelo a ninguém, pelas cartas que escrevo e nunca te envio, pelos poemas que deveriam ser teus, mas que encerro em qualquer gaveta, ao lado de tocos de vela e barbante.
Cansada de anotar tua ruindade, acabei desenhando os sabiás laranjeira que há muitos por lá, e que na falta de lápis de cor laranja ou pela inabilidade de quem os desenhava, acabaram virando cinzentos pássaros tristes. Pensei em teu canto assim, que de tão mavioso iludiu a tantos, mas que só eu via como simples algaravia de pardais.
Acabou-se o caderninho, passei a não anotar, passei a não pensar, passei a esquecer. Foi assim que tua maldade evanesceu, diluiu-se nos desenhos do meu tosco grafite, passou a ser os pássaros que me faziam companhia na grama e no ar dos jardins onde eu não mais te amargava. Apeguei-me novamente ao canto dos sabiás, e eles só me dizem de ti coisas boas, que és cândido, meigo e bom.
Hoje não te procuro mais, nem te rascunho em papéis. Adivinho belezas novas e raras em teu canto, mas só te vejo e te beijo no ar, e parece que os sabiazinhos me devolvem, deliciados: cândido, meigo e bom, cândido meigo e bom, cândido! meigo e bom.
porque sabe que eu gosto, e o nosso dia acaba assim
Esperar que coisas bacaninhas aconteçam, pra só então ter o que contar, é perda de
tempo precioso, porque coisas bacaninhas acontecem o tempo todo. Como hoje, quando vesti uma
blusa turquesa elástica que deixa meus peitos diminuídos em dois números,
combinando com um par de meias turquesas, que embora possa parecer, não foi uma compra proposital, foi um acaso, achei a blusa numa lojinha e as meias
xadrezinhas noutras, mas todas as amigas falam que gracinha, que lindas essas
meias combinando com a blusa. O cabelo recém adaptado à enésima escova
progressiva, trazia reflexos arroxeados que caiam bem ao sol de outono, e eu me
sentia esguia, leve e feliz. Fui ao supermercado, nada romântico.
Comprar chá verde. Já diz a milenar sabedoria
japonesa que o chá verde melhora o metabolismo impedindo o acréscimo de
gordura, e isso é música para os ouvidos de qualquer mulher. Já que estava lá,
comprei adoçante, e resisti bravamente à vontade de comprar Creme de Menta, que
encheu minha boca de água, mas de pensar na quantidade de açúcar que aquela
garrafa trazia, como disse, resisti. Mas não fui forte ante um chocolate meio
amargo, que a moça da televisão falou que a gente pode explorar vez ou outra.
Na falta te ter o que fazer para preencher o espaço
que vai da hora de almoço até a de preparar o jantar, resolvi me abrigar em
baixo de meio clonazepan, que operou maravilhas. Sonhei que era menininha, que
usava maria chiquinhas com vestido azul estampado, acordei feliz e disposta
para atacar os preparativos do jantar.
E acho que a vida é isso. Se conto que havia uma enorme
árvore em frente ao ponto de ônibus, monumental eu diria, coalhada de
passarinhos, acho que é só mesmo para encher este espaço de beleza. Se conto
também das moças trabalhadoras, cansadas, mas tagarelas, esperando o ônibus que
as levaria para casa, é para dizer que há beleza até mesmo nessas
trivialidades. E se conto que o ônibus demorou pouco, e que pela janelinha veio
um gostoso calor de outono é para reafirmar a mim mesma que a vida segue agradável,
com os agrados simples que ela nos faz.
Verdade que lamentei a falta do Creme de Menta,
saberia otimamente bem com um cafezinho agora quando escrevo estas linhas. Talvez
volte lá e compre o abençoado, que prazeres são necessários, e uns quilinhos a
mais não me farão mal algum.
Daqui a pouco meu filho chega e o jantar dele já
está pronto, e eu irei me atracar com algum seriado, ele me encheu de dvds de
seriados americanos de presente porque sabe que eu gosto, e o nosso dia acaba
assim.
isto dá em que pensar
Cidades da periferia de São Paulo são todas iguais, portanto não vou perder meu tempo descrevendo esta, mas não resisto a usar uma única palavra: seca. Vá lá, vamos a mais alguns detalhes, senão este relato fica mais seco que a cidade, mas não é nada diferente do que você conhece: aquele comércio pobre e desnutrido, aqueles cartazetes feitos à mão anunciando promoções mentirosas, mercadorias repetidas em todos estabelecimentos, o multicolorido apelativo das lojinhas de cosméticos ou roupas, transeuntes pobremente vestidos, cães e... moradores de rua, e é aqui que o ponto central deste relato começa, como que para agradar àquelas boas professoras de redação de antigamente que sempre pediam uma introdução.
Introdução feita, vamos aos fatos. Há nesta feia cidade uma feia ruazinha, que alguma associação de comerciantes apadrinhada por algum vereador conseguiu transformar em calçadão, vocês sabem, aquele revestimento toscamente ladrilhado, uma rua sem calçadas onde não passam carros, numa ideia brilhante de quem pensou que isto atrairia mais fregueses ao pobre comércio. Balela. As pessoas passam por ali apenas porque é o caminho da estação de trem, ah, sim, ia me esquecendo da feia estação de trem, tão comum em cidadezinhas de periferia, e esta não perco tempo em descrever porque só o pensar nela me deprime. Estamos então na tal ruazinha. Os comerciantes, ainda no desespero de atrair clientes, tiveram mais uma ideia brilhante, inventaram de revesti-la de uma cobertura de fibra de plástico transparente, e colocar aqui e acolá umas floreiras de tijolinho à vista com palmeirinhas transplantadas, o que daria, isto nas cabeças deles, creio eu, um charme europeu.
O charme europeu resultou em que a poeira cinza escuro se acumulou como terra preta sobre a cobertura de plástico transparente deixando-a cinza escura, e as floreiras, cujas pobres arvorezinhas, que até foram molhadas pelos comerciantes mas que por falta de drenagem apodreceram e morreram, passaram a servir para acúmulo de tocos de cigarro e lixo. Coisa triste, coisa feia.
Mas os moradores de rua não pensavam assim. A rua era coberta como uma galeria, portanto conveniente ao pernoite. As soleiras dos estabelecimentos formavam degraus também convenientes a que eles depositassem ali suas trouxas, garrafas de água, comida, sua tralha noturna. Muitos se recostavam nas floreiras para um cigarrinho, um papo, uma bebidinha, uma relaxada antes de finalmente se ajeitarem para dormir.
Eu passava pela ruela de manhã e de noite, indo e voltando do trabalho. Morador de rua, como se sabe, assim que os estabelecimentos são abertos, precisam desaparecer. Se ficam por ali, os comerciantes jogam água sobre eles, simplesmente. Eu passava por ali de manhã a tempo de vê-los se recolhendo para partir, e à noite, a tempo de vê-los se encolhendo para pernoitar, até cheguei a fixar a fisionomia de alguns.
Esqueci de dizer que na ruazinha também morava um cachorrinho, beneficiado por uma lei estadual chamada cão comunitário. O bichinho recebe castração, é vermifugado, ganha uma casinha, uma coleira com identificação, um comedouro, e a população cuida dele, é uma solução bacaninha, gosto dela, deveria ser melhor divulgada. Pois bem, lá morava também o tal cachorrinho.
Mas voltemos. Foi então que um dia os comerciantes colocaram a rua em obras, e a obra consistia em retirar toda a parafernália de enfeite. Placas de plástico tremendamente sujas desciam ao chão, as floreiras desapareciam, e cada dono de loja tratou de solapar sua soleira. Entendi que era uma obra destinada a desambientar o morador de rua, que sem a cobertura, sem as soleiras e sem as floreiras onde se recostar, coitado, não poderia mais ficar ali.
A obra acabou, e a rua não ficou melhor nem pior, a única diferença é que ficou sem os moradores de rua. Então eu fui, muito ingenuamente, penso agora, ao posto policial da rua, perguntar o que era feito dos pobres miseráveis que por ali dormiam. O jovem policial que me atendeu quis começar um sorriso de gozação, mas quando notou que eu falava sério disse algo como sei lá, senhora, a prefeitura deve ter seus programas sociais. Deve ter.
Soube então por amigos que esta cidade exporta moradores de rua. Coloca-os numa van e descarrega-os em outra cidade, e o problema, como são intitulados os pobres, que fique para o outro prefeito. Que por sua vez deve fazer o mesmo, assim eles são despachados cada vez mais para os cantões das cidades, indefinidamente, como pacotes incômodos, e como bem atestou o sorriso irônico do policial, quem se importa?
E este relato acaba aqui. Ah, sim, ia me esquecendo novamente: o cachorrinho continua lá em sua casinha, gordinho, feliz e amparado pela população. Gosto imensamente de animais, sobretudo cachorros, e aprecio o cuidado do povo para com o bichinho. Mas quando uma cidade tem políticas para animais de rua e não tem políticas para gente de rua, isto dá em que pensar.
Introdução feita, vamos aos fatos. Há nesta feia cidade uma feia ruazinha, que alguma associação de comerciantes apadrinhada por algum vereador conseguiu transformar em calçadão, vocês sabem, aquele revestimento toscamente ladrilhado, uma rua sem calçadas onde não passam carros, numa ideia brilhante de quem pensou que isto atrairia mais fregueses ao pobre comércio. Balela. As pessoas passam por ali apenas porque é o caminho da estação de trem, ah, sim, ia me esquecendo da feia estação de trem, tão comum em cidadezinhas de periferia, e esta não perco tempo em descrever porque só o pensar nela me deprime. Estamos então na tal ruazinha. Os comerciantes, ainda no desespero de atrair clientes, tiveram mais uma ideia brilhante, inventaram de revesti-la de uma cobertura de fibra de plástico transparente, e colocar aqui e acolá umas floreiras de tijolinho à vista com palmeirinhas transplantadas, o que daria, isto nas cabeças deles, creio eu, um charme europeu.
O charme europeu resultou em que a poeira cinza escuro se acumulou como terra preta sobre a cobertura de plástico transparente deixando-a cinza escura, e as floreiras, cujas pobres arvorezinhas, que até foram molhadas pelos comerciantes mas que por falta de drenagem apodreceram e morreram, passaram a servir para acúmulo de tocos de cigarro e lixo. Coisa triste, coisa feia.
Mas os moradores de rua não pensavam assim. A rua era coberta como uma galeria, portanto conveniente ao pernoite. As soleiras dos estabelecimentos formavam degraus também convenientes a que eles depositassem ali suas trouxas, garrafas de água, comida, sua tralha noturna. Muitos se recostavam nas floreiras para um cigarrinho, um papo, uma bebidinha, uma relaxada antes de finalmente se ajeitarem para dormir.
Eu passava pela ruela de manhã e de noite, indo e voltando do trabalho. Morador de rua, como se sabe, assim que os estabelecimentos são abertos, precisam desaparecer. Se ficam por ali, os comerciantes jogam água sobre eles, simplesmente. Eu passava por ali de manhã a tempo de vê-los se recolhendo para partir, e à noite, a tempo de vê-los se encolhendo para pernoitar, até cheguei a fixar a fisionomia de alguns.
Esqueci de dizer que na ruazinha também morava um cachorrinho, beneficiado por uma lei estadual chamada cão comunitário. O bichinho recebe castração, é vermifugado, ganha uma casinha, uma coleira com identificação, um comedouro, e a população cuida dele, é uma solução bacaninha, gosto dela, deveria ser melhor divulgada. Pois bem, lá morava também o tal cachorrinho.
Mas voltemos. Foi então que um dia os comerciantes colocaram a rua em obras, e a obra consistia em retirar toda a parafernália de enfeite. Placas de plástico tremendamente sujas desciam ao chão, as floreiras desapareciam, e cada dono de loja tratou de solapar sua soleira. Entendi que era uma obra destinada a desambientar o morador de rua, que sem a cobertura, sem as soleiras e sem as floreiras onde se recostar, coitado, não poderia mais ficar ali.
A obra acabou, e a rua não ficou melhor nem pior, a única diferença é que ficou sem os moradores de rua. Então eu fui, muito ingenuamente, penso agora, ao posto policial da rua, perguntar o que era feito dos pobres miseráveis que por ali dormiam. O jovem policial que me atendeu quis começar um sorriso de gozação, mas quando notou que eu falava sério disse algo como sei lá, senhora, a prefeitura deve ter seus programas sociais. Deve ter.
Soube então por amigos que esta cidade exporta moradores de rua. Coloca-os numa van e descarrega-os em outra cidade, e o problema, como são intitulados os pobres, que fique para o outro prefeito. Que por sua vez deve fazer o mesmo, assim eles são despachados cada vez mais para os cantões das cidades, indefinidamente, como pacotes incômodos, e como bem atestou o sorriso irônico do policial, quem se importa?
E este relato acaba aqui. Ah, sim, ia me esquecendo novamente: o cachorrinho continua lá em sua casinha, gordinho, feliz e amparado pela população. Gosto imensamente de animais, sobretudo cachorros, e aprecio o cuidado do povo para com o bichinho. Mas quando uma cidade tem políticas para animais de rua e não tem políticas para gente de rua, isto dá em que pensar.
onde mora essa tal de vida
Tenho sessenta anos, ou melhor, cinquenta e nove, e
antes do final do ano já terei completado setenta. Moro numa casa velha que
herdei de meus pais, a mesma em que nasci. Mãe já se foi faz tempo, mas a
cozinha ainda cheira a mesma gordura velha das panelas que ela nunca lavava
direito, porque enxergava mal, e porque eu era uma vagabunda que nunca a ajudava
em nada. A casa foi envelhecendo junto com eles, pai consertava aqui e ali, um
dia ele deixou de consertar e se foi. Mãe foi logo na sequência, uma semana
depois, fiz dois enterros em um mês, foi puxado, mas isso facilitou o
inventário.
Continuo a mesma vagabunda que fui na juventude. O cheiro
de gordura velha da cozinha vai ficar lá no que depender de mim. Há dias em que
me levanto e digo hoje vai, vou desengordurar e desempoeirar a casa, mas aí
ligo a televisão, faço as unhas pela metade, leio meia página de um livro, tomo
café, rivotril, e volto pra cama. Acordo lá pelas seis da tarde sem saber se é
tarde ou manhã.
Tenho um filho que quase nunca vejo, sinto vergonha
por ele, gostaria de trazer a casa limpa, gostaria de não ter tanta preguiça,
faço perguntas falsas, você quer algo para o jantar? Ele não se dá nem ao
trabalho de responder, sabe que não junto forças pra me encostar num fogão. Ele
mora comigo somente porque está pagando um apartamento na planta, faz minha
casa de pensão, e pensão barata. Lavo suas roupas. A máquina lava. Bendito seja
o cara que inventou o amaciante. Deixa as roupas com cheiro de roupas lavadas
por mãe.
Um dia ele trouxe uma moça aqui pra casa, uma moça
italiana. Eu entendia o que ela falava, mas não conseguia responder de jeito
algum. Comprei um dicionário, mas a coisa não andava, me pegava falando com ela
em espanhol. Ela usava maquiagem em casa, e meias finas. Eu lavava as roupas
dela também, e o bom era que ela sabia cozinhar. Não ficou, uma pena. Voltou pra
Itália, levando creio eu uma péssima impressão do modo de vida brasiliano.
Não faço nada pra viver porque herdei todas as casas
de todos os parentes que se foram, sou a velha mais nova de uma família de mais
velhos ainda. As casas são pobres, e estão alugadas a preços mínimos, porque eu
não entendo nem quero entender de contratos de aluguel e reajustes. Um dia um
inquilino disse que precisava falar algo muito importante comigo, pensei, meu
Deus, parece sério, ele disse, olha, o aluguel da casa está muito barato, a
senhora não gostaria de dar um aumento pra mim?
Os outros não foram assim tão éticos, o caso é que
as casas estão de graça, mas somando tudo eu consigo colocar comida na mesa, e
levando em conta que como bem pouco pra não engordar, e que meu filho come
fora, a necessidade de dinheiro é bem pouca.
Como pouco porque não quero engordar e manter um
corpinho de quarenta, único vício que me ficou, tentei o cigarro, mas não pude
suportar o mau cheiro que ele deixava nas mãos e nas roupas. A bebida não cai
bem com os remédios que tomo para dormir e acordar, outros vícios sairiam caro,
resolvi ficar só com a anorexia mesmo.
Sinto que este relato está chegando ao ponto
insuportável do baixo astral, então é hora de parar, e nem sei por que comecei
a contar esta sequência besta, acho que sei, é porque ninguém vai ler, e sai
mais barato que uma consulta, doutor, eu sinto que, sei lá, eu não sinto nada.
Meu filho bem que tentou me fazer mudar para um apê
fofinho, tentou me arrumar um emprego bacaninha, me trouxe ingressos para pré-estreias
e salas de concertos, eu chegava a mentir que ia até o momento em que ele
descobriu, e desistiu. Mãe, você desistiu de ser feliz, foi a última coisa que
ele me disse num de nossos últimos papos mãe e filho. Agora a conversa se
resume em chego tal hora, ou não chego, vai com Deus filho, até amanhã. Creio em Deus.
Ele também me disse que não ouviria nunca mais
nenhuma de minhas reclamações, então estou aqui reclamando pra uma máquina que
a população canina da rua triplicou, que não aguento mais essa latição de
cachorros, que a molecada lava o carro ouvindo funk no maior volume, que
tiraram o seriado que eu gostava da programação, que a internet está há quinze
dias sem conserto e sem solução da companhia, que. Se eu disser isso pra ele a
resposta será problema seu! Vai pra vida que isso passa.
Dá pra imaginar que vivemos num mundo onde um filho
dá esse tipo de conselho pra uma mãe: vai pra vida que isso passa? De repente
eu acho que até iria se tivesse ânimo, ou se soubesse onde mora essa tal de
vida.
e fui dar uma demão nos preparativos da páscoa
Acordei neste domingo de Páscoa com o firme
propósito de me matar. Verdade é que já tinha ensaiado ontem à noite, tomando meia
dúzia disto, meia dúzia daquilo. Só serviram mesmo para me deixar lenta, onde
diabos coloquei a escova de cabelos?
Meu quarto estava uma bagunça, e... o bem querer
póstumo impede que. Tratei de arrumar tudo. Deixei sobre um lencinho branco toda
a parafernália: remédios que tomei e tomaria, celular, documentos, cartões, chaves,
carteira, e o implacável cartão do SUS, típicos de suicida bem comportado. Será
que na pressa os parentes atentariam para o lencinho branco? Para o cartão do
SUS, ali, tão verde e amarelo, à vista? Provavelmente não, conheço as peças.
Fui ao mercado. Comprar sucos, bolos e doces, para o café da manhã do menino. E encomendar meio quilo de cupim, a Páscoa exige, olha dona,
passe mais daqui a meia hora que já vai tá pronto. Que maçada! Queria sair de
lá resolvida.
Mas urgia fazer a gelatina pro rapaz, ele leu em algum lugar que gelatina fortalece os cabelos, a pele, tudo bem desde que não
seja ele que faça. Lá fui eu. Cereja. Suja toda a caneca, trabalhão pra limpar,
mas tudo bem, desta vez não seria eu.
Lembrei de voltar e comprar as batatas, as batatas
da maionese, Natal e Páscoa de pobre é batata, precisa de maionese. Enfim, ficou faltando
só voltar e buscar o cupim.
Aproveitei para fazer uma completa nos dentes e
pele. Usei as duas escovas e o fio dental. Usei o sabonete esfoliante. Passei
tônico, hidratante e protetor solar, passei até creme FPS 10 nos lábios, ninguém
diria que saí feia deste triste mundo. As raízes brancas recém cobertas na
véspera fariam bonita figura no caixão. Leave-In nos cabelos. Aproveitei e
passei uma loção Jequiti que minha norinha me deu. Olhei para as unhas, estavam
feitinhas. Ótimo.
Uma repassada mental nos documentos da casa. Contas:
pagas. Escrituras: Ok. Imposto de Renda: Ok. Últimos IPTU’s: Arquivados. E
fodam-se, procurassem, ora.
Verdade é que podia sair, dar uma volta, ver a vida,
quem sabe não voltasse assim assim. Mas onde a vontade? E mesmo pensando na Dona Morte com sua foice à espreita,
me lembrava dos trocados, os trocados que significariam a condução, o
colarzinho de contas na feirinha da Liberdade, pensando bem, o nome disso não é
apego não? Não quis pensar nisso, em dia de suicídio a gente não pensa muito,
caso contrário não se suicida.
Uma última olhada na Bacia do Paulão, porque não?
Afinal, é Páscoa, o Paulo não gosta de admitir, mas ele é tão litúrgico ou mais
que eu, fala o santinho São João da Cruz: “embora seja noite...”
Não sou versada em textos bíblicos, mas lembro
vagamente, ainda mais sob os eflúvios do Lexotan, que certas atividades,
segundo o Mestre, devem ser feitas enquanto é dia, mas será que tentar o
suicídio é coisa para se fazer de dia? Mas afinal, o que é dia e o que é noite,
filosofei? Entretanto, me soou meio covarde ir embora assim, no meio da noite, embora
fossem nove e pouco da manhã, mas o monge sabia do que estava falando, e tenho certeza de que o Paulo, também.
Melhor deixar o suicídio para quanto estiver tudo às
claras, embora não saiba quando este dia virá, se virá.
Passei mais uma vaporizada de Jequiti e coloquei uma
bandana para não engordurar os cabelos, e fui dar uma demão nos preparativos da Páscoa.
por um curto espaço de tempo esta historinha me fez feliz
Perto de onde moro, há um simpático sobradinho que
serve de abrigo para idosos, e aqui vai o ponto final da frase.
Mas tudo pode melhorar, então eu lhes digo que o
sobradinho é elegantemente pintado na cor rosa antigo, um charme, outro ponto.
Pensam que é só? Não é não. Algum abençoado plantou ao pé do sobrado uma bonita Primavera, que a despeito do outono, ainda está
primaverando, em belíssimas flores arroxeadas, ninguém deve ter contado para
ela que não é mais estação, então lá está ela, num deslumbre só, e eu gostei
tanto desta frase que fico até com pena de colocar outro ponto?
Mas tudo ainda pode melhorar. O construtor do
sobrado, para não ter de cortar a linda Primavera, adaptou o telhadinho da
sacada, fez um buraco, por onde as flores passam, então elas formam uma
magnífica renda roxa por sobre o telhado, garbosas, brilhantes, atrevidas como
só primaveras fora de estação conseguem ser. E ponto.
Notaram como as palavras tem o dom de modificar
tudo, para mais ou para menos, para mais no nosso caso? Eu poderia simplesmente
ter dito que perto de casa há um sobradinho rosa, com um pé de Primaveras na
entrada.
Outra história? Há anos meu coração bate por um moço
bonito.
Num belíssimo dia, esse moço me mandou rosas.
Amarelas.
E não é que junto às rosas veio um cartão? Todo branco.
E nesse bonito cartão veio escrito amo você? Só
isso, o moço sabe que não necessito de muita palavração.
Certas palavras são bonitas como primaveras
franjadas crescendo nos beirais das casas, não?
Mas agora vou lhes contar um segredo.
Não existe sobradinho nenhum. Primavera nenhuma.
Nenhuma flor rendada em nenhuma sacada rosa.
E o moço bonito? ora o moço bonito. Nunca mais tive
notícias dele, e se ele ainda estiver por aí, há muito que já se esqueceu de
mim, e jamais me mandou flores, ele nunca me mandou nem um olá.
É mais fácil o astronauta americano chegar em Marte
do que ele me mandar flores. E mesmo que numa hipótese surreal ele mandasse,
não viriam com um cartão de amor, e em papel linho branco!
Então isso tudo me remete a: belas mesmo são as
palavras. E flexíveis.
Com elas a gente faz tudo o que a gente quer.
Inventa histórias de primaveras roxas, rendadas,
sacadas pintadas de rosa antigo, e de moços que de tão românticos mandam flores
amarelas acompanhadas de cartões em papel linho branco.
Bom não? Por um curto espaço de tempo esta historinha
me fez feliz.
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