te amo demais, Olívia. é por isso que preciso te esquecer


Ele vinha brincar com o irmão dela de vez em quando. Bolinhas de gude. Naquele tempo menino não brincava com menina, e embora ela soubesse jogar, pois brincava com o irmão, aceitava resignada o seu papel de menininha observadora. Quatro aninhos mais nova que os dois.

 

Era vê-lo empurrando o portãozinho de madeira que ela corria até a penteadeira da mãe pentear o já penteado cabelinho, ajeitar a já ajeitada fitinha xadrez, que mãe colocava todo sempre. Não havendo perfume – havia, mas era da mãe – a solução era passar leite de colônia, e bem disfarçadamente, o pó da caixinha, que naquele tempo se chamava pó-de-arroz.

 

A mãe percebia esses truques, dava uma risadinha íntima e fingia que não via, concordava com o bom gosto da filha, porque bonitinho ele era.

 

Bonitinho e bem arrumado, pois o que ela não sabia, era que ele também se arrumava para vir brincar. Insistia com a mãe para que deixasse ajeitada a blusinha polo de listras em vermelho, azul marinho e verde, e gola vermelha, de que ele tanto gostava.

 

Um gostando do outro, o outro gostando do um, e ambos envergonhados disso.

 

Ele queria puxar assunto, mas não havia assunto a puxar, até porque ela era muito novinha, perguntar o quê, de boneca?

 

Quantas flores vocês tem neste jardim, não? iniciou um expediente perguntando ao irmão, você sabe o nome delas? Ele sabia que menino não sabe nome de flor. E o irmão deu de ombros, e sem sair da posição de ataque para rapelar a amarela de olhinho, apontou a irmã com a cabeça.

 

O coraçãozinho dela deu um pulo, e sentindo o rosto queimadinho de vergonha, deu de falar essa é a dália, esse é o girassol, o menino, girassol eu sei, e essa? essas são hortênsias – ela sabia usar a concordância gramatical. E foi apontando os pés de hibiscos, flor-de-maravilha, brincos de princesa, azaleias, e deixou por último os lisiantus, as rosas amarelas, e os cravos, também amarelos, orgulho de suas tias.

 

A casa em que moravam era nos fundos, na frente moravam a avó e as tias, mas o quintalzinho bem cuidado, que além de flores também comportava um limoeiro, um caquizeiro, uma mangueira de mangas enfezadas, além de morangos silvestres à roda, subindo pelos muros, era das crianças, que, cuidadosas, sabiam brincar sem destruir nada, ao contrário do que faz a grande maioria das crianças que há. O capricho principal daquelas mulheres eram os girassóis, as tias se enchiam de orgulho ao dizer que girassol é dificultoso de cultivar, então os irmãos tomavam todo o cuidado do mundo quando brincavam de bola, e era uma beleza quando eles floresciam, cabecinhas todas viradas para o sol. Isso somado aos cravos e flores-de-maravilha amarelos, deixava o quintal lindo, de um amarelo só, combinando com a casinha, em estilo americano, com seu telhado de duas águas, também amarela, amarelo desmaiado, segundo a avó.

 

Mas um dia acabou a infância. O irmão foi trabalhar em algum lugar, o amiguinho – Wellington, ou Lelo, foi trabalhar em uma fábrica, e ela seguiu com os estudos, e com isso virou menina metida.

 

Naqueles tempos não era moda como é hoje ser operário, modismo era ser estudante, andar de calça ou macacão jeans, camiseta de uma cor só, tênis brancos que se chamavam kédis, e cara lavada e cabelão solto para as meninas, moda que vinha sendo introduzida pela Sônia Braga no programa Vila Sésamo, que todos assistiam dando uma de superiores, ora, assistimos porque é bonitinho, mas isso é para crianças. Mas ela não perdia um programa, e adorava.

 

Completando seu estilo, óculos redondinhos e coloridos como os da Rita Lee. Cadernos e livros nos braços, cara de importante, passou a se achar melhor que os outros, principalmente muito melhor que o Lelo, que usava uniforme de operário e tinha as mãos sujas de graxa.

 

Mas eles se encontravam, moravam perto, ele oi, ela oi, tudo bem? Fazendo o tipo condescendente. Até gostava quando alguma coleguinha via que ela cumprimentava um operário. Era o esnobismo do esnobismo

 

O tempo continuou passando. A avó e as tias morreram, a família veio morar na casa da frente, o irmão casou, ficaram só ela e os pais, e ele de tempos em tempos via a menina agora uma moça – Olívia, chegando ou saindo de carro com as amigas e às vezes com os amigos, namorados, carinhas. Mas até onde ele soube, ela nunca se casou.

 

O tempo passou para eles mais uma vezada. Ele já não era mais Wellington nem tampouco Lelo, mas sim Oliveira, e era representante de artigos hidráulicos. Trabalhava com seu próprio carro, um Fiat 147. Foi nesse carro em que aprendeu a dirigir, e o pai, para ensinar o teste de ladeira antes do exame de motorista o levou justamente para frente da casa dela. Ele morreu de vergonha que ela o visse, mas aquela era de fato a melhor ladeira do bairro, e ela morava bem no cume. Enquanto enfiava e afundava os pés desastradamente nos pedais de embreagem, notou que o jardim ainda era cuidado com carinho. Lembrou que gostava daquele constante frescor do quintalzinho, do perfume um pouco enjoativo da dama da noite, foi pior ontem de noite! o irmão dizia. Lembrou-se do constante cheiro de grama e terra molhada, e lembrou que gostava de encontrar a menininha de laços no cabelo e rosto cheirando a pó-de-arroz.

 

E era então como Oliveira, já motorizado, os blocos de pedidos empilhados sobre o banco do passageiro, caixas de peças no banco de trás, que ele sempre dava um jeito de passar por lá, mesmo modificando o trajeto, para ver a casinha amarela com seus girassóis, cujo estilo resistia às mudanças do tempo. Ainda se encontravam. E era o mesmo oi, oi tudo bem? e nada mais.

 

O que ele não sabia, e nem ela com clareza, é que ela gostava dele, e lembrava, sim, de seu coraçãozinho batendo quando ele abria o portão, e lamentava que... lamentava o quê mesmo? Ela não sabia. Lamentava que algo tinha se partido, e talvez por  bobeira dela, porque ela notava e gostava, quando mocinha, dos olhares esticados dele pra ela, e de suas esnobadas de garota metida.

 

A bobeira dela se esticou demais, pois Oliveira um dia se encontrou com aquela que viria a ser sua esposa, que de fato foi, e que lhe deu filhos. Eles mudaram para uma outra casa no mesmo bairro. Soube por alto que os pais dela morreram, e que ela vivia só, na casinha, com suas flores. Ela já não usava mais o cabelo Sônia Braga, mas sim aquele cabelinho de jovem senhora à altura do pescoço, tingido de loiro ruivinho. E as calças jeans deram lugar a longos vestidos de pano fininho com flores miúdas que de longe pareciam estar sujos, ou gastos.

 

Ele ainda passava por lá, até que um dia foi formando na cabeça a ideia de tocar a campainha.

 

Mas... falar o quê? pensava. A nossa conversa esses anos todos não passou de oi tudo bem? Pedir para entrar? Se não tinha entrado nem quando moleque, não passava do quintal? Perguntar do irmão? Já nem se lembrava do nome dele, o irmão era só um pretexto para ir lá!

 

Um dia parou o carro que já não era mais o 147, mas o Uno, do outro lado da rua, com o coração batendo acelerado como no dia em que tirou a carteira de habilitação. Ela estava bem no meio do jardim, ajoelhada, usando luvas de jardinagem, arrancando matinhos do chão. Só o que os separava era uma fita de asfalto, mas aquilo foi para ele como a vastidão do mar. Faltou coragem, girou a chave, foi.

 

Desse dia em diante passou a parar sempre em frente a casa, fingindo que anotava algum pedido, falando ao Telesp Celular, aparelho maldito que não dava sinal mas que todo mundo queria ter.

 

Um dia abaixou o vidro do carro só para sentir aquele perfume mistura de terra e flor, mas quem funcionou não foi seu olfato e sim sua audição – saía som de piano de dentro da casa. - Então ela toca piano... será professora?

 

Em outras passadas conseguiu numa pescoçada ver que havia uma estante cheia de livros ao lado de uma cristaleira na sala da frente. E se imaginou lá dentro conversando sobre... sobre...Oliveira?! era o Nextel. Plim! Fala Germano! Plim! Sabe aquelas braçadeiras da Petrópolis 915? Plim! Já sei qual foi o problema, já estou indo para lá. E se obrigando a aceitar que não havia nada para se conversar entre um atacadista de peças e uma pianista que cultivava flores num quintal amarelo, ele empurrou o garotinho do passado, que insistia em sair pra conversar com uma garotinha do passado, e o escondeu bem escondido dentro da jaqueta de couro fechando o zíper, não sem sentir um nó na garganta, e foi.

 

Essa ainda não foi a última vez. Ele veio um dia para se despedir. Ela usava o mesmo vestido amarelo com estampas que de longe pareciam flores desbotadas, longo, fino, esvoaçante, era a brisa da tarde passando. Amarrava uns cachos de brincos de princesa nos galhos. O que ele não sabia, era que naquele exato momento ela se lembrava da garotinha que estava no quintal brincando de colar um brinco de princesa com durex na orelha, e que correu envergonhada para dentro de casa quando o viu chegar.

 

Naquele momento um operário recebia o Diploma de Presidente da República, e ela, lembrando-se de como desdenhara o macacão azul desbotado do Lelo, sentia-se uma grandessíssima besta, e apaixonada que era pelo Roberto Carlos, contemplava seu jardinzinho cantarolando De que vale tudo isso se você não está aqui.

 

Nem sabia que era um dia de despedida, nunca reparou em um carro quase sempre parado por ali, que naquele dia era um Vectra.

 

Ele foi embora para Florianópolis, onde tinha convite para sociedade num próspero atacadista de peças hidráulicas, levando de Olívia só as esparsas lembranças da menininha acompanhando o jogo de bolinhas de gude, a fita xadrez, o cheiro de pó-de-arroz, os variados perfumes e os nomes de todas as flores, que decorou.

 

Mas de quando em quando ele voltava a São Paulo, a negócios. Vinha de avião, mas alugava um carro de primeira linha para visitar os clientes e ao final de tudo, passava por lá. Ficava zangado consigo mesmo, precisava tomar coragem e pedir para entrar, nem que fosse numa primeira e última vez, mas entrar, falar algo, ele já era um empresário, poxa!

 

Mas parado no carro alugado defronte ao quintal que insistia em não acompanhar os modismos, o empresário ponderou o que vinha insistindo em não ver, como se não estivesse sempre ali, à sua frente: – que não haveria possibilidade alguma de relacionamento entre ele, um homem casado, com dois filhos, uma filha prestes a ganhar bebê, que só fizera correr pela vida atrás de peças, e aquela delicada mulher, que escolheu viver sozinha, regando flores, lendo livros e tocando piano.

 

Não posso mais voltar aqui, ele se pegou falando alto, sem se preocupar, conhecia aquela rua tão bem que sabia do seu silêncio sepulcral. Não posso pedir para entrar numa casa sem ser convidado. Plim! era o filho: já estou indo Plim!, e subiu a ladeira no Peugeot alugado, sem chorar porque homem até chora, mas nesse caso já não era mais tempo de  lágrimas, mas piscando a marejada ideia de entrar arrematou: Não posso pisar nunca mais nesse jardim amarelo, porque te amo demais, e porque te amo demais é que preciso te esquecer.

 

Se a Farah Maluf estiver boa chego em trinta minutos no aeroporto, no máximo quarenta. Plim!

 

E o garotinho de blusinha de listras abandonou para sempre a garotinha de fita xadrez. Da janelinha do avião, como se estivesse à janelinha do Fiat 147, via mentalmente o jardim nos seus escondidos detalhes, e repetiu te amo demais, Olívia. É por isso que preciso te esquecer.
                                               

autor russo?! vá se catar!

Olá, eu sou a Jô, e venho contar como foi que o Jê terminou comigo, é muito simples, terminou esnobando cultura, não fosse eu uma amante de livros. Tudo bem que livros nacionais, melhor dizendo, li alguma coisa escrita não só aqui, mas também nesse mundo de Deus, mas traduzido, porque trabalho desde sempre e nunca aprendi idioma nenhum, até que leio bem em italiano e espanhol, mas só. Mas o que quero dizer é que não sou exatamente assim uma anta, e entendo perfeitamente um olá, sabe, seguinte cara, não te amo. Não do jeito que você me ama, te amo só um pouquinho, o outro pouquinho quero ficar só, e não é que eu entendia? Porque também sou assim. Quem disse pra esse imbecil que eu queria casar, botar apê, pendurar contas em geladeira e procriar? Sou preguiçosa, adoro não fazer nada.

 

Fonoaudióloga. Foi assim que conheci o fanho do Jê. Que deixou de ser fanho graças a mim e ao bom Deus; tenho fé no meu trabalho, mas, na dúvida se Deus existe ou não, faço o sinal da cruz sempre antes de chamar cliente novo pra sala. Fiz pro Jê, mas foi de agradecimento ao divino, ô homem lindo Senhor do céu e da terra, ó, não preciso nem de sua ajuda pra esse aí não, tá? Com ele dá pra ir de boa, brincadeirinha Deus, e rodava nas mãos delicadamente meus elegantes anéis, exibindo mãos perfumadas a creme nívea sem nenhuma aliança, sua idade Jeremias?

 

Vou pular toda essa parte. Houve flerte, namoro, ficância e fornicância, e foi tudo muito bom, principalmente a fornicância, de onde puxei essa palavra antiga? Das freiras do colégio? Arre!  Mas o Jê voltou para sua terra natal, claro que eu não fui. Não deixo a capital por nada nesse mundo, mentira, ele não me chamou. Voltou pra alguma prima, ou pra sua solidão de macho que se vira muito bem por aí com aquela beleza toda. Homem que é homem não precisa nem de mulher essa frase é minha mesmo.

 

Mas como não quero tomar seu tempo vou contar como foi a esnobação: primeiro, uma letra de música sugerida pelo eme esse ene. Fui conferir, cantor escocês, letra idem, bonita a canção, mas já era esnobação de quem sabe que só curto chico, gil, caetano, zé ramalho e chitãozinho e xororó, ou melhor, brasileiros, porque entendo.  Depois, a sugestão de um autor. Fui conferir, mas a obra do cara é vasta pra caramba, e a maioria em inglês que não leio, e não vou sair me endividando em curso e livros. E não vou ficar catando frases no gúgol, não tem nada mais chato do que frases recortadas de um conto que a gente não leu. Finalmente, que eu não deixasse de ler a história de vida de uma fulana aí, que só não acabou no irajá porque não era a greta garbo do fernando melo, mas uma história complicada que até me ofendeu, pô, esse cara me vê assim?!

 

É por isso que estou fazendo as malas e me mudando para o Favelão do Prata, comunidade, conserta minha dentista, pois estou em plena boca aberta passando a decisão para ela, que além de dentista é minha melhor amiga, conserta minha boca e minhas ideias também. Não diz favela que o povo se ofende, está certo, é comunidade mesmo, decerto Deus já voltou e está faz tempo morando ora numa ora noutra, verdadeiros paraísos, não conheço povo mais resolvido do que povo de comunidade.

 

Lá a coisa funciona assim: Chega o cara, conhece a mulher, ela com três filhos. Mulher de comunidade sempre tem filhos, a maioria de pais diferentes, está certa ela, empresta o útero para vários tipos de genética, e ama a todos, igualzinho.  Ele sabe da frase quem beija meu filho adoça minha boca, então brinca de valentias de time de futebol com o mais velho, dá devedê pro do meio, pra menina ele só faz um oi, porque menina tem de respeitar.

 

Um dia assim do nada ele pega uma conta da geladeira e paga. Em outro ele traz uma pizza. Num final de semana chega com uma picanha, linguicinhas e asinhas de frango e ameaça um churrasco, não tem churrasqueira, que pena, por isso não, vamos ao hiper, a gente parcela, te ajudo a pagar...

 

Começou aí. A toalha vai ao chão quando ele deixa uma camiseta suja, sem problemas, eu bato na máquina, amanhã você pega. E bate a toalha também, que ele realmente jogou no chão. Quando roupas de um homem e uma mulher rodam na mesma máquina de lavar, já era, o caso começou.

 

E não pense que não rola briga porque rola sim, um dia é a conta que ele ou ela se esqueceram de pagar, ou a moleza que ele dá no serviço de faltar toda segunda feira por conta do futebol, ou as camisetas do mais velho que ele já pega sem pedir licença, mas as brigas também acabam, a maioria resolvida em nhem-nhém, e abaixa a cortina aí, a menina pode acordar, ele atende, todo responsa, menina tem de respeitar. E a vida segue, ô se segue.

 

Tem, claro, algum desajuste, vai que um dia ele pá, na cara dela, só que mulher inteligente hoje não apanha mais não, ela pega e pá na cara dele também, e fica pianinho tá, que te jogo uma maria da penha. O cara fica todo murchinho, porque maria da penha impede emprego de segurança, justamente o bico que ele dá entre uma carteira assinada e outra porque emprego é coisa que o povo perde muito.

 
Um dia ela pode botar ele pra fora, por se cansar de suas folgadezas, ou por estar de paixão por outro. E tudo acaba assim, com alguma briga de permeio, talvez um último beijo, cheirando a cerveja e bafejado de fumaça do churrasco da laje vizinha, e fim, que esta explicação ficou longa demais.

 
O que quero dizer é que gente de comunidade leva vida muito mais interessante, eles sim os chiques. Nós, os do eme-esse-ene, dos feicebuques e tantas milongas mais, ficamos postando fotinhos debaixo de frases feitas por escoceses, tailandeses, siameses, o diabaquatro, sabe, usando frase da cabeça dos outros porque não temos a nossa, e não temos a simplicidade de tocar a campainha da casa de um ser humano – UM SER HUMANO – e dizer: vim até aqui, combustível, avião, pernoite, o escambal, você merece, mas vim até aqui pra te dizer olhando nos seus olhos que não te amo, ou que amo outra, ou que não amo ninguém, que não espere nada de mim, não vai rolar, e sem essa da frase manjada não é por mim, é por você, que essa aí não enganou nem minha avó. Canta a letra: Não te amo e nem quero tentar.

 

E que perguntasse se a gente está precisando de alguma coisa, que pegasse uma continha da gente pra pagar, sabe? alguma continha do finzinho da relação? que isso é delicadeza e mulher gosta. Mas ah, me poupe! Letra de música escocesa, autor russo?! Vá se catar!

em sonora gargalhada, que meu nome era Obra


Jeremiando Silva.

Pois é. Esse é o meu nome.

Não é Jeremias da Silva.  Jeremias Silva. Ou José Jeremias da Silva.

É Jeremiando mesmo. E para arrematar, Silva.

Não me queixo do Silva, até aí tudo bem. Sou um brasileiro entre tantos. Somos todos Silvas, uma de nossas tantas heranças lusitanas.

O problema mesmo é o Jeremiando, e você já deve estar se perguntando de onde veio esse nome esquisito, eu explico. Meus pais, que Deus Nosso Senhor Jesus Cristo os tenha, quando eu esperneei neste mundo lá no município de Juazeiro do Norte, no Cariri, Ceará, frequentavam uma igreja de crentes cujo nome prefiro esquecer, e que de tão esdrúxulo não faço questão de passar adiante. Já acho esdrúxulo alguém ser crente em terras de Padim Ciço. Deviam ser os únicos, mais o pastor.

Mas continuando, os dois, querendo homenagear um personagem bíblico, e depois de muito quebrarem a cabeça, escolheram Jeremias.

Mas havia um problema.

Meu avô materno, que Deus o tenha um pouco mais acima dos meus pais por ser mais velho, tinha o belo nome de Fernando, e mainha queria homenageá-lo também, e disso não abria mão. Aí começa a minha triste história, pois que painho não abria mão do Jeremias.

A magnífica ideia que veio do pastor foi essa: Jeremiando, e eu sei que você já entendeu a lógica do cabra: uma infeliz mistura de Jeremias com Fernando.  Que foi imediatamente aceita pelos dois, meus inocentes painho e mainha, que Deus os tenha bem instalados no mais confortável lugar do céu, porque tirando essa escorregada, eles foram ótimos comigo.

Se fosse para ter raiva de alguém, eu teria do pastor. Não podia ter dado a ideia de Jeremias Fernando? Mas o tempo passou, e hoje não tenho raiva de mais ninguém, e até acho graça.

Foi assim que segui pela vida Jeremiando, sendo o jeremiando no caso meu nome próprio e adjunto adverbial, porque eu era muito reclamão, mas estou me adiantando, vamos aos fatos.

Motivos para reclamar eu tinha de sobra, pois as gozações dos moleques começavam pelo meu nome estranho. Sim, se você pensou, sim, eles me chamavam de Miando. Primeiro problema.

O segundo problema é que eu era um tremendo perna de pau, péssimo atributo para se possuir abaixo da linha do Equador. Resultado: Jeremiando Ficando. No banco, que era onde eu ficava sempre.

O terceiro problema era o meu nariz achatado. Muito achatado, o que fazia minha voz fanhosa. Resultado: Jeremiando Ando, sendo o ando sempre pronunciado fanhosamente pelos meus caros coleguinhas, em rasa gozação. Ando Napa também era outro de meus apelidos.

Mas a gente cresce, cresci, botei barba, meus pais deram duro para que eu estudasse, fui para São Paulo concluir os estudos e consertar o nariz e a fala, e para começar com o pé direito na Capital, sempre que conhecia alguém me apresentava como Jê. Esse Jê é Jê de quê? sempre perguntava algum chato, e eu me desincumbia da explicação dizendo que era Jê de Jê mesmo, pois já aprendera a me defender de ameaços, o curso com os coleguinhas de Juazeiro foi, digamos, intensivo.

O povo que ficasse pensando que era Gê de Geraldo, naquele tempo não existiam redes sociais ou endereços eletrônicos, nada onde a gente precisasse soletrar o próprio nome.

Mas sim, claro, alguém sempre descobria, ameaçavam risadas e tal, mas eu já sabia me defender muito bem como disse acima.

Nunca me dei ao trabalho de ler a santa bíblia para saber quem era o filho de uma égua responsável pelo meu nome, até porque nunca me dei ao trabalho de ler muita coisa. Abandonei a faculdade no primeiro ano, e fui trabalhar em emissoras de rádio, porque alguém me contratou como locutor por gostar do meu vozeirão. E aqui vai um abraço para o doutor Francelino que consertou meu nariz, e um beijo para a doutora Joelma, que além de muito gostosa consertou a minha fala. A Jô. Por algum tempo fomos o Jê e a Jô.

Mas agora vem a hora de eu explicar o porquê de eu ter sido um reclamão a vida toda, e a explicação é – não sei. Um cara versado em Melanie Klein, Lacan, Jung ou qualquer desses caras poderia falar em recalques de infância, mas eu nunca me dei ao trabalho de me assentar nesses bancos de reclamações psicológicas. Nada contra, mas é que não me passou pela cabeça mesmo fazer análise. Mas o caso é que eu sempre reclamava. Se chovia era por que chovia, se estiava era por que estiava, e era o governo, e era a alta dos preços, e os taxistas e os manobristas e os garçons e...a lista segue em frente e entorta a fila, faz a volta e volta.

Até que um dia fiz amizade com um sujeito gente fina pra caramba, o baiano Theodoro, que me soltou essa frase – cara, tu jeremia demais, para com essa jeremiada, ô!

- Jeremi o quê? - Jeremiada. Reclamação. Tu nunca leu os profetas não, foi?

Então eu abri a história do meu nome ao meu novo amigo, ele inspirava confiança. Claro que ele riu muito, e compartilhou comigo o restinho de raiva que eu tinha do tal pastor, muito mais por ser ele, o Aristides Theodoro, ateu de carteirinha e bombeta. Mas ele possuía em sua vasta coleção de livros uma bíblia, que tirou de uma das estantes de sua casa, abriu, e me mostrou o tal sujeito, no caso um profeta, que segundo ele reclamava tanto que chegou a ganhar um capítulo da bíblia só com o chororô  – Lamentações de Jeremias. – Capítulo não, disse o Theodoro, livros, a bíblia é dividida em livros, explicou. E que do tal livro veio o uso das palavras jeremiar, jeremiada, como sinônimas de excesso de reclamação. Eu li tudinho pra confirmar, e meu amigo estava certo, era reclamação demais.

Meu amigo me emprestou além da bíblia muitos outros livros, muitos. – Já que você gosta tanto de reclamar, pelo menos reclame com conhecimento de causa, e me emprestou vários clássicos, onde aprendi que desde o início dos tempos o mundo é cruel, e já pude constatar começando com a própria bíblia.

Nada místico, meu amigo teve de abrir mão por alguns instantes de suas descrenças, para me dizer, em sonora gargalhada, que meu nome era Obra.