No dia em que me olhei pela primeira vez ao espelho
foi como quando se flutua no mar, o mar nos sustém, mas o abandonar-se está em
nós, então me abandonei como inocente para reconhecer meu rosto nesse dia
inaugural. Não tive espanto com linhas antigas, mas não pude deixar de sorrir
ao pensar na monumental pilha de latinhas de creme nívea que jazia ali. Houve um tempo em
que eu treinava caras e bocas, começou na adolescência essa mania, eu falava a
e i o u procurando o jeito certo de falar sem fazer careta e esboçar um leve
sorriso cativante. A mulher deve sorrir com os olhos, aconselhavam as revistas
femininas, no tempo em que se dava esse tipo de conselho. Nesse dia eu tinha
acordado cedo porque era o primeiro dia do resto da minha vida, não fosse frase
clichê seria maravilhosa, tanto que resolvi quebrar o hábito de tomar café com
pão e fazer um copo de suco de maçã na centrífuga ultra plus juicer que tinha
comprado, vencida pelo conselho da moça da televisão. E como sempre faço após tomar
algo gostoso, não escovei os dentes, para ficar com o finzinho do sabor na
boca, e sabor de maçã não é de se desprezar. Como não era de se desprezar
aquele finzinho de beleza, ainda dou um caldo, pensei, e aproveitei para
treinar sorrisos com minha nova boca recém liberta da agonia dos ferrinhos do
aparelho que cercou meu sorriso por longos anos. Resolvi inovar no batom, mas
foi inovação acertada de véspera, quando o adagietto foi comprado, e que me
esperava sobre a bancada envolvido naquele irritante celofane, bons tempos os
do consumidor desprezado, em que ninguém pensava em bobagens como batom
contaminado e a gente não sofria para libertar coisas de plásticos apertados, e
esse pensamento aliado ao esforço me provocou uma careta que felizmente ninguém
viu além do espelho, preciso tomar cuidado, pensei. Inaugurava também olhos
novos, o par de óculos para sempre abandonados, o pobre, preterido por um par
de lentes de contato que deixariam em mim para sempre o tique de empurrar
óculos invisíveis sobre o nariz. Inexistindo os óculos, deixava de fazer
sentido pelo menos para mim o traçado a lápis no contorno dos olhos,
necessidade das mais irritantes a que me forcei toda a vida, de acentuar meus
olhos achando que assim e só assim eles seriam notados. Alguém teria notado?
Joguei o lápis no lixinho, e na sequência dei uma senhora caprichada com o
masquerade preto, puxando e repuxando os cílios até ficar cansada, como faço
desde sempre para prescindir do curvex. Ao desenhar uma mecha de cabelos sobre
a testa para estudar efeito não passou despercebido pelo espelho um leve tremor
nas mãos, medo do que virá? A natureza não reserva cartas sob a manga,
doravante o que é, é. Moças podem utilizar mil maneiras de fazer trejeitos, e
vale até balançar a cabeça para tilintar os brincos, mas ninguém espera isso de
mulher madura, é sutilíssima a linha que separa o correto do ridículo, pensei,
enquanto passava o blush, e não há perdão na caixinha de perdões de ninguém
para nós, portanto juízo menina!
Foi aquele o dia em que acertei com meu coração
nunca mais esperar por homem algum, e por isso vesti a blusa justa levemente
decotada com a legging preta, dessas que deixam qualquer mulher bonita de corpo,
e assim desembaraçada e dando graças aos céus por ainda trazer um corpo
certinho fui caminhar no parque, oferecendo meu restinho de beleza a quem
quisesse ver.