notícia alguma, jamais


Estou muito velho para lembrar com exatidão como se desenrolaram os fatos, mas vou tentar. Perdoem-me por escrever em português, e ainda usar os acentos, melhor dizendo, perdoem-me por escrever! Acho indecente gravar meus argumentos em ridículos chips e sair distribuindo-os por aí e ouvir um distraído ah, sim, ouvirei mais tarde. Depois da obrigatoriedade da Língua Americana como oficial, depois que os e-mails foram banidos para facilitar o aprendizado do idioma, e as pessoas foram proibidas de manter blogues, redes sociais ou saites que não fossem escritos em bom americano, tudo ficou muito mais difícil para mim. Vamos aos fatos, este velho processador de texto não aguentará o calor por muito tempo, mas não esperem nada surpreendente. É que vieram me perguntar o que ocorreu com ela, e dada a minha idade avançada, sou o único a saber.

 

Ela era a mais novinha do seu grupo familiar. Seu irmão era seis anos mais velho que ela, e as primas oscilavam nessa faixa, para pouco menos ou pouco mais. Sua prima mais próxima em idade era quatro anos mais velha que ela. Ela era o pudim do grupo, daí o excesso de mimos. Era só cair, ou se machucar, uma raladinha leve, fazer beicinho, que as priminhas acudiam. Uma delas, quando de algum tombo, dava de brigar com o chão, mas que chão feio! bate nesse chão, bate, bate, e batia no chão, o que fazia a menininha desabrochar de rir e esquecer-se do tombo. Quando em sua casa a menininha se machucava, em raladinhas leves, a mamãe botava o bandaide, que as classes mais pobres ainda usavam, mas que já estava caindo em desuso, com a chegada do restaurador imediato de epiderme, que era caro. Ela, porém, adorava o bandaide, e imediatamente reclamava por uma visita às priminhas. A mãe a levava, ela ia com o dedo empinadinho, talvez de medo que o bandaide caísse. Chegava, ó, dodói; dodói môzinho? E a pegavam no colo, e assopravam o dedinho e faziam carinho na cabecinha dela feito como a gente fazia num gatinho, quando eles existiam. Tanto que mamãe resolveu dar um basta naquilo, pois começou de a menina querer bandaide sem machucado nenhum.

 

As crianças cresceram um tantinho. A priminha quatro anos mais velha passou todos os ensinamentos que uma quase mocinha precisava saber naqueles tempos: fazer flores e bichinhos artificiais, confeccionar franjas e perucas, ajeitar os cristaizinhos de enfeite nos cabelos. Mais tarde, já mocinha, foi a priminha quem a ensinou como tomar o comprimido estancador de sangue, como usar a maquininha de fazer unhas, a de ajeitar as sobrancelhas, o lêiser depilador de pernas e no seu ouvido falou coisas sobre meninos, que nunca mudaram em tempo algum. Também olhava seus cadernos eletrônicos, corrigia, e às vezes até fazia alguns exercícios, para ela não se cansar tanto, o que era repreendido carinhosamente por mamãe: - ela precisa fazer sozinha seus deveres. Mas escondida da titia, ela fazia assim mesmo.

 

Isso significa que a menina cresceu cheia de manhas, cercada pelo irmão, priminhas e priminhos que faziam todas as suas vontades.

 

Mas a mamãe das priminhas morreu de câncer, que desde sempre nunca foi combatido. E as priminhas que já eram órfãs de pai, foram sensatas em procurar maridos, e encontraram maridos muito bons. E se casaram, e tiveram filhos, e viraram gente grande aos dezesseis, dezessete anos. O irmão, não aguentando os maus tratos recebidos do pai, que era consumidor exagerado da bebida chamada Espantador de Problemas, distribuída largamente pelos americanos, fugiu de casa. Ela, não sabendo para onde ir, ou tendo medo da rua que era de fato muito perigosa, ficou.

 

Ficou e continuou os estudos, a tempo de descobrir que lá fora, no mundo, não existiam priminhas. A amiguinha de hoje era aquela que estaria falando mal dela amanhã. Ou que se fazia de amiga apenas para pedir algo emprestado, ou um intranet não permitido na prova, pois ela era mais adiantada que as demais. Os amiguinhos deixavam bem claro o que queriam das amiguinhas, pois nesse quesito como eu já disse, nada jamais mudou.

 

Ninguém mais queria saber de jogar vídeo game ou qualquer outra diversão eletrônica para crianças. – Gente, chega de brigar, vamos brincar, ela se pegava dizendo às vezes na hora do recreio. Qual o quê! Era um tal de e aí eu peguei e disse, aí ela pegou e disse,  e imagine você o que ela disse? Ela disse que ele disse que ela disse, aí eu peguei e falei assim que eu não disse, e de repente alguém se virava pra ela: - bem que você não é nossa amiga, pois ontem estava junto com a coisinha que pegou e disse. E ela, assustada, gaguejava tentando explicar que só estivera com a coisinha porque a coisinha lhe pagara um quadrado de avitaminado doce gelado. E ela nem sabia que o quadrado era só pra saber de coisas das outras menininhas. Bobinha, entrava de tonta em situações das quais não sabia sair.

 

Afastou-se de todo mundo, afundou-se na internet: essa menina precisa de óculos disse o Direcionador Mental na reunião dos Companheiros e Facilitadores. Naquele tempo já havia o implante de lentes gratuito para toda a população, um dos primeiros itens introduzidos pelos americanos, para que todos tivessem olhos verdes ou azuis, mas havia uma longa fila de espera, ela teve de usar óculos por algum tempo. Sendo a única a usar óculos, sentiu-se feia, virou a esquisita da turma, aquela que ninguém tira para dançar nas pistas eletrônicas.

 

Noto que estou falando demais e não estou chegando ao assunto, mas essa contação toda era para explicar o que aconteceu na internet. A internet tinha a facilidade de reunir, num mesmo grupo, pessoas com interesses afins, sendo elas de aqui ou de qualquer lugar do mundo. Salas de bate-papo, blogues, redes sociais, mas disso todo mundo se lembra. Foram elas que disseminaram, sob ordens, o Poderoso Vírus, do qual poucos escaparam, e os que escaparam acabaram justamente nesta casa de Conformação Social em que me encontro.  É aí que nossa história começa, na internet.

 

Ela o conheceu.

 

Tímida a princípio, ela escolhia as palavras para mandar e-mails, lembram-se dos e-mails? com perguntas educadas, questionamentos gentis, e aqui e acolá, longe longe, alguma demonstração de fino senso de humor. Para que ele a notasse.

 
Ele respondia no mesmo padrão. Tão gentil, sensível e educado, que ela dava de pensar que ele também tivera irmãzinhas carinhosas, primos e primas meigos como ela tivera. Diferente dos rapazes que conhecia, ele conversava de assuntos variados, e não somente sobre técnicas avançadas para vencer nos Enredos Eletrônicos Ajustadores de Hormônios, e que, por assumirem tantos personagens ao mesmo tempo, nunca se sabia ao certo como eram. Afora que todos já dominavam o inglês, e ela, por sofrer de uma leve gagueira e algum desvio de atenção, não conseguia dominar de forma alguma. Não havia com quem pudesse conversar.

 

Apenas com ele.

 

Mas vamos ao conflito desta história, eu mesmo já me sinto cansado e – fenômeno – desejando um chip. Ele morava numa região onde viviam os chamados germanorgulhosos. Somente com vistos especiais é que se ia para lá, vistos que ela, simples moça do Entorno dos Centros de Decisões, não conseguiria jamais. Os germanorgulhosos eram mal vistos pelos americanos. Eram brasileiros, como todos nós, mas recusaram-se terminantemente a aprender inglês, a deixar o seu próprio sotaque, a consumirem os sofisticados produtos facilitadores, alimentícios e eletro eletrônicos, o que fez deles uma região extremamente pobre, vivendo exclusivamente de sua economia, a saber: malte de cevada e lúpulo. Que não era aceita em outros mercados quer fossem internos e muito menos externos, deixando sua economia em um estado de pobreza de fazer dó, pobreza econômica e física, pois esses dois produtos, das mais variadas formas, eram a base de toda a sua alimentação. O resto era conseguido a muito custo no mercado negro, que nunca deixará de existir.

 

Não, claro que não, não havia guerra. O domínio americano foi pacífico, lembro-me como se fosse hoje do dia em que eles vieram, com suas roupas metálicas, longas capas arrastando a sujeira do chão, deixando as mocinhas brasileiras em estado de febril comoção, muitas desmaiaram. O Presidente, num discurso emocionado, entregou ao Maioral deles a Faixa Presidencial e a chave do Brasil entalhada em ametista enfeitada em feixes de trigo e olhos de guaraná; foi dia de festa, feriado nacional. Sendo assim, uma nação pacífica como a americana jamais poderia forçar nenhum dos Acomodados da Pacificada União Brasileira a aceitá-los, mesmo porque, a Vigília Permanente dos Povos, que funcionava na República dos Camarões, estava alerta.

 

O que fizeram foi dar aos germanorgulhosos um disfarçado boicote, não tão disfarçado assim, mas como as Janelas Para o Mundo não noticiavam, e a Internet ia pouco a pouco se tornando americana, o povo não ficava sabendo.

 

Onde tudo isso se cruza com a história dos dois? Ora, que a comunicação entre eles tornou-se impossível. Não havia vistos de viagem, no Acomodado Germano a Internet deixou de funcionar, ou só funcionava a altas horas da madrugada, os telefones estavam sendo substituídos por chips de comunicação telepática – em inglês, idioma que ele conhecia, ela não.  Ou seja, não havia possibilidade de comunicação.

 

De tempos em tempos, em um código nunca assumido entre os dois, mas que ambos entenderam, ele ou ela mandavam a alguma pessoa uma mensagem num chip comunicador, sabendo que por formas cruzadas, complicadas, mas que eles conheciam, chegariam ao encontro do outro, e dentro dessas falas, aparentemente destinadas a outrem, havia mensagens que bastaria decodificar. Simples assim. Vocês podem achar difícil, mas para os dois era tão fácil como beber água. Não foi boa a comparação, pois beber água era mais fácil no Acomodado dele, onde as águas não receberam os detritos fisiológicos dos que foram contaminados pelo Poderoso Vírus, claro.

 

Mas ele se cansou da brincadeira primeiro do que ela. Ou encontrou a sua amada para todo sempre enquanto plantava ou colhia cevada, isso não se sabe. O que sabemos, a única coisa que sabemos, foi que um amigo que ocupava o posto de Grande Homem Brasileiro no novo governo, penalizado por saber de sua solidão, deu a ela uma senha para entrar num ponto cego da recém-implantada Americanet, onde ela poderia, sossegadamente, escrever sua solidão em português, passando assim o seu tempo, o que fazia a ela um enorme bem, mesmo sabendo-se não lida por ninguém, mas sempre acalentando a ilusão de que ele a encontrasse. Algum Vigilante de algum escalão a descobriu, mas achando um caso de pouca importância apenas jogou naquele ponto cego um vírus que afugentava qualquer iniciativa de leitura por parte de qualquer máquina, mas isso ela nunca ficou sabendo.

 

Como sei que ela morreu de câncer? Porque fui um dos primos, e ela confiou-me a  senha. Meu neto, abusado, mexendo em minhas coisas, a descobriu, e no dia em que se comemorava o Dia do Orgulho Americano em Terras Brasileiras, divulgou todas as suas histórias – traduzidas para o Americano, na Americanet. Era um nunca acabar de histórias, uma mais linda que a outra: de amor, de humor, de espionagem, de terror, de ficção científica, infantis, tragédias, sagas familiares, eróticas, onde ele e ela eram, de uma forma ou de outra, os personagens.

 

Naqueles tempos os americanos, já mais acostumados com os costumes brasileiros, dançando maravilhosamente o xote, o samba e o forró, encantados com nossas comidas e costumes, com a beleza de nossas florestas e mulatas, foram abrasileirando sua fala, e pouco a pouco o português foi voltando, mas de modo informal.  O Alto Governo jamais assumiu, e pune até hoje quem fala ameriportu, mas o faz de forma velada, disfarçada, então a Vigília Permanente dos Povos, agora no Panamá, nunca fica sabendo das punições. As duas principais são privar o transgressor da Americanet e do Espantador de Problemas. Mas o que quero dizer é que os americanos olharam para o lado, e também interessados, permitiram que os escritos dela circulassem, em americano e português, permitiram até livros! E ela passou a ser a personagem do momento, todos citando suas histórias, as Janelas para o Mundo criando sofisticados Macro Digitalizados em N Dimensões com muitas delas, os jovens estudando seus escritos nas escolas, os Direcionadores de Mente escrevendo teses sobre ela, e até os Jogos de Enredos Ajustadores de Hormônios utilizaram muitas de suas personagens.

 

Ela, sem saber de nada disso, pois não tinha contato algum com o mundo, morreu de tristeza e câncer, nessa mesma proporção, duas doenças para qual os americanos nunca trouxeram cura.

 

Dele não se teve notícia alguma, jamais.

quem não conseguiu se acalmar por si mesmo nessa triste vida


Era o dia do encontro e não havia batom. Mas havia beterrabas, morangos e mel. Dessa feliz combinação seguramente sairia algo que embelezasse e perfumasse meus lábios, o que com um pincelzinho fino eu consegui. Ideia! E se eu embelezasse e perfumasse também a minha flor? Sim, eu sei, ninguém mais chama de flor, mas isto é um diário, melhor me precaver de alguma tia velha, minha flor, isso, assim está bom, e foi o que fiz, mas sem ajuda de nenhum pincelzinho, é claro. Com as mãos. Que ficaram impregnadas e perfumadas dessa feliz mistura. Sem problemas, para isso existem meus grossos fios de cabelo. Os romanos não limpavam as mãos sujas de comida nos cabelos dos escravos? Eca. Mas ao contrário das mãos dos imperadores, minha mão estava deliciosamente impregnada de mim, o que fez um enorme bem também aos meus cabelos. Fui.

 

O local do encontro era longe, mas fui ao encontro dele caminhando, em parte porque era cedo, e em parte porque queria ter mais coisas para contar. Penso melhor quando caminho. E dei justamente de pensar que aquele cosmético improvisado, ele sim, era minha vestimenta. O jeans, a camiseta, o sapatinho de plástico e a jaqueta descolada da qual eu tanto me orgulhava eram perecíveis, iriam um dia dar no mundo das coisas perdidas, mas aquele perfume era eterno. Vinha da terra, das abelhas e de mim, eram de Deus, portanto. Não sabia se daria conta de dizer isso a ele, creio que não, teria vergonha, ele ia me achar mais pueril do que já me achava. Pensando bem, nem sei se daria a conta da ideia do improviso do batom.

 

Você cheira bem ele disse, ao me dar o selinho de sempre, o selinho inicial, eu sabia, era o nosso jeito. E eu dei aquela reviradinha de olhar que ele não entendeu, mas eu sim, e que significava aguarde pelo melhor.

 

O melhor não houve, pois o que eu não sabia, ele sim, era que aquele era um dia de despedida. Ele também viera caminhando, mas ensaiando o discurso de adeus, isso ele não disse. Mas era um discurso muito alinhavado para não ter sido ensaiado umas quatro vezes, no mínimo. Ele citou até personagem de filme, me remeteu a livros clássicos!...

 

E assim o adeus aconteceu, e eu não vou deitar aqui os detalhes porque não quero borrar de lágrimas o meu querido diário. Os detalhes são os de sempre, e sempre terminam com um a gente se vê por aí.

 

Agora estou aqui com o potinho onde coloquei o que restou da mistura que embelezou meus lábios e minha flor, inúteis já, e eu falo da mistura, dos lábios e da flor. Mas como minha única ocupação é pensar, resolvi que vou pensar escrevendo até acabar este caderno, e quando acabar este, vou comprar outro, e outro, e mais outro, a ponto de a minha família, preocupada, chamar os homens de branco pra me levar. Não tenho outro destino, minha vida não tem outra função.

 

Frutos da terra e mel de abelhas, somados ao perfume da minha flor nos meus cabelos não deram conta de segurar o homem que eu amo. Reavaliando a frase, quem não deu conta fui eu, o cosmético foi recurso de última hora, romântico mais foi. Numa outra pegada ele teria entendido mas... já era tarde...

 

Sendo assim querido diário, vou impregnar de  recursos perdidos meus cadernos da tilibra, mas na forma de poesia, lamento e dor. Até que alguém venha me buscar. Nem que sejam os homens de branco, com aquela vestimenta branca de acalmar quem não conseguiu se acalmar por si mesmo nesta triste vida.

que ninguém quis


 Nossa conversa mal(iciosamente) recor(t)dada

 Que era meta(nóia)de para(nóias)fusos deslocados

 Mal(sinada)sucedida de des(velos)fechos plan(ej)(t)ados

 Solitária per(dida)eira acenando (a) deus

 Solitária pereira perdida acenando adeus.

 

 Sem(pre) (você) fal(ta)ará uma per(dida)eira nessa s(i)(e)lva

 Sem(pre) (você) haverá per(dida)eiras re(jei)(a)tadas

 Tom(b)adas (lamen)(ofer)tando fr(l)utos que ninguém quis

 

 Frutos e lutos que ninguém quis.