isto dá em que pensar

Cidades da periferia de São Paulo são todas iguais, portanto não vou perder meu tempo descrevendo esta, mas não resisto a usar uma única palavra: seca. Vá lá, vamos a mais alguns detalhes, senão este relato fica mais seco que a cidade, mas não é nada diferente do que você conhece: aquele comércio pobre e desnutrido, aqueles cartazetes feitos à mão anunciando promoções mentirosas, mercadorias repetidas em todos estabelecimentos, o multicolorido apelativo das lojinhas de cosméticos ou roupas, transeuntes pobremente vestidos, cães e... moradores de rua, e é aqui que o ponto central deste relato começa, como que para agradar àquelas boas professoras de redação de antigamente que sempre pediam uma introdução.

Introdução feita, vamos aos fatos. Há nesta feia cidade uma feia ruazinha, que alguma associação de comerciantes apadrinhada por algum vereador conseguiu transformar em calçadão, vocês sabem, aquele revestimento toscamente ladrilhado, uma rua sem calçadas onde não passam carros, numa ideia brilhante de quem pensou que isto atrairia mais fregueses ao pobre comércio. Balela. As pessoas passam por ali apenas porque é o caminho da estação de trem, ah, sim, ia me esquecendo da feia estação de trem, tão comum em cidadezinhas de periferia, e esta não perco tempo em descrever porque só o pensar nela me deprime. Estamos então na tal ruazinha. Os comerciantes, ainda no desespero de atrair clientes, tiveram mais uma ideia brilhante, inventaram de revesti-la de uma cobertura de fibra de plástico transparente, e colocar aqui e acolá umas floreiras de tijolinho à vista com palmeirinhas transplantadas, o que daria, isto nas cabeças deles, creio eu, um charme europeu.

O  charme europeu resultou em que a poeira cinza escuro se acumulou como terra preta sobre a cobertura de plástico transparente deixando-a cinza escura, e as floreiras, cujas pobres arvorezinhas, que até foram molhadas pelos comerciantes mas que por falta de drenagem apodreceram e morreram, passaram a servir para acúmulo de tocos de cigarro e lixo. Coisa triste, coisa feia.

Mas os moradores de rua não pensavam assim. A rua era coberta como uma galeria, portanto conveniente ao pernoite. As soleiras dos estabelecimentos formavam degraus também convenientes a que eles depositassem ali suas trouxas, garrafas de água, comida, sua tralha noturna. Muitos se recostavam nas floreiras para um cigarrinho, um papo, uma bebidinha, uma relaxada antes de finalmente se ajeitarem para dormir.

Eu passava pela ruela de manhã e de noite, indo e voltando do trabalho. Morador de rua, como se sabe, assim que os estabelecimentos são abertos, precisam desaparecer. Se ficam por ali, os comerciantes jogam água sobre eles, simplesmente. Eu passava por ali de manhã a tempo de vê-los se recolhendo para partir, e à noite, a tempo de vê-los se encolhendo para pernoitar, até cheguei a fixar a fisionomia de alguns.

Esqueci de dizer que na ruazinha também morava um cachorrinho, beneficiado por uma lei estadual chamada cão comunitário. O bichinho recebe castração, é vermifugado, ganha uma casinha, uma coleira com identificação, um comedouro, e a população cuida dele, é uma solução bacaninha, gosto dela, deveria ser melhor divulgada. Pois bem, lá morava também o tal cachorrinho.

Mas voltemos. Foi então que um dia os comerciantes colocaram a rua em obras, e a obra consistia em retirar toda a parafernália de enfeite. Placas de plástico tremendamente sujas desciam ao chão, as floreiras desapareciam, e cada dono de loja tratou de solapar sua soleira. Entendi que era uma obra destinada a desambientar o morador de rua, que sem a cobertura, sem as soleiras e sem as floreiras onde se recostar, coitado, não poderia mais ficar ali.

A obra acabou, e a rua não ficou melhor nem pior, a única diferença é que ficou sem os moradores de rua. Então eu fui, muito ingenuamente, penso agora, ao posto policial da rua, perguntar o que era feito dos pobres miseráveis que por ali dormiam. O jovem policial que me atendeu quis começar um sorriso de gozação, mas quando notou que eu falava sério disse algo como sei lá, senhora, a prefeitura deve ter seus programas sociais. Deve ter.

Soube então por amigos que esta cidade exporta moradores de rua. Coloca-os numa van e descarrega-os em outra cidade, e o problema, como são intitulados os pobres, que fique para o outro prefeito. Que por sua vez deve fazer o mesmo, assim eles são despachados cada vez mais para os cantões das cidades, indefinidamente, como pacotes incômodos, e como bem atestou o sorriso irônico do policial, quem se importa?

E este relato acaba aqui. Ah, sim, ia me esquecendo novamente: o cachorrinho continua lá em sua casinha, gordinho, feliz e amparado pela população. Gosto imensamente de animais, sobretudo cachorros, e aprecio o cuidado do povo para com o bichinho. Mas quando uma cidade tem políticas para animais de rua  e não tem políticas para gente de rua, isto dá em que pensar.