e diz todo guloso o nome daquilo, e que não é estria não

Ela emagreceu vinte e cinco quilos e sentia-se orgulhosa disso. Não houve nenhum regime, simplesmente aconteceu. Ela ia sentindo a cintura afinando e a calça jeans 48 ficando cada vez mais larga, mais larga, até o dia em que respirou fundo e entrou na loja de vitrine, vejam bem, a de vitrine, não a de departamentos, e pediu uma calça de número 38. Serviu.

Lojas de vitrines só servem para envergonhar as gordinhas, – é para minha filha, ela falava, quando pedia para ver uma calça ou blusinha que sabia que não iria servir. Nas lojas de departamentos, – não se fala mais assim –, nas famosas, as tais âncoras de shoppings, é só fuçar à vontade nas araras, escolher a peça, ir ao provador, claro, há que se passar pelo olhar irônico da mocinha que conta as peças e dá a cartela de plástico com o número, a cara da mocinha dizendo: não adianta, não vai servir. Ela já chegou a comprar só de marra, só pra enganar que serviu? olha a bobeira.

Mas ela finalmente foi promovida às lojinhas de vitrines. Com que orgulho entrava e pedia, desenvolta, para ver aquela blusinha lá, a rosinha da ponta? Meu número? Não sei ao certo, dependendo da confecção é P. Achava uma glória falar displicente que não sabia ao certo o número, ou quando a vendedora já ia tirando do plástico a P sem perguntar. Era o céu.

As vizinhas vinham lhe perguntar na rua, o que foi que você fez? Complicado era explicar que não tinha feito nada, então inventava – caminhadas, cortei o açúcar... Tudo mentira. Bom mesmo era a cara de inveja delas, e saber que falavam pelas suas costas, “a gordura vai voltar, é só esperar pra ver, sempre volta...”

Só que não voltou, porque ela pegou gosto pela coisa e parou de comer. A princípio sentia muita fome, mas depois que achou um luxo estar numa reunião só de mulheres, e servir-se de dois amendoins e falar não sinto fome? acostumou-se a não comer mais. Aí vieram os inúmeros truques para enganar a fome, deu-se conta de que poderia escrever um livro e ficar rica: Como enganar a fome em 30 passos. Algo assim.

Passou a ir ao shopping para olhar comida, para ficar ainda mais envaidecida consigo mesma. Consigo sobreviver sem tudo isso, pensava, e chegava a calcular mentalmente o quanto economizava em dinheiro e calorias, principalmente calorias, e voltava para casa feliz, não gastei, não engordei, e coube em todas as roupas que experimentei. Não comprava nada, não era pródiga, além do mais, o dinheiro era pouco. Só o prazer de entrar nas roupas já a deixava imensamente feliz.

E as falas bobas: – meninas, engordei um quilo? É incrível como essa frase atrai o olhar de inveja da mulherada: – um quilo, olha só o problema da outra, meu problema são vinte quilos, diziam, e ela dava um risinho falso condescendente...

Mas este relato tem um mas, senão a gente já ia botando ponto final e isto aqui só serviria pra deixar mais uma mulher insatisfeita com o seu corpo, e já tem muita gente fazendo isso por aí, não seremos nós a engrossar essa fila. O mas foi que ela sentiu, primeiro, que sua fome tinha acabado mesmo, isto era fato. Um café com pão pela manhã, duas colheres de arroz e meia batata ao almoço, um copo de iogurte desnatado com adoçante à noite, seguido de um chá de camomila, com todos os truques engana fome de permeio, essa era sua dieta, e saciava. Em segundo, porém, e em definitivo, era que sua vontade de se alimentar da vida, aquela ontológica, essencial, se escoava, e ela não sabia por qual ralo. Deixar para trás um pudim de leite condensado ou um frappuccino com torta mousse de chocolate era infinitamente fácil, tão fácil que ela conseguira. Difícil era deixar para trás o sabor do instante, sabor que conhecem tão bem as que apertam os peitos 50 num meia taça 48 para provocar, apimentar a relação, deixar um homem suado e cheio de iniciativas. Difícil estava sendo viver se recusando a admitir que por trás dos cheiros deliciosos de gordices de shoppings existem pessoas procurando um momento fugaz que seja, de felicidade, de sossego, de conserto consigo mesmo, uma compensação boba do tipo fui bem na prova, mereço uma fatia de bolo cookie de maracujá, e que isso, sim, era bom.

Sabia que não era o doce. Não era a casquinha. Era a sensação. Era estar numa mesinha e saborear a casquinha sem culpa, e dane-se a blusinha, ou, depois eu penso nisso...

Era a bobeira que nos nivela, do tipo, tomei o sorvete, em casa não janto, mas jantar sim, e comer lasanha, e tomar uma cervejinha com o marido, e prometer que amanhã, sim, amanhã...e o corpo vai virando corpo de matrona, vai alargando, os seios querendo sair para fora do decote, e os vestidos longos colados ao corpo, exibindo lá e cá as dobrinhas, as gordurinhas de todas nós, aquela abundância e aquela maravilha toda...

As gordurinhas, as dobrinhas, a calça apertada estourando nas coxas, a cintura baixa com a barriguinha estufando pra fora, os furinhos nas nádegas, os magníficos peitões, são a história de todas nós, e esse era o mas: ela estava se sentindo sem história. Um corpinho sequinho andando sozinho pelo shopping exibindo... exibindo o que mesmo, meu Deus?

Olhou seu manequim esguio num contra espelho, sua certeza era que não, não queria os 25 quilos de volta, mulher nenhuma quer peso de volta. Mas queria, sim, voltar a se alimentar de vida, de cheiros, de sabores, de instantes, de desejos e conspirações, mesmo que na ponta disso tudo resultasse um sulco roxo de alça apertada de sutiã num ombro arredondado. Urgia procurar a sua história real, aquela da academia que se paga e nunca se vai, das tardes de brigadeiro de panela às risadas com as meninas, do deixa as linguicinhas pra mim no churrasco do cunhado, com aquele cheiro pestilento nos cabelos e tudo a que se tem direito, o que vale dizer muito pão de alho, caipirinha e cerveja, e de se super apertar num longo vermelho tomara que caia com uma fenda na coxa, toda bonitona para o casamento da prima, e se empanturrar de casadinhos e bolo, enquanto puxa e repuxa os panos pra cima dos peitos, porque só quem usa tomara que caia e não fica puxando e repuxando é a Angelina Jolie.

E do banho com o maridão no box, e não me derruba esse sabonete!, e isso aqui se chama estria, é? diz o marido apalpando tudo... e ele vem no ouvido da gente e diz todo guloso o nome daquilo, e que não é estria não.