uma, duas, no máximo três

Foi então que ela fez uma mistura um pouquinho mais carregada de remédios e foi parar nos corredores do socorro público. – Taqueo! (Taqueo é um tipo de pqp), não foi nenhuma tentativa de nada, foi um pequeno descuido, pô! Mas o povinho do hospital não quer nem saber se é pouco ou muito, segue o protocolo, lavagem gástrica nela! A mané foi ao hospital pelas suas próprias pernas, não estava tão ruim assim, estava só um pouco zoada, mas, pensando bem, se ela fosse um dos funcionários, também recomendaria a tal da lavagem. Uma tortura. Nada simpáticos, – aguenta aí! Quem mandou não ter juízo, olhe à sua volta, veja quantos velhinhos e velhinhas querendo viver. Tinha lá uma dúzia de velhinhos que já estavam antes de ela chegar, e continuaram lá por muito tempo depois, até onde ela se recorda.

Isso porque em dado momento ela apagou e, é... o coquetel devia estar puxado mesmo. Um enfermeiro dava tapinhas na cara dela, mas parecia estar com vontade mesmo era de dar taponas, a senhora lembra o que tomou? Lembrar ela lembrava, mas não estava com vontade nenhuma de cooperar, ora, façam um exame toxicológico, pensou, e mesmo grogue achou graça de sua petulância, onde você pensa que está, no CSI Las Vegas? – O que deu no toxicológico? perguntou Gil Grissom para Sara Sidle.

 – A senhora tem mais desses remédios em casa? Essa pergunta achou melhor responder, não, não tenho. Estava zoada, mas não estava boba. Sim, ela tinha em casa medicamentos além da conta, mas não havia nenhuma intenção de fazer besteira, era falta de confiança no serviço público, já chegou a ficar sem receita numa época de falta de médicos, teve de comprar pela internet, pagar uma fortuna. Começou a mentir aos psiquiatras para conseguir doses maiores na receita, e passou a fazer estoque. Foi só. Todo maluco ajuizado faz isso.

Passados alguns dias, já em casa, ah, sim, claro, o hospital não a reteve, não dispomos de leitos para quem se entope de tarja preta, vocês não dispõem de leitos para ninguém, vocês não tem leitos que bastem, olha quantos doentes nos corredores, não, não disse nada disso, era educada, me desculpem, obrigada doutor, sim, tomarei mais cuidado da próxima vez, mas como ia dizendo, passados alguns dias, recebeu uma intimação da delegacia de polícia, fala o delegado:

– Eu vou marcar o rosto da senhora porque o seu rosto é fácil de marcar porque a senhora é feia (ela deu uma bonita risada que fez o delegado rir também, ela era feia de risada bonita), mas não pense que estou brincando, se a senhora me aparecer de novo naquele hospital com coquetel no estômago eu lhe enquadro, e falou qualquer coisa sobre serviços à comunidade e cestas básicas. Nem um pouco zangada, antes curiosa, ela se interessou, pediu para o doutor explicar a lei, mostrar os parágrafos, não, não é crime, ele falou mais brandamente. A lei entende que quem faz besteira com comprimidos ou outra coisa precisa de ajuda psicológica. Estava apenas lhe assustando, chamei a senhora aqui para aconselhá-la e encaminhá-la a um profissional, eu já me trato doutor, com quem, com doutora fulana de tal, vou ter de falar com ela, tudo bem, o telefone dela está aqui. Ficou ali mais alguns minutos ouvindo conselhos bondosos misturados a uma leve bronca por sobrecarregar o pobre do serviço público, e foi liberada, tudo isso por causa de uma mão errada num coquetelzinho? Que encrenca! O desgraçado do remédio também, bem que podia não ser doce, é perigoso calmante doce, eu estava precisando era de açúcar, fui pingando, pingando, passei a mão, foi só isso...

No dia seguinte acordou cedo, o que era raro de acontecer, e foi ao posto de saúde devolver os remédios excedentes que tinha em casa. Por segurança. Melhor continuar só com os Dry Martini, pensou. Dry Martini é divino, dá um barato razoável, e não pega nada, no máximo uma dor de cabeçazinha que uma aspirina resolve. Uma, duas, no máximo três.

e diz todo guloso o nome daquilo, e que não é estria não

Ela emagreceu vinte e cinco quilos e sentia-se orgulhosa disso. Não houve nenhum regime, simplesmente aconteceu. Ela ia sentindo a cintura afinando e a calça jeans 48 ficando cada vez mais larga, mais larga, até o dia em que respirou fundo e entrou na loja de vitrine, vejam bem, a de vitrine, não a de departamentos, e pediu uma calça de número 38. Serviu.

Lojas de vitrines só servem para envergonhar as gordinhas, – é para minha filha, ela falava, quando pedia para ver uma calça ou blusinha que sabia que não iria servir. Nas lojas de departamentos, – não se fala mais assim –, nas famosas, as tais âncoras de shoppings, é só fuçar à vontade nas araras, escolher a peça, ir ao provador, claro, há que se passar pelo olhar irônico da mocinha que conta as peças e dá a cartela de plástico com o número, a cara da mocinha dizendo: não adianta, não vai servir. Ela já chegou a comprar só de marra, só pra enganar que serviu? olha a bobeira.

Mas ela finalmente foi promovida às lojinhas de vitrines. Com que orgulho entrava e pedia, desenvolta, para ver aquela blusinha lá, a rosinha da ponta? Meu número? Não sei ao certo, dependendo da confecção é P. Achava uma glória falar displicente que não sabia ao certo o número, ou quando a vendedora já ia tirando do plástico a P sem perguntar. Era o céu.

As vizinhas vinham lhe perguntar na rua, o que foi que você fez? Complicado era explicar que não tinha feito nada, então inventava – caminhadas, cortei o açúcar... Tudo mentira. Bom mesmo era a cara de inveja delas, e saber que falavam pelas suas costas, “a gordura vai voltar, é só esperar pra ver, sempre volta...”

Só que não voltou, porque ela pegou gosto pela coisa e parou de comer. A princípio sentia muita fome, mas depois que achou um luxo estar numa reunião só de mulheres, e servir-se de dois amendoins e falar não sinto fome? acostumou-se a não comer mais. Aí vieram os inúmeros truques para enganar a fome, deu-se conta de que poderia escrever um livro e ficar rica: Como enganar a fome em 30 passos. Algo assim.

Passou a ir ao shopping para olhar comida, para ficar ainda mais envaidecida consigo mesma. Consigo sobreviver sem tudo isso, pensava, e chegava a calcular mentalmente o quanto economizava em dinheiro e calorias, principalmente calorias, e voltava para casa feliz, não gastei, não engordei, e coube em todas as roupas que experimentei. Não comprava nada, não era pródiga, além do mais, o dinheiro era pouco. Só o prazer de entrar nas roupas já a deixava imensamente feliz.

E as falas bobas: – meninas, engordei um quilo? É incrível como essa frase atrai o olhar de inveja da mulherada: – um quilo, olha só o problema da outra, meu problema são vinte quilos, diziam, e ela dava um risinho falso condescendente...

Mas este relato tem um mas, senão a gente já ia botando ponto final e isto aqui só serviria pra deixar mais uma mulher insatisfeita com o seu corpo, e já tem muita gente fazendo isso por aí, não seremos nós a engrossar essa fila. O mas foi que ela sentiu, primeiro, que sua fome tinha acabado mesmo, isto era fato. Um café com pão pela manhã, duas colheres de arroz e meia batata ao almoço, um copo de iogurte desnatado com adoçante à noite, seguido de um chá de camomila, com todos os truques engana fome de permeio, essa era sua dieta, e saciava. Em segundo, porém, e em definitivo, era que sua vontade de se alimentar da vida, aquela ontológica, essencial, se escoava, e ela não sabia por qual ralo. Deixar para trás um pudim de leite condensado ou um frappuccino com torta mousse de chocolate era infinitamente fácil, tão fácil que ela conseguira. Difícil era deixar para trás o sabor do instante, sabor que conhecem tão bem as que apertam os peitos 50 num meia taça 48 para provocar, apimentar a relação, deixar um homem suado e cheio de iniciativas. Difícil estava sendo viver se recusando a admitir que por trás dos cheiros deliciosos de gordices de shoppings existem pessoas procurando um momento fugaz que seja, de felicidade, de sossego, de conserto consigo mesmo, uma compensação boba do tipo fui bem na prova, mereço uma fatia de bolo cookie de maracujá, e que isso, sim, era bom.

Sabia que não era o doce. Não era a casquinha. Era a sensação. Era estar numa mesinha e saborear a casquinha sem culpa, e dane-se a blusinha, ou, depois eu penso nisso...

Era a bobeira que nos nivela, do tipo, tomei o sorvete, em casa não janto, mas jantar sim, e comer lasanha, e tomar uma cervejinha com o marido, e prometer que amanhã, sim, amanhã...e o corpo vai virando corpo de matrona, vai alargando, os seios querendo sair para fora do decote, e os vestidos longos colados ao corpo, exibindo lá e cá as dobrinhas, as gordurinhas de todas nós, aquela abundância e aquela maravilha toda...

As gordurinhas, as dobrinhas, a calça apertada estourando nas coxas, a cintura baixa com a barriguinha estufando pra fora, os furinhos nas nádegas, os magníficos peitões, são a história de todas nós, e esse era o mas: ela estava se sentindo sem história. Um corpinho sequinho andando sozinho pelo shopping exibindo... exibindo o que mesmo, meu Deus?

Olhou seu manequim esguio num contra espelho, sua certeza era que não, não queria os 25 quilos de volta, mulher nenhuma quer peso de volta. Mas queria, sim, voltar a se alimentar de vida, de cheiros, de sabores, de instantes, de desejos e conspirações, mesmo que na ponta disso tudo resultasse um sulco roxo de alça apertada de sutiã num ombro arredondado. Urgia procurar a sua história real, aquela da academia que se paga e nunca se vai, das tardes de brigadeiro de panela às risadas com as meninas, do deixa as linguicinhas pra mim no churrasco do cunhado, com aquele cheiro pestilento nos cabelos e tudo a que se tem direito, o que vale dizer muito pão de alho, caipirinha e cerveja, e de se super apertar num longo vermelho tomara que caia com uma fenda na coxa, toda bonitona para o casamento da prima, e se empanturrar de casadinhos e bolo, enquanto puxa e repuxa os panos pra cima dos peitos, porque só quem usa tomara que caia e não fica puxando e repuxando é a Angelina Jolie.

E do banho com o maridão no box, e não me derruba esse sabonete!, e isso aqui se chama estria, é? diz o marido apalpando tudo... e ele vem no ouvido da gente e diz todo guloso o nome daquilo, e que não é estria não.