mas aí o sinal anunciava o fim da aula


– Senti-me em desatino sem ti meu desatino? Eulette, por Luiz Vaz, por Eça, por Fiódor, de onde você tirou semelhante desatino?!

– Uai Sofi, dele, meu desatino de plantão... E todas as meninas riam e concordavam. Sofi era o apelido de Sofia, Curso de Letras, Linguística Aplicada, a professora e a aula que elas mais gostavam. Por ela ser muito elegante, chamavam-na Sophie, em inglês, que pelo abrasileiramento deu em Sôfi.

– Me satisfaça uma curiosidade Eulette, qual a profissão do seu “desatino”? E Sofia fazia sinal de aspas com os dedinhos indicadores. A palavra desatino já estava escrita no quadro com caneta vermelha e em maiúsculas.

– Estagiário em Engenharia Civil. Último ano.

– Isso quer dizer que neste exato momento o pobre está vistoriando alguma construção desconhecendo o triste fato de que ele é o desatino de alguém, no caso você? Não é uma enorme responsabilidade? Se você o ama de fato, você acha que ele merece tamanho peso sobre os ombros?

– Uai, Sofi, não vejo peso no meu poema, tem até um formato meio Leminski...

– Pois Leminsky está rolando em terras paranaenses neste exato momento, ao saber que a leveza, que a brincadeira de seus poemas está sendo comparada a este tijolo aqui, e as meninas riam e passavam a falar todas ao mesmo tempo. Eulette era a aluna mais qualificada da classe, e todas sabiam que a professora gostava de provocá-la para deixar a aula animada.

– Meninas! E a professora batia delicadamente com a ponta da caneta no quadro. Olha o estrogênio, olha a progesterona. Sofia tinha mania de falar o nome de vários hormônios, e as vezes de calmantes também, e as meninas adoravam, e copiavam esse estilo de falar entre elas. Em aulas de debates a professora convidava todas que estivessem na TPM para as cadeiras da frente, – assim eu tenho melhor controle sobre a progesterona da classe – ela dizia.

– Ô Sofi, olha só, o Caetano chamou a pessoa amada de meu bem, meu zen, meu mal, certo? Então como é que fica, Caetano pode? Era a Amanda, tomando as dores da Eulette.

– Pode e não pode. Pode, porque Caetano é analisado pelo conjunto de sua obra, que é plural, que é inserida num contexto que podemos chamar de histórico. Mas estamos falando da obra da Eulette que tem, quantos poemas já, Eu? – Com este sete, Sofi. – E continuando: não pode, porque a pessoa amada não pode carregar pesos de ser o bem ou o mal na vida de ninguém. Meninas, eu convido vocês a desenharem poemas leves. Se querem falar de amor, que falem com pureza de sentimentos, que toquem nas pessoas emocionando e arrepiando como o som de uma harpa. Um estilo bonitinho não acoberta o tamanho do peso que a Eulette colocou sobre o nosso querido estagiário em engenharia, certo Eulette?

Vozerio total na classe, as meninas citando diversas letras de música em português e inglês, – meninas, olha a testosterona, olha o clonazepan!, e a Samira buscou a letra de Meu bem meu mal na net e pediu para ler, ok, Samira, leia para nós, concordou Sofia, e a medida que a aluna ia lendo, ela ia comentando, de um modo geral dando a entender que o endeusamento também era uma forma de oprimir a pessoa amada, e fez: arrá!, no momento em que Samira leu: “...onde o que eu sou se afoga”. Afogar-se, sufocar-se? Discordância geral na classe. – É um afogamento doce, disse a Camila, riso geral.

– Mas o que é afogar-se senão perder-se completamente no fluido do amor? disse Eulette. Sofia fazia o gênero opositora, mas adorava ver suas meninas se articulando rapidamente para discordar dela, e Eulette não desistiria tão fácil de seu poeminha à Leminski.

Sofia foi até o quadro e escreveu com caneta azul: Extremos. – Lembram da semana passada quando discutimos o terreno livre da internet, onde as pessoas escrevem os mais grosseiros comentários protegidas pelo anonimato? Todas acenaram com a cabeça que sim. – Lembram que ficou claro para todas nós que uma declaração de amor anônima tem o mesmo peso de uma agressão também anônima? Porque não sabemos com quem estamos lidando, é um terreno minado. Tomando esse gancho, podemos dizer que o exageradamente bom tem o mesmo peso do exageradamente mau, pois pode esconder uma obsessão, uma compulsão.

– Mas então qual o sentido dos poemas de amor?, disse Eulette, e todas aderiram em alto vozerio. – Meninas, olha a adrenalina! alertava a Sofia, e nesse momento uma aluna mais rápida já tinha Meu bem meu mal projetado na parede pelo data show da classe, e algumas estavam cantando fazendo carinhas de apaixonadas, e rindo da professora, que riu também.

– Ok, ok, tudo bem, vamos brincar. É querer muito de vocês neste momento de suas gônadas que entendam que o amor não precisa ser kamikaze – barulhão na classe.  – Sofi, a gente se joga, no amor a gente precisa se jogar, disse a Ilana, apaixonadíssima pelo Fêr, – meninas olha a serotonina!, mas era difícil amansar os ânimos. A Sofia tinha mexido com a razão de ser daquelas meninas, o amor apaixonado.

–Tudo isso nos levou para longe do ponto central da aula, retomou Sofia, que é o poema da Eulette. Não estamos aqui para discutir Caetano, nem essa música, que é bela. Ele arremata toda a subjetivação com um paradoxo bem-mal que cai como uma luva, e diga-se de passagem, amo essa letra. Não. – Eulette, eu discuto assim com você porque você escreve bem, tem a mão ágil, tem estilo, está indo por um bom caminho no que diz respeito à forma. Mas eu queria de você a leveza de sentimentos. O nosso querido estagiário em engenharia merece de sua poesia, de sua rima, uma vazão mais sutilizada, mais etérea, entende? Merece “meu bem meu mal” (dedinhos em aspas), como qualquer ser humano, mas sem esse peso todo. Não se arrisque levianamente por caminhos trilhados por monstros sagrados. Escreva com simplicidade, buscando o seu caminho, e escreveu SEU CAMINHO no quadro, e muito cuidado, ou melhor, muita humildade ao escrever sobre o amor, lembram de Rainer Maria Rilke em Cartas a um jovem poeta? Muitos autores grandes e amadurecidos já escreveram sobre o amor e muito melhor do que nós; é preciso consciência disso para pisar nesse chão. E é com essa humildade que você conseguirá trazer de dentro de você o seu sentimento mais puro. – Como assim, Sofi?, quis saber Eulette. Digamos, com uma qualificação mais suave do que “desatino”, – e novamente as aspas com os dedos –, para o seu amor. Tente.

Barulho de concordância e discordância por todos os lados. – Meninas, olha a fluoxetina...

Mas aí o sinal anunciava o fim da aula.

meu desatino


Sem tino
Sem tino em ti
Sem tino sem ti
Sem tino me senti
Em ti me desatino
Sem ti me desatino
Senti-me em desatino
Sem ti meu desatino

tô alfazema


Foi só admitir

que eu tava uma onça,

que eu tava uma arara,

que o trem tava feio,

que eu tava GRRRRR!

— que era um problema,

...que a raiva passou,

que nem sei mais

de onde ela veio?

Tô bem, tô alfa-zen.

Tô alfazema.

até você ficar com desejo de que eu vá mesmo

Nossa amizade ia muito bem obrigada enquanto o faz de conta funcionava como um antisséptico jogo de cumprimentos educados, frases perfumadas, aqueles emoticons bonitinhos no pé dos e-mails e os tais beijos (fáceis, eletrônicos...) de “bom fds”. Mas bastou eu botar o pé (machucado) no chão e vendo estrelinhas menos de romantismo que de dor mesmo, e falar chega dessa baboseira, que eu vou produzir uma mochila e passo aí pra tirar nossa história a limpo, até porque preciso do seu cheiro pra saber se a gente para ou continua essa conversa, e consultei os horários de trens e vi que chegava aí enquanto o diabo escovava os dentes, e vai abrindo a porta que estou chegando, foi só isso, pra você retrair como gato que vê tina d’água, eriçar os pelos feito o cachorrão que presta segurança na oficina aqui da rua, e na falta de espada sacar de um guarda chuva preto e ameaçar trovões e tempestades, e chacoalhar o dicionário virado pra baixo deixando caírem palavras perfurantes como granizos, com o objetivo único de me assustar pra eu não ir, como se eu me assustasse com pedrinhas de gelo.

Deixa meu pé sarar que eu vou, ou passar minha raiva, o que acontecer primeiro, ou talvez não passar nem a raiva nem o pé porque pra certas coisas a gente precisa do combustível da adrenalina, e eu vou e não aviso a data, e você terá de conviver com esse sabe-se-lá-quando, com essa preocupação e esse susto, porque minha raiva pode passar amanhã ou chegar ao seu ápice daqui a dez anos. Ou vinte trinta minutos, sei lá, o tempo não é problema pra mim, algo me diz que não morro cedo e morro com este pé, o tempo agora será problema só seu, que terá de se adaptar a esse nunca saber que pode com o tempo fazer até você ficar com desejo de que eu vá mesmo.