Novelas que se sustentam na absoluta falta de inteligência
emocional de seus personagens, na total falência do diálogo, na falta da mínima
capacidade de identificar ou relembrar o bom caráter dos seus pares românticos nos
momentos de adversidade, não têm a mínima relevância sob o ponto de vista da
produção artística; personagens atoleimados só servem para esticar o enredo,
nada mais. É a apropriação do modelo mexicano, onde a boa intenção da mocinha
clama aos céus, até o vendedor de jornais da esquina a percebe, menos o
mocinho. Fazem pouco de nossa distraída inteligência.
Essa era eu, me achando a tal, me sentindo a pessoa
mais inteligente do planeta, ao articular para ele uma expressão do que eu
julgava ser uma lógica máxima, isso sobre um dos poucos temas que eu conseguia
desenvolver, no caso novelas, mas isso era detalhe. Eu estava articulando, e
isso já me envaidecia.
Ele tomava minhas mãos e sorria, demonstrando mesmo
sem o querer que não tinha se interessado minimamente pelo que eu tinha dito,
mas que estava feliz com a minha companhia. Eu poderia ter dito a previsão do
tempo que para ele daria no mesmo. Foi quando constatei isso que vi o quanto
artificial eu estava sendo, e o quão simples era estar ali. Era só estar ali.
Tinha ido ao encontro dele com alguns itens preparados
na mente, sendo o primeiro convidá-lo para o Café, que existe num canto
sossegado e envidraçado da livraria. Falaria qualquer coisa sobre como as
mudanças estão alcançando até a preparação dos cafés, que antigamente tinham
seu sabor regulado pela adição de mais ou menos pó pela garçonete; agora
tínhamos uma coleção de pós de café a escolher. Não disse. Não disse, porque
fiquei emocionada em olhar seu rosto novamente, e o que disse sim, numa risada
gostosa que me espantou, foi que tinha ficado feliz em ver certa vez uma
gravura onde ele se auto retratava usando uma camisa verde e olhos azuis. Ele
riu porque entendeu a graça do usando olhos azuis. – Foi assim que eu pude, pela
facilidade do contraste, finalmente identificar a cor de seus olhos quando o
conhecia só por fotos, eu disse.
Mas estou cansada de escrever como se estivesse
fazendo uma redação colegial, vamos mais pela emoção, foi assim, ele chegou, eu
já estava lá, levava como prometido uma mochila de raminhos roxos, a única que
tenho, isso para o caso de ele não me reconhecer porque eu mudei muito e nós
nos vimos pouco ao longo desses últimos anos. Claro que alisei os cabelos e claro
que fiz aquela maquilagem que deixa a gente como se não estivesse de
maquilagem. Claro também que repassei mentalmente tudo que deveria dizer, e felizmente
não disse nada, porque como já disse, ver o rosto dele derrubou todas as minhas
barreiras, e tudo foi melhor assim.
O convite para o cafezinho lá no cantinho da Livraria Cultura
rolou mesmo, isso porque eu realmente gosto de café com pão de queijo e gosto
de compartilhar o que gosto com quem gosto, e o discurso que eu levava dizendo
que o primeiro café eu tinha de pagar porque tinha de fazer as honras da casa etc.,
ele derrubou sem nem olhar para mim, tirando a carteira do bolso interno da
jaqueta e pagando em dinheiro, masculinamente. Isso derruba qualquer argumento.
Cafezinhos e pratinhos de pães de queijo na mão,
fomos para a mesinha, ficamos frente a frente, e foi quando ele me perguntou
qualquer coisa do tipo o que tu fazia quando eu liguei pra ti ontem a noite,
era tarde, te acordei, foi?, e eu disse que assistia a novela e ele riu, novela?,
então tu vê novela?, mas não era riso de gozação, era de simpatia mesmo, e
colocou sua mão grande e fofa sobre a minha mão fininha e me perguntou o que tu
pensa de novela?, e foi quando entrei nesse discurso pomposo aí de cima.
Entrei nesse discurso pomposo para em seguida me
cansar de ter dito tanta bobeira, e o sorriso complacente dele me devolveu à
realidade – eu não estava numa banca examinadora, estava diante de um amigo que não via há
muitos anos, e não tinha nada que ficar procurando articulações supostamente inteligentes,
não tinha nada de nada. Tinha, sim, de fazer o que sempre quis – segurar as
mãos dele entre as minhas, e beijá-las longamente, aquela coisa de encostar os
lábios e ir fazendo som de beijo demorado? obtendo dele um novo sorriso só que
esse não mais complacente, mas de prazer, aquela sensação que a gente adivinha
num cachorrinho quando coloca os dedos entre os seus olhinhos e ele os fecha? Ele
não fechou, mas semicerrou. Mas não foi prazer tipo tesão, entende? Foi o
prazer de quem recebe com gosto um carinho e uma homenagem, porque foi uma
homenagem, aquelas mãos desenhavam coisas lindas, e tenho a crédito – ou a
débito, alguma coisa desenhada pra mim, ah, sim, eu sei, embora ele nunca tenha
dito, eu nunca tenha perguntado, ficou sempre o dito pelo não dito, mas a
emoção sempre pairou no ar – certos desenhos foram pra mim, e o mais gostoso
disso tudo foi justamente ele nunca ter dito nem eu perguntado. Era um segredo
tão fechado que nem a gente o compartilhava, ui! Que coisa boa, segredo dos
segredos.
O resto rolou com uma leveza que eu não sabia que
tinha. Terminamos o café, não antes de ele me perguntar qual era o meu pior
defeito, que eu contei de pronto, sem nem lembrar de perguntar o porquê da
pergunta como seria normal nesse caso, fazendo ele rir da resposta boba. Contei
que tinha mania de rogar pragas para desafetos e desavisados, e elas pegam?, ele perguntou,
sim, muitas pegam sim. – Tu já rogou alguma pra mim? Eu nem respondi, ou
melhor, respondi – vamos ver a livraria? O sorriso dele era novamente
complacente, dando a entender que meu defeito para ele era coisa de velhinhas tricoteiras. Até agora não entendi o porquê da pergunta e me sinto vexada de ter dado uma resposta tão deselegante, como se existisse defeito elegante.
Olhamos a livraria com calma, primeiro os
best-sellers, depois aqueles brasileiros de sempre, passamos para poesias, depois
filosofia isso, filosofia aquilo, menino, em que exato momento e
por que uma pessoa passa a ser chamada de filósofa?, perguntei, e perguntei sem
afetação, sempre tive essa dúvida. Ele explicou, e só não conto aqui pra você porque
a explicação foi longa, ele com um Baudrillard dividido ao meio pelo
indicador, eu segurando as alças da mochila, já estávamos no primeiro mezanino,
e eu já me encaminhava na direção dos discos de vinil,
sem esconder a verdadeira adoração que tenho por vinil.
Sim, dei um presente a ele: Uma noite em 67, do
Terra e do Calil. Ele me deu O conto da
ilha desconhecida, de Saramago, porque eu disse que uma amiga tinha falado
maravilhas do livro, mas principalmente porque me senti à vontade para
confessar o que não confesso a ninguém: nunca li Saramago.
E compramos outros livros para nós, ele comprou um de
Culinária, com belas fotografias, que eu nem disse a ele que me encantou, de
medo que ele o desse para mim.
Fizemos uma pausa para outro cafezinho, e quando
chegamos ao balcão eu agarrei as mãos dele e as levei para trás, tivesse eu a
força necessária para segurá-las ali – não, você não paga, eu pago a conta, e
ele tranquilamente concordou e mais, foi para a mesinha e aguardou não só que
eu pagasse, mas que o servisse. Escolhi uns folhados no lugar de pão de queijo,
e retomamos a conversa do ponto em que tínhamos parado que agora nem me lembro mais
qual era, e fico contente, porque se não me lembro, é porque estava bom mesmo.
Poderia ficar aqui um tempo e mais um pouco contando
detalhes pra você, mas posso resumir dizendo que rimos, conversamos, nos
abraçamos assim do nada várias vezes, meus olhos marejaram várias vezes – os dele
não – fizemos recíprocas perguntas, demos recíprocas respostas, tudo muito
livre, tudo muito leve, tudo muito cheiroso, sim, cheiroso, livraria é um local
cheiroso.
No cafezinho do fim não falamos muito, bem, eu não
estava com vontade de falar nada, porque aquele cafezinho tinha gosto de adeus.
– Talvez eu não veja você nunca mais, foi só o que consegui dizer. Ele
respondeu com um enigmático silêncio. E essa foi toda a nossa conversa então, e esse
foi o penúltimo momento em que meus olhos marejaram.
O último foi na boca de entrada do metrô Consolação,
nosso ponto de despedida. Não trocamos muitas palavras, até porque estávamos cansados de tanto falar. Algo como fique bem, fique bem você também, vá com
Deus, fique você com ele, e mais um beijo que eu lhe dei no dorso da mão
direita que ele retribuiu na minha testa, porque eu estava um degrau abaixo
dele. Um último abraço, o de adeus, e eu me virei, e desci as escadas. E meus
olhos marejados procuraram no bolsinho da jaqueta jeans o cartão de plástico do
bilhete único, enquanto eu me afundava nas entranhas da estação do metrô. À
espera do Vila Prudente, lágrimas suaves, gostosas, calmantes, me escorriam
pelo rosto.