Tenho sessenta anos, ou melhor, cinquenta e nove, e
antes do final do ano já terei completado setenta. Moro numa casa velha que
herdei de meus pais, a mesma em que nasci. Mãe já se foi faz tempo, mas a
cozinha ainda cheira a mesma gordura velha das panelas que ela nunca lavava
direito, porque enxergava mal, e porque eu era uma vagabunda que nunca a ajudava
em nada. A casa foi envelhecendo junto com eles, pai consertava aqui e ali, um
dia ele deixou de consertar e se foi. Mãe foi logo na sequência, uma semana
depois, fiz dois enterros em um mês, foi puxado, mas isso facilitou o
inventário.
Continuo a mesma vagabunda que fui na juventude. O cheiro
de gordura velha da cozinha vai ficar lá no que depender de mim. Há dias em que
me levanto e digo hoje vai, vou desengordurar e desempoeirar a casa, mas aí
ligo a televisão, faço as unhas pela metade, leio meia página de um livro, tomo
café, rivotril, e volto pra cama. Acordo lá pelas seis da tarde sem saber se é
tarde ou manhã.
Tenho um filho que quase nunca vejo, sinto vergonha
por ele, gostaria de trazer a casa limpa, gostaria de não ter tanta preguiça,
faço perguntas falsas, você quer algo para o jantar? Ele não se dá nem ao
trabalho de responder, sabe que não junto forças pra me encostar num fogão. Ele
mora comigo somente porque está pagando um apartamento na planta, faz minha
casa de pensão, e pensão barata. Lavo suas roupas. A máquina lava. Bendito seja
o cara que inventou o amaciante. Deixa as roupas com cheiro de roupas lavadas
por mãe.
Um dia ele trouxe uma moça aqui pra casa, uma moça
italiana. Eu entendia o que ela falava, mas não conseguia responder de jeito
algum. Comprei um dicionário, mas a coisa não andava, me pegava falando com ela
em espanhol. Ela usava maquiagem em casa, e meias finas. Eu lavava as roupas
dela também, e o bom era que ela sabia cozinhar. Não ficou, uma pena. Voltou pra
Itália, levando creio eu uma péssima impressão do modo de vida brasiliano.
Não faço nada pra viver porque herdei todas as casas
de todos os parentes que se foram, sou a velha mais nova de uma família de mais
velhos ainda. As casas são pobres, e estão alugadas a preços mínimos, porque eu
não entendo nem quero entender de contratos de aluguel e reajustes. Um dia um
inquilino disse que precisava falar algo muito importante comigo, pensei, meu
Deus, parece sério, ele disse, olha, o aluguel da casa está muito barato, a
senhora não gostaria de dar um aumento pra mim?
Os outros não foram assim tão éticos, o caso é que
as casas estão de graça, mas somando tudo eu consigo colocar comida na mesa, e
levando em conta que como bem pouco pra não engordar, e que meu filho come
fora, a necessidade de dinheiro é bem pouca.
Como pouco porque não quero engordar e manter um
corpinho de quarenta, único vício que me ficou, tentei o cigarro, mas não pude
suportar o mau cheiro que ele deixava nas mãos e nas roupas. A bebida não cai
bem com os remédios que tomo para dormir e acordar, outros vícios sairiam caro,
resolvi ficar só com a anorexia mesmo.
Sinto que este relato está chegando ao ponto
insuportável do baixo astral, então é hora de parar, e nem sei por que comecei
a contar esta sequência besta, acho que sei, é porque ninguém vai ler, e sai
mais barato que uma consulta, doutor, eu sinto que, sei lá, eu não sinto nada.
Meu filho bem que tentou me fazer mudar para um apê
fofinho, tentou me arrumar um emprego bacaninha, me trouxe ingressos para pré-estreias
e salas de concertos, eu chegava a mentir que ia até o momento em que ele
descobriu, e desistiu. Mãe, você desistiu de ser feliz, foi a última coisa que
ele me disse num de nossos últimos papos mãe e filho. Agora a conversa se
resume em chego tal hora, ou não chego, vai com Deus filho, até amanhã. Creio em Deus.
Ele também me disse que não ouviria nunca mais
nenhuma de minhas reclamações, então estou aqui reclamando pra uma máquina que
a população canina da rua triplicou, que não aguento mais essa latição de
cachorros, que a molecada lava o carro ouvindo funk no maior volume, que
tiraram o seriado que eu gostava da programação, que a internet está há quinze
dias sem conserto e sem solução da companhia, que. Se eu disser isso pra ele a
resposta será problema seu! Vai pra vida que isso passa.
Dá pra imaginar que vivemos num mundo onde um filho
dá esse tipo de conselho pra uma mãe: vai pra vida que isso passa? De repente
eu acho que até iria se tivesse ânimo, ou se soubesse onde mora essa tal de
vida.