Ele
vinha brincar com o irmão dela de vez em quando. Bolinhas de gude. Naquele
tempo menino não brincava com menina, e embora ela soubesse jogar, pois brincava
com o irmão, aceitava resignada o seu papel de menininha observadora. Quatro
aninhos mais nova que os dois.
Era
vê-lo empurrando o portãozinho de madeira que ela corria até a penteadeira da
mãe pentear o já penteado cabelinho, ajeitar a já ajeitada fitinha xadrez, que
mãe colocava todo sempre. Não havendo perfume – havia, mas era da mãe – a
solução era passar leite de colônia, e bem disfarçadamente, o pó da caixinha,
que naquele tempo se chamava pó-de-arroz.
A
mãe percebia esses truques, dava uma risadinha íntima e fingia que não via,
concordava com o bom gosto da filha, porque bonitinho ele era.
Bonitinho
e bem arrumado, pois o que ela não sabia, era que ele também se arrumava para
vir brincar. Insistia com a mãe para que deixasse ajeitada a blusinha polo de listras
em vermelho, azul marinho e verde, e gola vermelha, de que ele tanto gostava.
Um
gostando do outro, o outro gostando do um, e ambos envergonhados disso.
Ele
queria puxar assunto, mas não havia assunto a puxar, até porque ela era muito
novinha, perguntar o quê, de boneca?
Quantas
flores vocês tem neste jardim, não? iniciou um expediente perguntando ao irmão,
você sabe o nome delas? Ele sabia que menino não sabe nome de flor. E o irmão
deu de ombros, e sem sair da posição de ataque para rapelar a amarela de
olhinho, apontou a irmã com a cabeça.
O
coraçãozinho dela deu um pulo, e sentindo o rosto queimadinho de vergonha, deu
de falar essa é a dália, esse é o girassol, o menino, girassol eu sei, e essa?
essas são hortênsias – ela sabia usar a concordância gramatical. E foi
apontando os pés de hibiscos, flor-de-maravilha, brincos de princesa, azaleias,
e deixou por último os lisiantus, as rosas amarelas, e os cravos, também
amarelos, orgulho de suas tias.
A
casa em que moravam era nos fundos, na frente moravam a avó e as tias, mas o
quintalzinho bem cuidado, que além de flores também comportava um limoeiro, um
caquizeiro, uma mangueira de mangas enfezadas, além de morangos silvestres à
roda, subindo pelos muros, era das crianças, que, cuidadosas, sabiam brincar
sem destruir nada, ao contrário do que faz a grande maioria das crianças que
há. O capricho principal daquelas mulheres eram os girassóis, as tias se
enchiam de orgulho ao dizer que girassol é dificultoso de cultivar, então os
irmãos tomavam todo o cuidado do mundo quando brincavam de bola, e era uma beleza
quando eles floresciam, cabecinhas todas viradas para o sol. Isso somado aos
cravos e flores-de-maravilha amarelos, deixava o quintal lindo, de um amarelo só,
combinando com a casinha, em estilo americano, com seu telhado de duas águas, também
amarela, amarelo desmaiado, segundo a avó.
Mas
um dia acabou a infância. O irmão foi trabalhar em algum lugar, o amiguinho –
Wellington, ou Lelo, foi trabalhar em uma fábrica, e ela seguiu com os estudos,
e com isso virou menina metida.
Naqueles
tempos não era moda como é hoje ser operário, modismo era ser estudante, andar
de calça ou macacão jeans, camiseta de uma cor só, tênis brancos que se
chamavam kédis, e cara lavada e cabelão solto para as meninas, moda que vinha
sendo introduzida pela Sônia Braga no programa Vila Sésamo, que todos assistiam
dando uma de superiores, ora, assistimos porque é bonitinho, mas isso é para
crianças. Mas ela não perdia um programa, e adorava.
Completando
seu estilo, óculos redondinhos e coloridos como os da Rita Lee. Cadernos e
livros nos braços, cara de importante, passou a se achar melhor que os outros,
principalmente muito melhor que o Lelo, que usava uniforme de operário e tinha
as mãos sujas de graxa.
Mas
eles se encontravam, moravam perto, ele oi, ela oi, tudo bem? Fazendo o tipo
condescendente. Até gostava quando alguma coleguinha via que ela cumprimentava
um operário. Era o esnobismo do esnobismo
O
tempo continuou passando. A avó e as tias morreram, a família veio morar na
casa da frente, o irmão casou, ficaram só ela e os pais, e ele de tempos em
tempos via a menina agora uma moça – Olívia, chegando ou saindo de carro com as
amigas e às vezes com os amigos, namorados, carinhas. Mas até onde ele soube,
ela nunca se casou.
O
tempo passou para eles mais uma vezada. Ele já não era mais Wellington nem
tampouco Lelo, mas sim Oliveira, e era representante de artigos hidráulicos.
Trabalhava com seu próprio carro, um Fiat 147. Foi nesse carro em que aprendeu
a dirigir, e o pai, para ensinar o teste de ladeira antes do exame de motorista
o levou justamente para frente da casa dela. Ele morreu de vergonha que ela o
visse, mas aquela era de fato a melhor ladeira do bairro, e ela morava bem no
cume. Enquanto enfiava e afundava os pés desastradamente nos pedais de
embreagem, notou que o jardim ainda era cuidado com carinho. Lembrou que
gostava daquele constante frescor do quintalzinho, do perfume um pouco
enjoativo da dama da noite, foi pior ontem de noite! o irmão dizia. Lembrou-se
do constante cheiro de grama e terra molhada, e lembrou que gostava de
encontrar a menininha de laços no cabelo e rosto cheirando a pó-de-arroz.
E
era então como Oliveira, já motorizado, os blocos de pedidos empilhados sobre o
banco do passageiro, caixas de peças no banco de trás, que ele sempre dava um
jeito de passar por lá, mesmo modificando o trajeto, para ver a casinha amarela
com seus girassóis, cujo estilo resistia às mudanças do tempo. Ainda se
encontravam. E era o mesmo oi, oi tudo bem? e nada mais.
O
que ele não sabia, e nem ela com clareza, é que ela gostava dele, e lembrava,
sim, de seu coraçãozinho batendo quando ele abria o portão, e lamentava que... lamentava
o quê mesmo? Ela não sabia. Lamentava que algo tinha se partido, e talvez por bobeira dela, porque ela notava e gostava,
quando mocinha, dos olhares esticados dele pra ela, e de suas esnobadas de
garota metida.
A
bobeira dela se esticou demais, pois Oliveira um dia se encontrou com aquela
que viria a ser sua esposa, que de fato foi, e que lhe deu filhos. Eles mudaram
para uma outra casa no mesmo bairro. Soube por alto que os pais dela morreram,
e que ela vivia só, na casinha, com suas flores. Ela já não usava mais o cabelo
Sônia Braga, mas sim aquele cabelinho de jovem senhora à altura do pescoço,
tingido de loiro ruivinho. E as calças jeans deram lugar a longos vestidos de
pano fininho com flores miúdas que de longe pareciam estar sujos, ou gastos.
Ele
ainda passava por lá, até que um dia foi formando na cabeça a ideia de tocar a
campainha.
Mas...
falar o quê? pensava. A nossa conversa esses anos todos não passou de oi tudo
bem? Pedir para entrar? Se não tinha entrado nem quando moleque, não passava do
quintal? Perguntar do irmão? Já nem se lembrava do nome dele, o irmão era só um
pretexto para ir lá!
Um
dia parou o carro que já não era mais o 147, mas o Uno, do outro lado da rua,
com o coração batendo acelerado como no dia em que tirou a carteira de
habilitação. Ela estava bem no meio do jardim, ajoelhada, usando luvas de
jardinagem, arrancando matinhos do chão. Só o que os separava era uma fita de
asfalto, mas aquilo foi para ele como a vastidão do mar. Faltou coragem, girou
a chave, foi.
Desse
dia em diante passou a parar sempre em frente a casa, fingindo que anotava
algum pedido, falando ao Telesp Celular, aparelho maldito que não dava sinal
mas que todo mundo queria ter.
Um
dia abaixou o vidro do carro só para sentir aquele perfume mistura de terra e
flor, mas quem funcionou não foi seu olfato e sim sua audição – saía som de
piano de dentro da casa. - Então ela toca piano... será professora?
Em
outras passadas conseguiu numa pescoçada ver que havia uma estante cheia de
livros ao lado de uma cristaleira na sala da frente. E se imaginou lá dentro
conversando sobre... sobre...Oliveira?! era o Nextel. Plim! Fala Germano! Plim!
Sabe aquelas braçadeiras da Petrópolis 915? Plim! Já sei qual foi o problema,
já estou indo para lá. E se obrigando a aceitar que não havia nada para se
conversar entre um atacadista de peças e uma pianista que cultivava flores num
quintal amarelo, ele empurrou o garotinho do passado, que insistia em sair pra
conversar com uma garotinha do passado, e o escondeu bem escondido dentro da
jaqueta de couro fechando o zíper, não sem sentir um nó na garganta, e foi.
Essa
ainda não foi a última vez. Ele veio um dia para se despedir. Ela usava o mesmo
vestido amarelo com estampas que de longe pareciam flores desbotadas, longo,
fino, esvoaçante, era a brisa da tarde passando. Amarrava uns cachos de brincos
de princesa nos galhos. O que ele não sabia, era que naquele exato momento ela se
lembrava da garotinha que estava no quintal brincando de colar um brinco de
princesa com durex na orelha, e que correu envergonhada para dentro de casa
quando o viu chegar.
Naquele
momento um operário recebia o Diploma de Presidente da República, e ela, lembrando-se
de como desdenhara o macacão azul desbotado do Lelo, sentia-se uma
grandessíssima besta, e apaixonada que era pelo Roberto Carlos, contemplava seu
jardinzinho cantarolando De que vale tudo isso se você não está aqui.
Nem
sabia que era um dia de despedida, nunca reparou em um carro quase sempre
parado por ali, que naquele dia era um Vectra.
Ele
foi embora para Florianópolis, onde tinha convite para sociedade num próspero
atacadista de peças hidráulicas, levando de Olívia só as esparsas lembranças da
menininha acompanhando o jogo de bolinhas de gude, a fita xadrez, o cheiro de
pó-de-arroz, os variados perfumes e os nomes de todas as flores, que decorou.
Mas
de quando em quando ele voltava a São Paulo, a negócios. Vinha de avião, mas
alugava um carro de primeira linha para visitar os clientes e ao final de tudo,
passava por lá. Ficava zangado consigo mesmo, precisava tomar coragem e pedir
para entrar, nem que fosse numa primeira e última vez, mas entrar, falar algo,
ele já era um empresário, poxa!
Mas
parado no carro alugado defronte ao quintal que insistia em não acompanhar os
modismos, o empresário ponderou o que vinha insistindo em não ver, como se não estivesse
sempre ali, à sua frente: – que não haveria possibilidade alguma de
relacionamento entre ele, um homem casado, com dois filhos, uma filha prestes a
ganhar bebê, que só fizera correr pela vida atrás de peças, e aquela delicada
mulher, que escolheu viver sozinha, regando flores, lendo livros e tocando
piano.
Não
posso mais voltar aqui, ele se pegou falando alto, sem se preocupar, conhecia
aquela rua tão bem que sabia do seu silêncio sepulcral. Não posso pedir para
entrar numa casa sem ser convidado. Plim! era o filho: já estou indo Plim!, e subiu
a ladeira no Peugeot alugado, sem chorar porque homem até chora, mas nesse caso
já não era mais tempo de lágrimas, mas
piscando a marejada ideia de entrar arrematou: Não posso pisar nunca mais nesse
jardim amarelo, porque te amo demais, e porque te amo demais é que preciso te
esquecer.
Se
a Farah Maluf estiver boa chego em trinta minutos no aeroporto, no máximo
quarenta. Plim!
E
o garotinho de blusinha de listras abandonou para sempre a garotinha de fita
xadrez. Da janelinha do avião, como se estivesse à janelinha do Fiat 147, via mentalmente
o jardim nos seus escondidos detalhes, e repetiu te amo demais, Olívia. É por
isso que preciso te esquecer.