como Ele se desincumbe de mim sem mim




Não é bom-mocismo demais, macio demais, feminino demais o conceito de perdão a qualquer preço da fé cristã? Tem muita mágoa varrida pra debaixo dos tapetes do porão do inferno disfarçada de perdão. Prefiro usar meu ódio até gastar. E Jesus que fique com o bom-mocismo dele, com as madalenas e com os judas.

A efeminar a sociedade, eu a prefiro justa. Dá licença Jesus, que eu assumo daqui. – Está disposta a começar a justiça em você?!, pergunta um irritante Jesus ao meu ouvido. O caso é assim: a psicanálise moderna aconselha a sermos magnânimos conosco, e inflexíveis com todos. Conheço muito padre psicanalista – de que lado ficar? Só com padre Roberto eu conseguiria discutir essas questões. Ser considerado tolerante é estar na moda, sei não, tem horas que prefiro ficar em paz com minha cafonice. Quero todos os meus perdões de volta, foram precipitados. Ou isso, ou hoje eu acordei com uma enorme vontade de brigar.

Não peço a Deus que me perdoe de nada, eu sou problema Dele, veremos como Ele me resolve, como Ele se desincumbe de mim sem mim.

de nenhum de vocês, se duvidar, nem de Deus



Voltando da missa com a Edna, ela me disse que não tem Graça que não receba, mas isso são Graças contadas, olha que curioso, o que quis dizer foi: são favas contadas. A Edna tem um amor de marido, o marido tem um belo emprego e os dois tem três filhos de ouro, Deus não tem trabalho nenhum com ela, diferente de mim. Acho que Deus não sabe mais a pegada que usa comigo, eu devo dar um trabalho medonho, Deus me manda: vá falar com a Ana. A Ana desfila a lista dos livros maravilhosos que está lendo, frases reveladoras, solucionadoras, você precisa ler, são de tirar o fôlego, e eu vou, e compro, e leio com sofreguidão, mas não perco o fôlego, só o dinheiro, e os livros não me passaram nada.

Ligo para o Ruy, o Ruy sabe tudo sobre a Nova Ordem Mundial, me passa um sem número de sugestões para uma vida melhor, para uma preparação para os novos tempos que virão, inclusive comida autêntica, essa que não passa pelo código de barras, que eu teria de ir comprar lá sei onde, nem presto atenção ao endereço porque sei que não vou. Mesmo assim fui ao iridologista que ele me indicou, você vai achar o máximo, o sujeito olha tua íris e fala tudo sobre a sua vida, fui, o sujeito disse que havia uma desbravadora dentro de mim, só não perguntei: e?, porque sou educada. Ele me deu umas ervas para o fígado e só. Voltei de trem me sentindo mais infeliz do que quando fui.

Os amigos são gente boa, todos querem me ajudar, Mary telefona perguntando se quero ir ao culto, o pastor é ótimo, fala coisas que tocam fundo no coração da gente, fico sem graça de dizer a ela que dentro de uma igreja só consigo contar cabeças, mas fui. Mary chorava ao som da música desafinada e eu só lamentava estar perdendo a dança dos famosos, e voltei me sentindo mais infeliz do que quando saí de casa, o culto não me passou nada.

Sempre tem o facebook. Pessoas melhor resolvidas que no facebook desconheço, todas sabem o assunto da vez, a frase do momento, o melhor conselho, a solução para a crise nacional, o que a gente deve e não deve dizer ou fazer. O segredo da felicidade está em: pááá. Gostaria de dar uma festa com todos meus amigos virtuais, será que são assim tão descolados pessoalmente? Cinco minutos de exposição foram suficientes para me desanimar com a raça humana, assim caminha a humanidade? O facebook não me passou nada e desliguei o laptop me sentindo mais infeliz do que quando liguei.

Leio um livro cult super chato, ouço um concerto na Cultura, viro para a Mundial que me aconselha a invocar Santa Sara Kali, boto um dvd  brasileiro que até me arranca umas risadas e do nada começo a chorar. Se eu fosse feliz estaria agora fazendo o que? Quando eu finalmente for feliz, será que eu saberei que então estou feliz? Existe uma luzinha que acende?

O Moreira toma seu lugar de sempre no tapetinho ao pé da cama, onde enrolado tranquilamente, noite após noite, me avisa que o dia acabou, é hora de enrolar e deixar a noite rolar, a vida dele é tranquila como a minha também é, não tenho do que me queixar, tenho casa, tenho roupa, não me falta o pão. Não posso reclamar que falta amor porque muitos me quiseram quem não quis fui eu. Não posso me queixar de que faltam amigos, eles estão à distância de um táxi, um telefonema, um e-mail, são todos especiais, todos têm muita paciência comigo, carinho é o que não me falta, mas então, o que me falta?

Existe uma desbravadora dentro de mim, disse o iridologista. Não tive vontade de resmungar que o mundo já estava todo desbravado, sabia que ele viria com aquele papo romântico cabeça de que o que falta desbravar é o que está dentro de mim, até eu usaria essa frase, o fato é que frases não me emocionam, formar frases é a coisa mais fácil que há, difícil é tirar a mochila do armário, e estou aqui usando a totalidade do alcance da frase tirar do armário, e botar a mochila pra funcionar, com uma muda de roupas dentro e uma estrada pela frente, isso sim seria desbravar, isso sim passaria alguma coisa, isso me ressuscitaria, ah, o cheiro bom do mato da estrada, e os amigos que me perdoem, e os livros, e os discos, e os conselhos e as missas e os cultos, mas para essa pegada eu não precisaria da ajuda de nenhum de vocês, se duvidar, nem de Deus.