porque sabe que eu gosto, e o nosso dia acaba assim



Esperar que coisas bacaninhas aconteçam,  pra só então ter o que contar, é perda de tempo precioso, porque coisas bacaninhas acontecem  o tempo todo. Como hoje, quando vesti uma blusa turquesa elástica que deixa meus peitos diminuídos em dois números, combinando com um par de meias turquesas, que embora possa parecer, não foi uma compra proposital, foi um acaso, achei a blusa numa lojinha e as meias xadrezinhas noutras, mas todas as amigas falam que gracinha, que lindas essas meias combinando com a blusa. O cabelo recém adaptado à enésima escova progressiva, trazia reflexos arroxeados que caiam bem ao sol de outono, e eu me sentia esguia, leve e feliz. Fui ao supermercado, nada romântico.

Comprar chá verde. Já diz a milenar sabedoria japonesa que o chá verde melhora o metabolismo impedindo o acréscimo de gordura, e isso é música para os ouvidos de qualquer mulher. Já que estava lá, comprei adoçante, e resisti bravamente à vontade de comprar Creme de Menta, que encheu minha boca de água, mas de pensar na quantidade de açúcar que aquela garrafa trazia, como disse, resisti. Mas não fui forte ante um chocolate meio amargo, que a moça da televisão falou que a gente pode explorar vez ou outra.

Na falta te ter o que fazer para preencher o espaço que vai da hora de almoço até a de preparar o jantar, resolvi me abrigar em baixo de meio clonazepan, que operou maravilhas. Sonhei que era menininha, que usava maria chiquinhas com vestido azul estampado, acordei feliz e disposta para atacar os preparativos do jantar.

E acho que a vida é isso. Se conto que havia uma enorme árvore em frente ao ponto de ônibus, monumental eu diria, coalhada de passarinhos, acho que é só mesmo para encher este espaço de beleza. Se conto também das moças trabalhadoras, cansadas, mas tagarelas, esperando o ônibus que as levaria para casa, é para dizer que há beleza até mesmo nessas trivialidades. E se conto que o ônibus demorou pouco, e que pela janelinha veio um gostoso calor de outono é para reafirmar a mim mesma que a vida segue agradável, com os agrados simples que ela nos faz.

Verdade que lamentei a falta do Creme de Menta, saberia otimamente bem com um cafezinho agora quando escrevo estas linhas. Talvez volte lá e compre o abençoado, que prazeres são necessários, e uns quilinhos a mais não me farão mal algum.

Daqui a pouco meu filho chega e o jantar dele já está pronto, e eu irei me atracar com algum seriado, ele me encheu de dvds de seriados americanos de presente porque sabe que eu gosto, e o nosso dia acaba assim.

isto dá em que pensar

Cidades da periferia de São Paulo são todas iguais, portanto não vou perder meu tempo descrevendo esta, mas não resisto a usar uma única palavra: seca. Vá lá, vamos a mais alguns detalhes, senão este relato fica mais seco que a cidade, mas não é nada diferente do que você conhece: aquele comércio pobre e desnutrido, aqueles cartazetes feitos à mão anunciando promoções mentirosas, mercadorias repetidas em todos estabelecimentos, o multicolorido apelativo das lojinhas de cosméticos ou roupas, transeuntes pobremente vestidos, cães e... moradores de rua, e é aqui que o ponto central deste relato começa, como que para agradar àquelas boas professoras de redação de antigamente que sempre pediam uma introdução.

Introdução feita, vamos aos fatos. Há nesta feia cidade uma feia ruazinha, que alguma associação de comerciantes apadrinhada por algum vereador conseguiu transformar em calçadão, vocês sabem, aquele revestimento toscamente ladrilhado, uma rua sem calçadas onde não passam carros, numa ideia brilhante de quem pensou que isto atrairia mais fregueses ao pobre comércio. Balela. As pessoas passam por ali apenas porque é o caminho da estação de trem, ah, sim, ia me esquecendo da feia estação de trem, tão comum em cidadezinhas de periferia, e esta não perco tempo em descrever porque só o pensar nela me deprime. Estamos então na tal ruazinha. Os comerciantes, ainda no desespero de atrair clientes, tiveram mais uma ideia brilhante, inventaram de revesti-la de uma cobertura de fibra de plástico transparente, e colocar aqui e acolá umas floreiras de tijolinho à vista com palmeirinhas transplantadas, o que daria, isto nas cabeças deles, creio eu, um charme europeu.

O  charme europeu resultou em que a poeira cinza escuro se acumulou como terra preta sobre a cobertura de plástico transparente deixando-a cinza escura, e as floreiras, cujas pobres arvorezinhas, que até foram molhadas pelos comerciantes mas que por falta de drenagem apodreceram e morreram, passaram a servir para acúmulo de tocos de cigarro e lixo. Coisa triste, coisa feia.

Mas os moradores de rua não pensavam assim. A rua era coberta como uma galeria, portanto conveniente ao pernoite. As soleiras dos estabelecimentos formavam degraus também convenientes a que eles depositassem ali suas trouxas, garrafas de água, comida, sua tralha noturna. Muitos se recostavam nas floreiras para um cigarrinho, um papo, uma bebidinha, uma relaxada antes de finalmente se ajeitarem para dormir.

Eu passava pela ruela de manhã e de noite, indo e voltando do trabalho. Morador de rua, como se sabe, assim que os estabelecimentos são abertos, precisam desaparecer. Se ficam por ali, os comerciantes jogam água sobre eles, simplesmente. Eu passava por ali de manhã a tempo de vê-los se recolhendo para partir, e à noite, a tempo de vê-los se encolhendo para pernoitar, até cheguei a fixar a fisionomia de alguns.

Esqueci de dizer que na ruazinha também morava um cachorrinho, beneficiado por uma lei estadual chamada cão comunitário. O bichinho recebe castração, é vermifugado, ganha uma casinha, uma coleira com identificação, um comedouro, e a população cuida dele, é uma solução bacaninha, gosto dela, deveria ser melhor divulgada. Pois bem, lá morava também o tal cachorrinho.

Mas voltemos. Foi então que um dia os comerciantes colocaram a rua em obras, e a obra consistia em retirar toda a parafernália de enfeite. Placas de plástico tremendamente sujas desciam ao chão, as floreiras desapareciam, e cada dono de loja tratou de solapar sua soleira. Entendi que era uma obra destinada a desambientar o morador de rua, que sem a cobertura, sem as soleiras e sem as floreiras onde se recostar, coitado, não poderia mais ficar ali.

A obra acabou, e a rua não ficou melhor nem pior, a única diferença é que ficou sem os moradores de rua. Então eu fui, muito ingenuamente, penso agora, ao posto policial da rua, perguntar o que era feito dos pobres miseráveis que por ali dormiam. O jovem policial que me atendeu quis começar um sorriso de gozação, mas quando notou que eu falava sério disse algo como sei lá, senhora, a prefeitura deve ter seus programas sociais. Deve ter.

Soube então por amigos que esta cidade exporta moradores de rua. Coloca-os numa van e descarrega-os em outra cidade, e o problema, como são intitulados os pobres, que fique para o outro prefeito. Que por sua vez deve fazer o mesmo, assim eles são despachados cada vez mais para os cantões das cidades, indefinidamente, como pacotes incômodos, e como bem atestou o sorriso irônico do policial, quem se importa?

E este relato acaba aqui. Ah, sim, ia me esquecendo novamente: o cachorrinho continua lá em sua casinha, gordinho, feliz e amparado pela população. Gosto imensamente de animais, sobretudo cachorros, e aprecio o cuidado do povo para com o bichinho. Mas quando uma cidade tem políticas para animais de rua  e não tem políticas para gente de rua, isto dá em que pensar.

onde mora essa tal de vida



Tenho sessenta anos, ou melhor, cinquenta e nove, e antes do final do ano já terei completado setenta. Moro numa casa velha que herdei de meus pais, a mesma em que nasci. Mãe já se foi faz tempo, mas a cozinha ainda cheira a mesma gordura velha das panelas que ela nunca lavava direito, porque enxergava mal, e porque eu era uma vagabunda que nunca a ajudava em nada. A casa foi envelhecendo junto com eles, pai consertava aqui e ali, um dia ele deixou de consertar e se foi. Mãe foi logo na sequência, uma semana depois, fiz dois enterros em um mês, foi puxado, mas isso facilitou o inventário.

Continuo a mesma vagabunda que fui na juventude. O cheiro de gordura velha da cozinha vai ficar lá no que depender de mim. Há dias em que me levanto e digo hoje vai, vou desengordurar e desempoeirar a casa, mas aí ligo a televisão, faço as unhas pela metade, leio meia página de um livro, tomo café, rivotril, e volto pra cama. Acordo lá pelas seis da tarde sem saber se é tarde ou manhã.

Tenho um filho que quase nunca vejo, sinto vergonha por ele, gostaria de trazer a casa limpa, gostaria de não ter tanta preguiça, faço perguntas falsas, você quer algo para o jantar? Ele não se dá nem ao trabalho de responder, sabe que não junto forças pra me encostar num fogão. Ele mora comigo somente porque está pagando um apartamento na planta, faz minha casa de pensão, e pensão barata. Lavo suas roupas. A máquina lava. Bendito seja o cara que inventou o amaciante. Deixa as roupas com cheiro de roupas lavadas por mãe.

Um dia ele trouxe uma moça aqui pra casa, uma moça italiana. Eu entendia o que ela falava, mas não conseguia responder de jeito algum. Comprei um dicionário, mas a coisa não andava, me pegava falando com ela em espanhol. Ela usava maquiagem em casa, e meias finas. Eu lavava as roupas dela também, e o bom era que ela sabia cozinhar. Não ficou, uma pena. Voltou pra Itália, levando creio eu uma péssima impressão do modo de vida brasiliano.

Não faço nada pra viver porque herdei todas as casas de todos os parentes que se foram, sou a velha mais nova de uma família de mais velhos ainda. As casas são pobres, e estão alugadas a preços mínimos, porque eu não entendo nem quero entender de contratos de aluguel e reajustes. Um dia um inquilino disse que precisava falar algo muito importante comigo, pensei, meu Deus, parece sério, ele disse, olha, o aluguel da casa está muito barato, a senhora não gostaria de dar um aumento pra mim?

Os outros não foram assim tão éticos, o caso é que as casas estão de graça, mas somando tudo eu consigo colocar comida na mesa, e levando em conta que como bem pouco pra não engordar, e que meu filho come fora, a necessidade de dinheiro é bem pouca.

Como pouco porque não quero engordar e manter um corpinho de quarenta, único vício que me ficou, tentei o cigarro, mas não pude suportar o mau cheiro que ele deixava nas mãos e nas roupas. A bebida não cai bem com os remédios que tomo para dormir e acordar, outros vícios sairiam caro, resolvi ficar só com a anorexia mesmo.

Sinto que este relato está chegando ao ponto insuportável do baixo astral, então é hora de parar, e nem sei por que comecei a contar esta sequência besta, acho que sei, é porque ninguém vai ler, e sai mais barato que uma consulta, doutor, eu sinto que, sei lá, eu não sinto nada.

Meu filho bem que tentou me fazer mudar para um apê fofinho, tentou me arrumar um emprego bacaninha, me trouxe ingressos para pré-estreias e salas de concertos, eu chegava a mentir que ia até o momento em que ele descobriu, e desistiu. Mãe, você desistiu de ser feliz, foi a última coisa que ele me disse num de nossos últimos papos mãe e filho. Agora a conversa se resume em chego tal hora, ou não chego, vai com Deus filho, até amanhã. Creio em Deus.

Ele também me disse que não ouviria nunca mais nenhuma de minhas reclamações, então estou aqui reclamando pra uma máquina que a população canina da rua triplicou, que não aguento mais essa latição de cachorros, que a molecada lava o carro ouvindo funk no maior volume, que tiraram o seriado que eu gostava da programação, que a internet está há quinze dias sem conserto e sem solução da companhia, que. Se eu disser isso pra ele a resposta será problema seu! Vai pra vida que isso passa.

Dá pra imaginar que vivemos num mundo onde um filho dá esse tipo de conselho pra uma mãe: vai pra vida que isso passa? De repente eu acho que até iria se tivesse ânimo, ou se soubesse onde mora essa tal de vida.