ô!


Ela está em seu quarto fazendo crochê e é domingo, e o crochê é qualquer coisa para desocupar as mãos, porque a cabeça, essa continua ocupada. Mas os filhos pensam que ela está bem, porque ela está quietinha, e a deixam em paz e é melhor assim.


Por que o domingo é péssimo? – ela se perguntava sempre. Até que descobriu. Primeiro: a programação da televisão. Nos dias da semana sempre tem um vale a pena ver de novo que come um bom pedaço da tarde. Depois vem uma sessão da tarde que às vezes até dá para assistir, pensando bem, desde que não seja um K9 da vida – ô filme chato – ela até que assiste todos, e lá vai um outro bom pedaço da tarde. Aí é cuidar da janta, deixar tudo sobre o fogão, a turma vai esquentando quando chega, e alimentados os cachorros e o gato, ela fica à vontade para se afundar de novo na televisão, de onde vai perguntando para os que chegam: – tudo bem?  – quer que eu faça outra coisa? – quer que eu esquente? Todos respondem que não, todos a deixam em paz. Ou querem ficar em paz longe dela, mais provável isso.


Mas no domingo não. No domingo ficam todos pela casa, e a casa que é só dela, dos cachorros e do gato, vira casa de todos, e a casa não é tão grande assim.


É verdade que ela ama a todos, não saberia nem viver sem eles, mas é verdade também que ela sente uma sensação maravilhosa de alívio nas segundas, nas terças, na semana enfim, quando todos partem. Nem se incomoda de catar do chão calças e calcinhas, adora lavar roupas, mexer com água, o cheirinho do amaciante, lavar quintal, molhar plantas, limpar a casa, escolher a limpeza central do dia, tudo cronometrado para não perder o vale a pena ver de novo, que ela realmente está vendo de novo, embora não esteja valendo tanto a pena assim.


Então aí vem o segundo item do porque o domingo é péssimo. Porque ficam todos em casa, e a casa não é tão grande assim, e a vida não é tão resolvida assim, e todos se esbarram em todos meio sem assunto ou mal humorados talvez pelo mesmo motivo que o dela, mas de outra forma. Ela não sabe o que fazer longe da televisão, eles não sabem o que fazer longe dos escritórios.   E nem a chegada da noite acalenta, porque ninguém aguenta a televisão de domingo.


Daí o crochê, que cresce que é uma maravilha, e ninguém nem repara que ela faz e refaz coisas diferentes usando o mesmo fio.


Nos entrelaços ela fica falando com Nossa Senhora: – Sabe, Mãezinha, desculpa aí, mas até eu sabia dar um jeito na minha vida se estivesse no teu lugar, e nem era coisa de dinheiro, nada disso. Bastava um... bastava passar alguém e convidar para um passeio, mas nada de shopping onde há coisas que ela não vai comprar. E também nada de mulher, porque ela não tem paciência pra conversa de mulher.


– Minha santinha, um carinha... Que cara? Sei lá, minha mãezinha, isso a senhora vê aí com teu filho, ué...


Mas um cara tipo especial. Não aquele besta.


Seis meses atrás. Ela tinha ido visitar um amigo antigo, havia um algo entre eles. Ela tinha até levado uma muda de roupa na bolsa, de repente poderia pernoitar, o pessoal de casa nem faria perguntas, até gostariam de se livrar de sua incômoda presença. A verdade é que eles se preocupavam com a mãe, mas não sabiam como lidar com ela, e um ficava acusando o outro de não levar a mãe pra nenhum passeio, arrancá-la daquela maldita televisão, então... se ela arrumasse um carinha, seria bom...E ela tinha certeza de que era assim mesmo que todos pensavam.


Chegou lá, conversa vai, conversa vem, coisa e tal, a iniciativa foi dela. Estavam os dois de pé, bem próximos, na sala de estar, e ela segurou o rosto dele com as mãos e tascou um selinho, levinho, levinho mesmo. Mas não é que o idiota começou a fungar e se esfregar nela, e já a empurrando para o sofá? Ela achou aquilo grosseiro demais, e disse a ele, afinal, tinham amizade: – Cara, beijo não é isso, porra! E se esquivou, e abreviou a visita, só vim mesmo dar um salve, e até.


Se ele tivesse tido mais tato, mais paciência, dado outro selinho, e um carinho daqui e outro dali, claro, ela que não era nenhuma freira e nenhuma virgem, iria para a cama sim. Se ele pelo menos tivesse lido o Cântico, ou até mesmo o Dom Casmurro do Machado: – “A sua mão esquerda estaria debaixo de minha cabeça, e a direita me abraçaria...”.


Merda pra ele. Não me comeu. Na certa se masturbou quando eu saí, o idiota, idiota duas vezes: se masturbando nessa idade, e não sabendo, ainda, lidar com uma mulher. Perdeu.


Daí a conversa com Nossa Senhora. Um carinha, Mãe do Céu...


Ele chegaria num domingo e a convidaria para um passeio de carro. Praia, isso, praia! No caminho ele não colocaria a mão na perna dela. Mas perguntaria bobagens do tipo se ela já tinha sido mordida por algum cachorro, é que passava um carro levando um cachorrão, se ela gostava mais de sorvete de morango que de creme, é que passava um cartaz na rodovia, e boa idéia, vamos campear um sorvete? E pararia numa birosca qualquer da estrada, sorvete necas, mas voltava com refrigereco, como é que você adivinhou, eu simplesmente amo refrigereco. E ele explicaria sabe, os grandes fabricantes de refrigerante patenteiam diversas marcas, para não perderem nenhuma opção, mas a lei os obriga a lançar nem que seja um único lote numa única cidade do país. Pura água com açúcar. Ela sabia isso, mas faria que não, homem gosta de sentir que está ensinando, e pediria outro, que delícia! Um refrigereco geladinho na beira da estrada, pensando bem, o sabor é justamente a beira da estrada, o caminho da praia, e conversando sobre isso ou outra bobagem qualquer eles chegavam.


Nada de mãos dadas, mão dada sua, e é chato. No caminho pela arrebentação ele catava do chão uma vara, e fazia que escrevia coisas que quando ela ia tentar ler ele apagava, ou a onda apagava.  Ela pegava a vara da mão dele e fazia estrelinhas e luinhas, na verdade era só isso mesmo que ela sabia desenhar, e vamos comer uns camarõezinhos fritos? Que ele trazia num repente na mesinha dizendo pena aqui não ter refrigereco, e trazia lá o refrigerante da marca, geladinho. Bommm!...


E a conversa seguia sempre nesse padrão de bobagens, ora estavam falando de comercial antigo de televisão, assunto que ela domina bem, ora das bundas das menininhas, dói demais arrancar pelos?, ele perguntava, sei lá, nunca arranquei diria ela, nunca?  Nem pra casar?  É mesmo, ela até teria se esquecido disso, casamento, lua de mel, maridinho novo, aí largou de arrancar, passou a usar o aparelho descartável dele, até que ele fez o favor de passar dessa para uma melhor, melhor para ela, claro, e ela passou a usar o dos meninos.


Sente saudades dele?, ele perguntaria, nunca nunquinha, jura? Nem do?... faria ele com um sorriso maroto, e ela perdoava, afinal, homem sempre acha um jeito  de introduzir sexo na conversa senão não seria homem. – Principalmente, ela responderia. – Sentir falta daqueles três minutos? Três, só três?  e ele riria gostosamente, e pararia  por aí, e passaria  a falar de sua recente viagem a Salvador, assim, do nada, isso é que é bom. E ela ouve, ouve, ouve, e interessada de fato, porque tem loucura pra conhecer Salvador, comidas, igrejas, terreiro, candomblé, aquela patuazada toda.


Pô...  me leva da próxima vez que você for... Sério, você iria? – E não?! E essa seria a deixa para o rosto com rosto, o carinho, o abraço e o que viesse. Pensando bem, não precisa ler o Cântico pra saber disso, precisa só... precisa só saber.


E voltariam. E na volta ele colocaria a mão não na perna dela, mas na mão dela que estaria sobre a perna dela e diria:   Meninaaa!!! Tava bom toda vida não tava não, vamos repetir a dose?


Ela saberia que no meio desse vamos repetir a dose sempre haveria uma incômoda depilação e uma cama cansada, e que se não fossem três minutos seriam seis e com tendência a cair pra quatro, mas mesmo assim concordava, e de boa.


– Ô!

não precisa, ela sabe


E aí, saiu o resultado, é benigno?

Essa preocupação martelou meu dia

Desde a hora em que tirei o carro

Benigno? Maligno?

Quem foi que inventou a porra

desses nomes?

Como é que uma coisa que tira o sono da gente

pode ser benigna? Tudo o que nos faz rolar na cama

é do demo. Inclusive. Só que sexo é bom

O demo ensinou coisa boa, foi vingança, decerto,

daquela história de paraíso, onde ele ficou por baixo

Mas e aí, o que é que deu?



É maligno, vai ter quimio, começa semana que vem

E vai ser foda, não se iluda não, doutor falou.

Quer combater? Vai penar

Que nem no dia em que chamamos os caras

pra exterminar os bichos, ficamos tempão sem dormir

A rinite comendo solto.



Vamos contar pros meninos? Sim, faz parte do processo,

a família precisa participar, e ah, eu vou vomitar pacas.

E vou perder cabelo, e emagrecer, sabe aquele olho encovado?

E sei não, é uma loteria

é tudo isso com uma chance grande de eu morrer.



Gozado ela, dar a notícia com tanta calma

Mulher é bicho forte, ou então entende mais

da nossa animalidade, bicho esquisito, não disse a roqueira esquisita?

Tenho vontade de dar nela um puta abraço, mas precisava mesmo

que ela me abraçasse: como vou me virar sem ela?



E me vem à mente o egoísmo dessa pergunta

Não estou com pena dela, ela vai embora dessa merda de vida.

Fico eu aqui, com crianças, hipoteca, desemprego

e falta de situação, e é claro que voltarei a fumar

Engordar

Comer mal, e no final

Também bater com as dez.



É. A gente se encontra, penso. Mas e os meninos?



Ah, que se foda, eles se encontram também

E quer saber: ficam melhor sem mim, sem nós

Dupla de desorientados

Mal vividos, mal resolvidos, mal acabados.



E é só aí que consigo chorar

E é só aí que o abraço vem

Mas não digo nada não. Não precisa, ela sabe.

vem


Era meia noite e ela tinha acabado de tomar seu Banho Complicado. Ela dividia os banhos em Banho de Higiene, Banho Especial e Banho Complicado. O de higiene era aquele matinal, rápido, o corpo ainda pedindo sono. O que os grã finos chamam de chuveirada. Chuveirada... que palavra mais boba. O Banho Especial era aquele para onde ela se dirigia com a sua cestinha contendo esponjas, lixas para o pé, escovinhas, pedra pomes. O banho esfregão. E o Banco Complicado era quando além de tudo isso, ela lavava os cabelos. Imensos, uma complicação. Tinha sido difícil conseguir com as outras o tempo necessário, mas como ela era discreta, educada, cordata, apaziguadora, no final todas acabaram gostando dela, e até defendiam seus horários, ó, já espantei a fulana daqui, hoje é dia do seu banho de cabelão. Era como elas chamavam o seu Banho Complicado. Em outros tempos o banho complicado também comportava cremes com grânulos especiais para esfoliação e limpeza de pele do rosto e pés, mas isso foi em outro tempo.



Eu trouxe glicerina, era a prima, a única amiga que ficou do seu lado. Você faz uma mistura de glicerina e açúcar, e funciona do mesmo jeito. E de jeito em jeito as coisas foram tomando jeito.



Mas ela estava então, de Banho Complicado tomado, seu avolumado cabelão úmido às costas, molhando a camiseta que ela trazia por cima da calcinha, e só. Ela tinha exatamente seis horas para desmontar sua casa, seis horas não: cinco horas e cinquenta e cinco minutos, porque queria estar sentada e pronta quando a viessem chamar.



Começou dobrando as toalhas de crochê. Noventa e três. Três toalhas diferentes todo dia. Uma, tipo um xale, ficava estendida atravessada sobre a cama. Outra, um caminho retangular com borlas arredondadas, sobre a única cadeira. E a redonda, sobre uns caixotes que comportavam seus pertences, por sobre o qual havia uma tábua, e sobre ela, seus poucos produtos de toalete, a saber: Água de Colônia, Creme Nívea, Óleo de Amêndoas Doces da Leclerc, sempre da Leclerc. Algodão, acetona e colírio, que com o tempo passou a ser chá de camomila. É tão bom ou melhor que colírio disse a prima, você não deixe de usar, faça compressas, tua vista poderá até melhorar.



Numa caixinha de sapatos, uma infinidade de esmaltes, mas eram esmaltes itinerantes. Havia muita troca de esmaltes por lá, e a prima sempre trazia mais, porque tinha um salão de beleza. Vou levar esse, posso? Era uma colega. Não precisa pedir, dizia ela, são nossos. Essa frase são nossos, é uma frase perigosa de ser usada entre pessoas com pouca ou nenhuma consciência, mas ela sabia e não ligava. Muito esmalte não voltava jamais, ou voltava trazendo só um restinho duro no fundo do vidro, e elas nem se desculpavam.



Sem problemas, ela pensava. Já perdi coisas muito mais importantes nesta vida do que esmaltes.



Completando sua parafernália cosmética, uma caixinha jogo de sombras, pó compacto, blush, delineador, lápis e rímel, que a prima também renovava de tempos em tempos. E num copinho pentes, escova de dentes, essas tralhas. Seus cabelos eram tão complicados que ela só os penteava de tempos em tempos, com a ajuda da Cássia.



No começo as moças achavam graça daquela colega que chegava todas as manhãs na oficina de costura completamente maquilada, as unhas perfeitas, as sobrancelhas acertadinhas, pra quê isso? Nem homem temos aqui, além da Cássia... Cássia se chamava Rosicleide, e era o homem da turma, tatuadíssima, invocadíssima, boca sujíssima mas com ela, super gente fina, ei, deixem a mina em paz, a cara é dela, ela pinta como quiser.



O que ela não dizia para as colegas é que ela tinha fome de cor. Daí as toalhas de crochê, multicoloridas, a prima trazia os fios. Os esmaltes, ela chegava ao cúmulo de usar cores diferentes nas dez unhas. A maquilagem fortíssima sobre os olhos. Cor. Meu Deus, cor. Muito mais do que chocolate, muito mais do que uma lazanha ou uma pizza ou até mesmo sexo – cor!



Esses poucos pertences de toalete, mais o sabonete, a pasta, o xampu, o creme rinse e os cremes que a prima fazia por ficarem mais baratos, constituíam a soma de todos os seus pertences, mas para ela eram objetos de muita distração. Tirar lentamente as sobrancelhas. Ajeitar caprichosamente as unhas, e sem usar ferramentas. Só com o pauzinho de laranjeira, a espátula, e sempre que estava à toa esfregava nas unhas um algodão embebido em óleo, e as cutículas da mãos e dos pés foram ficando finíssimas. Levando horas penteando o cabelão, passando óleo de amêndoas, que antes esfregava nas palmas das mãos...



De vez em quando descia para assistir televisão, mas isso mais para garantir sua sociabilidade, porque os olhos ficavam na tevê, mas a mente ficava em off. Invariavelmente pensava nele, como ele estará, o que estará fazendo? E só de saber que ele estava bem, já a tranqüilizava muito.



Uma dia a prima trouxe duas imensas caixas de plástico com tampas. São caixas box, estão a venda aos montes por aí, pensei em você. Então as caixas substituíram os caixotes, e a prima conseguiu uma madeira compensada, mais leve, para substituir aquela feia tábua, e trouxe um espelho maior, com suporte. E trouxe também um painel para colocar fotos com ímas. Trouxe os ímas. E as fotos. Da mãe. Do Pai. De todos. Pena que não tinha nenhuma foto dele, ele ela só trazia nas retinas, e como tinha medo de esquecer, todo dia, ao acordar, após o sinal da cruz e do padre nosso, olhava mentalmente para o rosto dele, e sorria, e só então saia da cama.



Tudo isso ela lembrava enquanto ia retirando as fotos do painel, ajuntando seus poucos pertences.



A prima, que também era muito pobre, como ela, por uma combinação das duas, começou a trazer, de longe em longe, pacotinhos com Coisas Especiais. Que ela nem abria, porque sabia o que continham. Os pacotinhos iam sendo guardados na Bolsa Especial, uma sacola de lona cor de rosa, mas que não ficava com ela e sim com a Cássia, que defendia essas coisas com a própria vida, ai de quem chegar perto das coisas da minha amiga! E todas sabiam que a Cássia falava a verdade.



De tempos em tempos a Bolsa Especial ia ganhando pacotinhos com as Coisas Especiais.



Então ela dobrou as toalhas e as deixou num canto, não precisaria mais delas, escolheu apenas duas, uma verde e uma azul. Com os livros fez o mesmo, ela tinha uma regra – livro lido, livro descartado, ora, se eu já me alimentei deles. E os passava para outras pessoas, mas por ali ninguém gostava muito de ler. Mesmo assim os deixou, uma pequena pilha. E os esmaltes, e a maquilagem, são cores, mas ao mesmo tempo são sombras, pensou, não, não irão comigo. E toda a tralha. Deixaria tudo para a Cássia. Pensando bem, tudo não, as toalhas de crochê distribuiria entre as meninas.



Uma leve batidinha na porta, era justamente a Cássia, que silenciosa, pousou a Bolsa Especial sobre a cama, e as duas trocaram um demorado abraço. E os rostos das duas foram se aproximando, se aproximando, e ela entendeu que Cássia, pela primeira vez, cobrava o preço da proteção que lhe dera esses meses todos. Começou com um beijo. Que ela devolveu, com ternura e emoção. Um beijo delicioso, por sinal, que nunca tinha recebido de homem algum. E após algum tempo, e sem dizer nada, Cássia se foi.



A prima, caprichosa como sempre fora, etiquetou os pacotinhos por ordem numérica, que ela foi abrindo na sequência.  Pacote número um: um creme cheiroso da Avon. Pacote número dois: um par de meias soquete da Betty Boop. E assim foi. Um conjuntinho de calcinhas e sutiã de oncinha, que lindinho, que mimoso, alcinhas pretas, babadinhos pretos, ela quase chorou.  Demorou um tempão para vestir, só olhando. Uma calça Sawary, olha como ficou justinha, que linda. Uma camiseta Zahra, preta, também coladinha. All Star xadrezinho lilás, ai meu Deus, que mimo. Um colar de várias voltas de correntes fininhas tipo imitação de cobre, que ela na certa teria comprado muito baratinho na Porto Geral. E um lenço que dizia ela todo mundo estava usando, de algodão, axadrezado, com franjas brancas. Azulado Metálico. Muito bonito, você enrola como quiser no pescoço, ou deixa solto como um xale, pode até usar como um babador por sobre o peito, de qualquer maneira vai ficar bonito. Estava escrito no papelzinho, colado com durex. E várias pulseirinhas de cristal, que ela entendeu que deveria usar uma ou duas, e distribuir as outras para as moças.



Levaria ou não a bíblia? A Bíblia na Linguagem de Hoje, oferecida por uma mulher muito simpática chamada Osana, filha, Deus nos leva ao deserto para nos tratar. Você está tratando muito bem da sua aparência, mas pense no seu interior. O primeiro passo é o perdão. Você precisa perdoar.



Perdoar.



Perdoar os que a deixaram ali, trancafiada como o bule de chá verde da vovó.



Todos se safaram. Para fora do país, para suas casas de campo, suas elegantes coberturas, para suas vidas respeitáveis, e foi só ela, a tonta, a bobona, a sozinhona, a sem noçãozona, a que ficou com a carta mico na mão sem nenhuma explicação e sem um tostão para contratar advogado. A que ganhou um par de algemas e esta cela, por dois longos anos, e isso graças a sua vida pregressa, pela graça de Deus possuía ficha limpa, limpíssima. Senão seriam quatro, disse a juíza. Até carteira assinada ela tinha. Tinha, era a palavra certa. Perdeu o emprego. A liberdade. A honra. A cidadania. Os amigos.  Perdeu a saúde. O sono. Perdeu, perdeu, perdeu.



Ficava horas, à noite, pensando em como todos estariam rindo dela. E esmurrava o travesseiro, e gritava, cara enfiada no travesseiro, ei! menos! Era a Cássia. Que trazia um chá, oferecia um cigarro. Ela nunca fumou, imagina, já não tenho dentes bonitos, só o que me faltava era complicar meus dentes também.



Quando recebeu a única carta dele, em resposta a que tinha escrito narrando sua rotina, ele dissera: todos esses cuidados que você está mantendo com seu corpo, sua saúde, sua aparência, para mim significam só uma coisa – que você ainda não perdeu a esperança. Falava outras coisas mais, muito bonitas, ela decorou tudo. E bem no pé da carta, disfarçado num desenhinho, a mensagem codificada: vou arrumar comprimidos.



A prima trouxe. Se os comprimidos chegassem no dia seguinte já a encontrariam morta, ela teria cortado os pulsos nem que fosse com os dentes. Mas aqueles abençoados remédios a fizeram aguentar. A Cássia também os guardava, e cuidadosa como uma mãe, evitava que ela os tomasse demais.



Ele não mandou mais cartas, mas os comprimidos chegavam pontualmente, e ela se sentia protegida, acompanhada e abençoada por ele, e não sentia falta de correspondência. Adivinhava suas palavras por detrás dos remédios, o conhecia tão bem que sabia quais seriam suas palavras. Sabia que ele chorava por ela. E isso bastava.



Finalmente, um último pacote – para ser aberto lá fora. Grande. Fofão. O que seria?



Resolveu que levaria a bíblia, que leu de ponta a ponta cinco vezes.  No começo criou Deus os céus e a terra. A terra era vazia, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus se movia por cima da água. Então disse Deus: - Que haja luz! E a luz começou a existir!



Achou tão linda aquela poesia, que a decorou, e passou a ser sua oração matinal no lugar do padre nosso. Todas as manhãs, enfatizando – o Espírito de Deus se movia por cima das águas. E sempre que sentia à sua volta uma enorme escuridão, tão grande, tão real e compacta, que já nem era mais escuridão, porque era visível, brilhante e clara, ela pensava no Espírito de Deus, que por certo estaria ali também.



Cinco para as seis, e ela estava, como queria, pronta, sentada na cama. Pontualmente as seis vieram buscá-la. Ela segurava nas mãos a escova de dentes já com a pasta. Tomou o seu último café da manhã lá dentro. Escovou os dentes, jogou fora a escova, e foi ao pequeno escritório acertar sua vida civil. Seus papéis. Seus documentos. Sua aliança de ouro, pode ficar para você, posso? E os olhos da Agente brilharam de contentamento. E distribuiu as pulseirinhas de cristal. E a Bárbara da Oficina lhe deu um presente em nome de todas, não tivemos tempo de embrulhar, era uma almofada coração fofona, pink-love, Deus, como ela tinha desejado uma. Chorou. Abraçou todas. Caminhou carregando sua Bolsa Especial com as pouquíssimas coisas que levava, mais a almofada, seguindo a Agente. E aquele enorme portão de duas folhas foi aberto para ela, o mesmo que lhe causara o maior aperto no coração de sua vida, no dia em que por ele adentrou, no bonde, algemada: Penitenciária Feminina da Capital, a famosa PFC. A Agente lhe deu dois passes de metrô, e adeus, boa sorte, filha.



Leva um tempo para quem sai da prisão se reorientar, mesmo nascida na capital, onde estava? E a cabeça parecia que ia girando como o disco rígido de um computador velho, até que ah, sim, ali é a Cruzeiro do Sul, aqui é a Zaki Narchi, ali a Doutor Zuquim. Ali fica o metrô, aqui perto a rodoviária.



A rodoviária...



Bem que disseram que aqui agora havia um parque. Onde há parques há bancos, e ela precisava sentar. Para abrir o último Pacote Especial. O que seria?



Colado, um cartão. Não era um cartão de loja, era um cartão feito por ele, um cartão cheio de gatinhos, mas tão cheio de gatinhos, que ela demorou para entender que eram gatinhos, porque estavam todos apertadinhos uns contra os outros, aquela profusão de bigodes patas e rabos.  Que coisa mais lindinha, não precisava nenhum outro presente. Mas havia. Ao desembrulhar, seu coração quase pulou para fora, de emoção. Era uma bolsa do ursinho Puff. Pooh, como se dizia. Em couro rosa, como ela queria.  E cheia de chaveirinhos e penduricalhos coloridos, ele entendia sua fome de cor e de beleza. E dentro da bolsa, ah... dentro da bolsa.



Um gloss sabor cereja, da Natura, meu Deus, da Natura. Também da Natura um creme de mãos de ervas da Amazônia, e quase chorou ao sentir o cheiro maravilhoso. Um perfume Victoria’s  Secret. Pequeno, mas dos deuses. Uma caixinha espelho, dourada com desenhos de flores, que se abria em duas, ele sabia o quanto ela amava espelhos. Um baton Nude, da Vult. Só ele mesmo para entender que era a cor da moda. Uma caixinha estojo de sombras translúcidas, desses paraguaios, mas lindinho, cada cor num formato de coraçãozinho, novinho, cheiroso. Blush da Avon. Pó compacto Marcelo Beauty, cheiroso, pó cheiroso meu Deus. E um jogo de pincéis. Ah! E riu! Um pacotinho de absorventes diários, sem perfume, sem perfume, claro! Uma caixinha com chocolates da Cacau Show, e balas da Arcor. Um anel de fantasia com um lindo cristal vermelho, enorme, escandalosamente lindo. E as balas e os chocolates vinham envolvidos num escorregadio lenço azul celeste, azul celeste, meu Jesus!



E uma foto recente dele, acenando.



E um envelopinho com duzentos reais, acho que dá para comer um lanche na viagem não dá? Comer um lanche? Com duzentos reais ela sobrevivia quatro meses.



E uma passagem só de ida.



Uma passagem. Só de ida.



E uma chave.



E no cartão, dentro, estava escrito:



Vem. Olha, se disser que sei exatamente como te ajudar, estarei mentindo. Há muito a ser feito, você precisa retomar sua vida praticamente do zero. Não, não sei por onde começar a te ajudar. Talvez... talvez se você aprender uma profissão, você é inteligente, aprende, eu tenho alguns contatos, vamos ver, tem fé e vem.



Não sei ao certo por onde começar. Só sei que há um espaço aqui para você, para você refletir, e descansar, e repor suas forças. Depois, depois veremos. Deus nos ajudará.



Vem. A chave é para o caso de eu não estar, é que eu saio muito. Se eu não estiver você pode entrar. Deixei uma cama preparada para você, e toalhas, e lençóis, e travesseiros, e um espaço no guarda roupas para suas coisas. E comida na geladeira. Farei o possível para estar, mas se não estiver, volto logo. Vem.



Quatro vezes a palavra vem, era o próprio Espírito de Deus pairando sobre o abismo que tinha sido sua vida naqueles últimos dois anos. – Que haja luz!



O horário da passagem era para o meio dia, havia um relógio no parque, dez horas, a rodoviária era logo ali, havia tempo de sobra.



Sentindo-se muito bem com suas roupas novas, perfumada, carregando sua bonita bolsa rosa e sua enorme almofada coração pink-love, o Ursinho Puff  à tiracolo olhando para um potinho de mel e abelhas, ela passou baton sem olhar no espelho como fazia desde que se conhecia por gente, e enrolando o bonito lenço ao pescoço porque fazia frio, ela caminhou aprumada rumo ao início do resto de sua vida, só pensando na palavra mágica, chave, solução, divina, gênese da sua vida:



- Vem.


mas para mim é linda demais. é minha


Eu devia ter uns oito ou nove anos, e o rádio ficava sobre um armário, e a gente ouvia olhando para ele, como hoje olhamos para a televisão. Foi então que veio a notícia: - Roberto Carlos irá defender o Brasil no Festival de Sanremo.

 O sujeito foi feliz na escolha das palavras: - defender o Brasil. Foi a primeira vez que eu ouvi que o Brasil precisava ser defendido, eu, que não entendia nada de copas do mundo e muito menos de guerras, e isso porque estávamos em plena vigência da terrível ditadura.

 Defender o Brasil. A frase não me saia da cabeça. Bobinha, eu não fazia idéia de como isso seria, e não sabia colocar esse fato – defender o Brasil – dentro de um espaço/tempo: – Que música ele estará cantando agora? eu me perguntava enquanto fazia uma coisa ou outra. Achava que Roberto estava nos defendendo o tempo todo, e repertório para isso ele tinha, repertório que eu sabia de ponta a ponta, sei até hoje, pelo menos o daqueles tempos.

 Então veio a notícia, e a meninota de oito ou nove anos olhou para cima como quem olha para a televisão: - Roberto Carlos VENCEU o Festival de Sanremo.

 Eu não era nada boa em geografia, mas era ávida leitora de fotonovelas, só por isso sabia que Sanremo ficava na Itália. – Aguardem, senhoras e senhores ouvintes, que após os reclames tocaremos a música que Roberto Carlos interpretou e com ela ganhou o Festival de Sanremo, na Itália.

 Ninguém no mundo me tiraria dali.

 Até que finalmente veio a música –  Canzone Per Te, de Sergio Endrigo.

 Eu só não chorei, porque era meninota demais pra ter esse tipo de emoção ligada ao canal lacrimal.

 Mas eu choro hoje.

 Não sei se pela beleza da música e da ternura da interpretação, pela emoção de lembrar da  meninota que ainda não sabia chorar de emoção, ou se pelo orgulho nacional: O Roberto nos defendeu e melhor, ganhou. Ou se por tudo junto.

 Aí era subir na cadeira, e procurar à exaustão outra emissora que estivesse tocando a mesma música, o que não era difícil, todas tocavam.

 Essa história de Canzone Per Te eu a cultivo como uma flor. Pode parecer uma historinha inocente, é uma historinha inocente, eu sei, mas para mim é linda demais. É minha.

deu de cismar com a Erotildes e com a Sophia que trazia dentro dela


Ela voltava da feira com dona Sophia, e ela gostava demais de companhia de mulher mais velha, dona Sophia tinha oitenta anos. Mulher idosa sempre deixa escapar alguma sabedoria, mas precisa investir e ter paciência, porque mulher idosa também deixa escapar muita queixa, mas paciência ela tinha de sobra.

 A subida era punk, então elas iam parando de tempo em tempo para recobrar força, enquanto dona Sophia se queixava, e a queixa do dia era que a pobre tinha um bisneto na cadeia, e sem dinheiro para o advogado, o menino decerto mofaria lá.

 - Ah, mas eu tenho fé em Nossa Senhora, diz a idosa. A Virgem que tanto padeceu neste mundo há de rogar por mim ao Nosso Senhor, por minha fé que isso não fica assim...

 Ela aproveitou a pausa e disse sim, claro, também vou rezar, e no mesmo instante as duas olharam para o céu, um céu azul como o manto de Nossa Senhora e afofado de carneirinhos.

 Foi então que ela viu, mas nunca diria pra dona Sophia, tinha respeito, mas não é que ela viu direitinho?

 - Olha lá, pensou ela, ali, um pimpão! E acolá, mais abaixo, não é que era um par de pernas abertas de mulher, direitinho? Uia!

 Quis demais que a Erotildes estivesse com ela, as duas ririam à farta, mas não quis perder o desenho, dona Sophia olha ali, o céu?

 Dona Sophia botou a mãozinha em pala sobre as rugas fundas dos olhinhos claros e disse filha! É uma resposta de Maria, olha lá, e enxugou uma lagriminha no canto do olho. – Olha a cruz de Nosso Senhor. E ali mais pra baixo, veja, um M, eme de Mãe, de Maria! E fez o sinal da cruz, e beijou o escapulário, ah, filha, é o sinal, minha santa mãezinha irá me valer.

 Era o final da subida onde elas se separavam, a boa anciã fez um aceno e seguiu pressurosa, puxando seu pesado carrinho de feira.

 E ela procurando as chaves na bolsinha e entrando no quintal viu que sim, tinha ventado, e não é que o pimpão tinha mesmo virado uma cruz?

 E ficou ali no quintalzinho olhando para o seu quadrado de céu enquanto o riscado se desfazia e deu de falar não com mãe Maria, mas com São Pedro, com quem nunca tinha ido muito com a cara, primeiro por negar ao Nosso Senhor três vezes, e segundo por trancar o paraíso com uma chave, onde é que já se viu?

 - Tá vendo ô Pedrão? Mandou recado de mau gosto pra mim no céu, Maria acudiu, cruz credo, e fez o pelo-sinal três vezes. Fala assim não, pensou, mãe Maria pode não gostar, mas não resistiu e arrematou já que tinha iniciado no pecado: E tem mais ó São Pedro: Ela é que é a rainha do céu, não o Senhor, e com ela não tem essa de trancar nada a chave não.

 E parou sua discussão com Pedro por aí, tinha pendências no colo da Virgem, melhor não causar mais.

 Mas continuou irritada, ora, mandasse um casal se abraçando como o que a filha tinha lhe mostrado no computador, mas acabou lembrando que cada um interpreta as nuvens pelo seu próprio coração, claro né, ô dêêêr! mas aí a briga já era com ela mesma, cada bobagem que me passa pela lata, afe! 

 E enquanto enchia a geladeira com as compras se resolveu: – bobagem minha, ele é santo, deve estar careca de saber disso, deve mandar os seus recados por atacado, e de repente também não é sinal nenhum, é só nuvem, é só vento.

 Mas pelo resto do dia deu de cismar com a Erotildes e com a Sophia que trazia dentro dela.

é Chiquitita. do Abba. e ponto


- No meu enterro eu quero que o povo cante as “incelença”!

Era Severina, mãe de três filhos, o menor de oito, a do meio com dez, o mais velho, doze. Ao seu lado o marido, assistindo ao futebol, enquanto as crianças se distraiam ao computador, aquisição recente, e para orgulho do pai, o Severino. Foi um casamento maduro, ela se casou aos trinta e cinco, ele aos quarenta, o que não impediu a ela de dar ao marido três lindos filhos, sua maior alegria, além da Severina, que era um mulherão da gota.

- Ôxe! Que conversa é essa mulé? Vixe! Era o marido.

O sotaque dele era de fato nordestino. O dela era imitado. Explicamos: imitado, porque ela tinha vindo para a Capital na barriga de Mainha, e ficou falando como eles de ouvir a parentada. E fazia questão de conservar, para divertimento da filharada que achava aquilo puro esnobismo da mãe.

- Ôxe! Se Caetano que é CAETÂNO, deixou Santo Amaro da Purificação no século retrasado, e ainda fala com sutaque, porque é que eu havera de não pudê? Me digue!

E tudo acabava em graça. Mas a do meio quis saber o que era aquilo de incelença, e ia teclando na internet, quando o mais velho interviu, não maninha, você precisa teclar da maneira correta: E-x-c-e-l-ê-n-c-i-a!

- Pois tu tá errado, atalhou a mãe. Tu vai carregar a página com um tantão de excelências, e não vai achar o costume do povo, que é INCELENÇA mesmo.

Como é que a mãe entendia isso de internet? Até o marido olhou meio desconfiado, mas foi de o mais velho teclar como a mãe disse e aparecer: canções entoadas em velórios à beira do defunto, ainda em uso nas regiões tal, tal e tal do país.

- Viste? Fez ela orgulhosa de seus saberes.

As crianças se interessaram: - conta mais, mãe. Por mais que ela tentasse, eles não se acostumaram a chamá-la de Mainha, tão lindo Mainha, tão doce o costume do meu povo... – Mãe, ouviu? Conta mais.

E ela, como se entendesse de um tudo que dissesse respeito ao sertão, pôs-se a cantar uma incelença, que era uma monótona cantilena do tipo: uma incelença, o corpo quer ir embora, duas incelença, o corpo quer ir embora, ela não lembrava muito bem, quem tinha contado essa das incelenças era a bisavó.

Afe mãe, fez uma careta o mais novo. Primeiro: Nunca que a senhora vai morrer. Segundo: Nunca que a gente vai ficar nessa música triste a noite inteira.

- Nisso tu tá mais é certo, fez a mãe, puxando de um tantão a blusa e mostrando os peitos para o marido. Ela nunca se descuidava nem um bocadinho, vai que uma sonsa aparece, eu heim? Era blusa decotada, mini sainha, e de noite, calcinhas atrevidas. E o Severino babava de gosto. – Cantem, continuou ela, mas só de um tantinho. Pra manter a tradição de nosso povo.

- Mas já vão anotando aí que eu vou deixar as instruções do meu velório. E só por brincadeira a do meio abriu uma página do bloco de notas e começou, fala aí mãe:

- Primeiro anotem os nãos: - Não botar em cima de mim defunta aquele ridículo veuzinho roxo da prefeitura. Quero fúcsia.

- Fu o quê, fez o mais velho, já com cara de malandro, e foi rápido pra escapar do tapão da mãe.

- Fúcsia é pink, seus burros, o que é que vocês aprendem lá naquela escola, an?

- Ela está certa, disse o Severino, que tinha algumas letras. Isso de usar palavra inglesa chama-se anglicismo.

- Êba, vou tirar um barato dos caras na lanchonete, abaixo o hot dog, seus linguicistas! E escapou da tapona da irmã.

A do meio se irritava, vocês estão mudando o assunto, mãe, manda aí o próximo não.

- Não quero choradeira em cima de mim. Até porque algo me diz que eu vou morrer bem velhinha de algum acidente bem engraçado.

- Engraçado de que tipo, dá uma idéia, pediu o menor. Mas ela não tinha nenhuma idéia. – Ah, será algo engraçado. Fulano vai ligar pra Beltrano avisando que a Severina morreu, e quando Beltrano perguntar de que, e Fulano responder, ficará uma vontade de rir no ar. Finalmente, no velório, sempre aparecerá uma pessoa mais desbocada que vai escancarar a piada, e todos vão rir à farta. Se eu vim ao mundo de um modo ridículo, é normal sair dele assim também.

Todos já conheciam de cor e salteado a história. O voinho, que não entendia como funcionavam as coisas na capital, vendo a mulher nos trabalhos de parto, a internou no primeiro hospital que viu pela frente. Na hora de pagar, era muito mais do que ele tinha trazido achando que com aquele tanto passaria o seu primeiro ano. O diretor do hospital não quis saber de conversa: ou paga, ou essa história acaba na delegacia de polícia. Depois amenizou: - tudo bem, a mãe pode sair. Mas a criança fica. E foi assim que Severina nasceu. Afiançando a dívida do pai. – já nasci afiançada, ela disse pela milionésima vez, puxando o decote e patenteando um belo par de seios aprisionados por um sutiã preto com babados e rendas vermelhas.

As crianças riam, embora ninguém tivesse muita certeza de que a história era verdadeira; todos da família já tinham morrido, mas na boca de Severina o que verdade era, verdade ficava, assim como seu sotaque, que ela treinava era nas novelas da televisão. E com o marido, este sim, um autêntico nordestino, e dos bons, e bota bom nisso, ela pensava, na feira, quando encomendava, já chegou aquele conjuntinho de meia de renda com lacinhos e corpete pretinho, já? O Severino só passava no bar pra molhar a goela com um rabo de galo e rumava aprumado pra casa, vai que o Ricardão descobre o caminho?

- Fala outro não, mainha, fez a do meio, sabendo que a mãe adorava esse chamego.

- Chega de nãos, agora é só sim. Quero maquilagem, quero ir com minha camisola vermelha bordada, camisola mãe? Que falta de respeito, disse o mais velho.

- O defunto é meu, ela disse botando a mão no decotaço! E todo mundo riu.

- Tá bom, camisola, que mais?

- Quero flores de crochê de seda, e não preciso nem indicar quem faz, que todo mundo aqui já sabe.

Como não saber, se toda roupa de Mainha era bordada, customizada, explicava a menina. Severina sempre achava que sua roupa precisava de um brilho a mais, de um paetê a mais, de umas pérolas a mais, até nas sapatilhas ela mandava colar enfeites e brilhozinhos.

- A Tiana! Responderam todos.

- Iiisso, fez a Mãe. Agora o detalhe, prestem muita atenção: quero incenso, e dos bons, acentuou bem “ e dos bons” queimando o tempo todo. E velas cor de rosa e perfumadas. E agora vem o mais importante, o principal, a música, que vai tocar na repetença o tempo todo do meu velório. Repetição, fez o marido. – Pois foi o que eu disse, abanou os peitos cheirosos na cara do marido – repetição.

- Ué, o que houve com as incelenças, começou a gozar o maridão, mas teve de fugir de um sopapo.

- Eu sei qual a música, minha flor do nordeste: - Aceito Seu Coração, do segundo amor de sua vida, o Rei Roberto. Eles tinham mandado tocar na hora do bolo, no casamento, bolo que ela não conseguiu nem provar, de enjoada que estava da gravidez do mais velho.

- A nossa música, terminou o Severino, emocionado, olho no decotão à sua espera, logo mais, na fofa cama do casal.

- Errou, disse ela. A música é Chiquitita, do Abba!

- Ham?! estranharam todos. Ninguém nunca ouviu falar disso aí, tecla aí maninha. Achada a música, ouvida, traduzida pela ferramenta de tradução, ninguém entendeu foi nada.

- Mas mãe, essa coisa horrível aí fala de uma pessoa triste, que passou por decepção, que está precisando de um carinho, nada parecido com sua vida, disse a menina, e todos apoiaram, inclusive o maridão, que se sentiu até ofendido. Ele dava pra ela vida de princesa, uma linda casa própria, o quarto deles com suíte, móveis afofados, cozinha resplandecente, quartos pros meninos, carro do ano na garagem, e agora a tevê de LED a cabo com computador, maior alegria que ele teve em comprar do melhor, o mais caro, e ela vem com essa música de tristeza aí, ah não...

- Severina não arredou pé. A música é essa. E usou o recurso que Cleópatra já devia ter usado ao seduzir Marco Antonio: bateu as pestanas, balançou a cabeça para fazer barulhinho com os brincos e jogou os cabelos para trás num leve suspiro sem explicar mais nada, deixando evidente que uma mulher esperta, mas esperta mesmo, que quer segurar seu homem, tem de ter sempre um segredo bem escondidinho na manga.

- É Chiquitita. Do Abba. E ponto.

nova tentativa por uns dez meses, no mínimo


Ela se levantava todos os dias às três e meia da manhã.

De início, dois quilômetros de caminhada até o trem. Em seguida, o longo percurso de trem até o centro da grande cidade. Em frente à estação ferroviária, atravessando a rua e após não pouca espera, um ônibus que faria um longo trajeto com destino a um bairro distante. Que a deixava numa avenida. Onde ela caminhava outros tantos quilômetros até chegar ao trabalho. Tudo isso teria que se encaixar num horário que a deixasse no trabalho antes das oito, porque a empresa fornecia café com leite pão com manteiga, mas pontualmente às oito essa pobre refeição era recolhida, e então era trabalhar com o estômago vazio até o meio dia, mal enganado por balas ou chicletinhos. No almoço, a empresa não disponibilizava nenhum meio de se esquentar a marmita, que era comida fria, mesmo nos dias mais frios do ano, nos vinte minutos destinados a esse fim. Ela comia em cinco, fumava um cigarro na calçada, corria para escovar os dentes, e ainda lhe sobravam alguns minutos.

Não tinha amigos. Convivia com o paradoxo de trabalhar numa profissão que lhe exigia o contato, a fala, a cortesia, o improviso, e era boa nisso tudo. Mas no trato social era tímida e reservada, portanto não sabia fazer amizades.

Operadora de telemarketing, essa era a sua profissão.

Após a exaustiva viagem de volta, ela só queria janta, banho, e dado um beijo na mãe, tomada a bênção ao pai, um rápido afago nos irmãos pequenos, e com uma boa sensação de culpa por não estar monitorando os estudos deles, só lhe restava ir dormir.

Se parasse para pensar, o que raramente fazia, tamanho era o seu cansaço, ela pensaria no absurdo que é o ato de dormir como um item de agenda, preciso dormir porque preciso acordar, o sono como sendo parte integrante e essencial do trabalho. Mesmo dormindo, portanto, ela estava à serviço da empresa.

Não pensava nisso não, esse pensamento a deixaria triste, e ela ha muito que aprendera a espantar as tristezas evitando de pensar nelas. O trabalho ajudava no sustento da mãe, do pai e dos pequenos, era o que bastava. E então era sinal da cruz e cabeça no travesseiro.

Mas aquela noite seria diferente.

Naquela noite ela ligaria para ele. Após meses criando coragem.

Por algum código de ética existente na cabeça dela, ela achava que seria deselegante ligar na hora do Jornal Nacional. Antes, nem pensar, ele poderia estar no banho, ou jantando, ou... enfim, resolveu que esperaria o Jornal acabar. Espera das mais penosas, porque os olhos estavam a clamar por palitinhos que lhe segurassem as pálpebras pesadíssimas de sono e cansaço. O telefone ao lado do travesseiro, o número anotadinho, só esperando pelo Boa Noite do casal de bacanas, que decerto também acordavam cedo, mas numa rotina bem outra.

- Boa noite! Boa noite e até amanhã!

Contou mais cinco minutinhos, para não dar a impressão que estava justamente esperando acabar o Jornal. E ligou.

Não tinha nenhum roteiro na cabeça, tinha só mesmo o sentimento de muita saudade, de muita vontade de ouvir um olá amigo, de conversar um pouquinho com alguém que lhe era importante, de dar e receber atenção. Na cabeça nada mais do que o “como vai você”, do Roberto, como texto de abertura. O resto ela imaginava que viria normalmente.

Mas...

Trabalhando de janeiro a janeiro ao telefone, ela sabia identificar de primeira se a pessoa estava de boa ou na pilha. E sentiu no tom de voz dele aquela impressão de oi fala rápido que estou fritando batatinhas. Podia ser outra coisa também, e bem diferente de batatinhas. Essa do “cliente fritando batatinhas” era uma brincadeira dos colegas do Terlemarketing. Mas definitivamente, ele estava na pilha.

Ela não era de julgar pessoas. Sabia ser o amigo ocupado, e do lado de cá é impossível saber o que se passa do lado de lá, e não é de bom tom ficar perguntando para as pessoas o que elas estão fazendo quando ligamos – você quer que eu ligue outra hora? ela perguntou diplomática. Esperou tanto por aquele momento, que não queria conversar sabendo que o amigo tinha um timer marcado para no máximo uns quatro minutos na cabeça. Mas ele era gentil, tudo bem, pode falar. Ela sentiu urgência naquele pode falar, e Deus meu, o que eu digo, eles não tinham aquele tipo de amizade que possibilitasse vários assuntos comuns, então ela caiu na bobagem de perguntar como ele estava passando de saúde. Bobagem não era, ela se interessava, sim, pela saúde dos que amava, essa pergunta não era protocolar, mas ele a respondeu como se fosse – eu estou bem ponto final. Ela sentiu que precisava encompridar: – bem, bem, mesmo, tipo, você já fez aqueles exames de praxe, colesterol, glicemia, aquela coisa de gente que está chegando na idade, gracejou? Ele cortesmente disse que sim, que estava tudo sob controle, que cuidava da saúde na base da boa alimentação, já alterando levemente a voz para uma entonação que significava: e agora, qual a próxima pergunta? (Ah, os seus anos de prática ao telefone...)

Ela então cometeu mais um erro, perguntou quando ele viria à capital, pergunta típica dos que vieram e deixaram alguém lá. E quase mordeu a língua de raiva, porque foi o trabalho de perguntar e ouvir a resposta que já conhecia, de tantos amigos e parentes que ficaram: - irei sim, irei assim que der, estou esperando resolver umas coisas, mas se Deus quiser eu vou, que bom que você ligou. Ligou. Conjugado no passado. Ela sentiu que isso arrematava a frustrante conversa. Conversa? Aquilo não foi conversa. Ela queria conversar, não fazer um check list da vida dele, isso não era nada parecido com a sua expectativa de um bom papo, razão pela qual atalhou rapidinho com um vou desligar, desculpe ter tomado seu tempo, imagina, um beijo querida, liga sempre. E ficou aguardando para ouvir o pam do aparelho. Até o pam do aparelho foi na pilha, bom, aí já era exagero, pam é pam.

Ela virou para o lado e adormeceu antes de bater com a cabeça no travesseiro. Foi só no dia seguinte, ao ligar para o primeiro cliente, oito em ponto, incomodando algum coitado, fazer o que, eram ordens, que se lembrou do insucesso da sua ligação. Não era o caso de ter ficado magoada com ele, essas coisas acontecem. E após fumar o seu único cigarro do dia, já enfiando a bituca na caixinha de areia, e já com a enorme saudade reforçada e um aperto na garganta concluiu: era o caso sim de saber que a sua timidez quase patológica impediria que ela fizesse nova tentativa por uns dez meses, no mínimo.

para colocar seus bichinhos e as fotinhos dos seus filhotes

Ela era faxineira noturna, num escritório enjoado. Não sabia o porquê dessa idéia que lhe vinha à cabeça, escritório enjoado, ou sabia sim, era por conta das funcionárias enjoadas que sempre mandavam recadinho. – Tinha pó na minha mesa ontem. – Aquele banheiro está um nojo!...

Cretinas. Nenhuma delas teria dinheiro pra ter empregada em suas casas, fácil ficar dando ordens para os empregados dos outros.

Quem falava assim não era ela não, era dona Myrtha, Myrtha com ypicilone e com agá, tá meninas? Era a chefe das faxineiras, bacaninha ela. Não ligava pra nada não. Tudo o que queria era ficar em paz tomando o seu querozene, era assim que ela chamava a sua pinga. Querozene. Ela achava engraçado. Enquanto todas tiravam das bolsinhas danoninho, suquinho, garrafa térmica com café, dona Myrtha tirava uma garrafa de goró. E ficava de boa, bebendo, lendo jornal, e de olho na sua televisãozinha.

Elas chegavam e trabalhavam rápido, era um acordo entre elas. Limpeza de escritório é baba. Era só tirar o pozinho das mesas das chatas, nas dos rapazes só passar um pano apressado, elas sabiam de quem era a mesa de quem, até porque mesa de enjoada sempre tem fotinhos de crianças chatas, e bichinhos, e fofurices. Mesa de homem só tem bagunça, e nas gavetas, revista de mulher pelada. E depois, era jogar litros e litros de desinfetantes nas privadas, porque as enjoadas só queriam isso mesmo, sentir o cheirinho de limpeza as bobas, e não seriam elas que iriam ficar enfiando as mãos nos vasos pra limpar de verdade.

Um capricho melhor no banheiro da secretária, o que tinha uma poltroninha. Todas sabiam a serventia da poltroninha, era ali que ela dava pro chefe, pessoal, eu deixo uma poltroninha aqui para colocar minhas bolsas e coisas, ok? Era a copeira que contava antes de ir embora. Pois sim. Ali o amorzinho rolava solto. E um capricho maior na sala do chefe, que tinha um tapetão fofo onde o amorzinho também rolava, e uma mesa com tampo de vidro sem nenhum papel em cima, porque o chefe não fazia nada, só fazia em cima da secretária, e a julgar pela cara de nojo da secretária, não devia fazer lá muito bem não.

Feito isso elas tinham tempo de sobra pra não fazer nada. Fumavam. Batiam papo encostadas na parede sentadas no carpete. Liam horóscopo, revistas de novela, discutiam novela, vidas de artistas e big brother. Faziam cruzadinhas enquanto papeavam. Umas dormiam, sono solto, e tinha até quem puxasse um fuminho. Dona Myrtha só não queria que deixassem cheiro. Então era um tal de descascar mexerica pra tirar o cheiro do bagulho, mas depois ficava o cheiro da mexerica que elas tiravam com Bom Ar. E ficava aquele cheiro bom de bagulho com mexerica e flores do campo por todo o escritório.

Tinha uma lá que fazia faculdade de dia, pagava com o serviço da noite, ela ficava se perguntando quando que a coitadinha descansava. Foi ela que descobriu como ligar os computadores, aí foi só festa. Todas aprenderam a fazer MSN, Orkut, Face Book, tiravam fotos umas das outras no celular e iam fazendo a alegria. Muitas ficavam teclando com seus casos ou com outras colegas, filhos e parentes de outras cidades. Felicidade total.

Foi ela também, a universitária, que entrou no computador do chefe. Tinha lá um quadradinho amarelo, ela falou que chamava pasta, escrito: Relatórios de Diretoria. Abriu não deu outra, cheinho de fotos pornô. Coisa de arrepiar. Ela nunca que tinha visto aquilo. E foi uma gargalhada só, o mulherio não se aguentava. Chamaram a dona Myrtha. Dona Myrtha não era tão mais velha que as demais, tinha seus trinta e oito, mas ela achava que a chamavam de dona porque ela tinha aquele corpanzil de mulherona, panção, peitão. - Dona Myrtha, corre ver isso. Isso era uma mina caindo de boca num pimpão, dona Myrtha tinha ficado viúva bem mocinha. E as gozações choveram, lembra, dona Myrtha? Tinha esquecido né? Então, é assim que é o bilau! Ou no seu tempo era menorzinho?

Dona Myrtha riu tanto, mas tanto, que vieram lágrimas. Tanta lágrima, mas tanta lágrima, que de repente as meninas deram de suspeitar que já não eram lágrimas de riso, era choro mesmo. E ela então voltou pro seu goró, mas meio murchinha...

E assim terminava mais um dia, melhor dizendo, mais uma noite de trabalho. Na manhã seguinte chegariam o chefe, a comidinha dele, as demais enjoadas e os caras folgados, e o escritório na certa voltaria a ser chato.

Mas ela morria de vontade de arrumar um emprego assim, de usar roupa de modinha e não uniforme azul de limpeza, e ter sua mesa com computador e telefone, para colocar seus bichinhos e as fotinhos dos seus filhotes.