Ela
está em seu quarto fazendo crochê e é domingo, e o crochê é qualquer coisa para
desocupar as mãos, porque a cabeça, essa continua ocupada. Mas os filhos pensam
que ela está bem, porque ela está quietinha, e a deixam em paz e é melhor
assim.
ô!
não precisa, ela sabe
E
aí, saiu o resultado, é benigno?
Essa
preocupação martelou meu dia
Desde
a hora em que tirei o carro
Benigno?
Maligno?
Quem
foi que inventou a porra
desses
nomes?
Como
é que uma coisa que tira o sono da gente
pode
ser benigna? Tudo o que nos faz rolar na cama
é
do demo. Inclusive. Só que sexo é bom
O
demo ensinou coisa boa, foi vingança, decerto,
daquela
história de paraíso, onde ele ficou por baixo
Mas
e aí, o que é que deu?
É
maligno, vai ter quimio, começa semana que vem
E
vai ser foda, não se iluda não, doutor falou.
Quer
combater? Vai penar
Que
nem no dia em que chamamos os caras
pra
exterminar os bichos, ficamos tempão sem dormir
A
rinite comendo solto.
Vamos
contar pros meninos? Sim, faz parte do processo,
a
família precisa participar, e ah, eu vou vomitar pacas.
E
vou perder cabelo, e emagrecer, sabe aquele olho encovado?
E
sei não, é uma loteria
é
tudo isso com uma chance grande de eu morrer.
Gozado
ela, dar a notícia com tanta calma
Mulher
é bicho forte, ou então entende mais
da
nossa animalidade, bicho esquisito, não disse a roqueira esquisita?
Tenho
vontade de dar nela um puta abraço, mas precisava mesmo
que
ela me abraçasse: como vou me virar sem ela?
E
me vem à mente o egoísmo dessa pergunta
Não
estou com pena dela, ela vai embora dessa merda de vida.
Fico
eu aqui, com crianças, hipoteca, desemprego
e
falta de situação, e é claro que voltarei a fumar
Engordar
Comer
mal, e no final
Também
bater com as dez.
É.
A gente se encontra, penso. Mas e os meninos?
Ah,
que se foda, eles se encontram também
E
quer saber: ficam melhor sem mim, sem nós
Dupla
de desorientados
Mal
vividos, mal resolvidos, mal acabados.
E
é só aí que consigo chorar
E
é só aí que o abraço vem
Mas
não digo nada não. Não precisa, ela sabe.
vem
Era
meia noite e ela tinha acabado de tomar seu Banho Complicado. Ela dividia os
banhos em Banho de Higiene, Banho Especial e Banho Complicado. O de higiene era
aquele matinal, rápido, o corpo ainda pedindo sono. O que os grã finos chamam
de chuveirada. Chuveirada... que palavra mais boba. O Banho Especial era aquele
para onde ela se dirigia com a sua cestinha contendo esponjas, lixas para o pé,
escovinhas, pedra pomes. O banho esfregão. E o Banco Complicado era quando além
de tudo isso, ela lavava os cabelos. Imensos, uma complicação. Tinha sido
difícil conseguir com as outras o tempo necessário, mas como ela era discreta,
educada, cordata, apaziguadora, no final todas acabaram gostando dela, e até
defendiam seus horários, ó, já espantei a fulana daqui, hoje é dia do seu banho
de cabelão. Era como elas chamavam o seu Banho Complicado. Em outros tempos o
banho complicado também comportava cremes com grânulos especiais para
esfoliação e limpeza de pele do rosto e pés, mas isso foi em outro tempo.
Eu
trouxe glicerina, era a prima, a única amiga que ficou do seu lado. Você faz
uma mistura de glicerina e açúcar, e funciona do mesmo jeito. E de jeito em
jeito as coisas foram tomando jeito.
Mas
ela estava então, de Banho Complicado tomado, seu avolumado cabelão úmido às
costas, molhando a camiseta que ela trazia por cima da calcinha, e só. Ela
tinha exatamente seis horas para desmontar sua casa, seis horas não: cinco
horas e cinquenta e cinco minutos, porque queria estar sentada e pronta quando
a viessem chamar.
Começou
dobrando as toalhas de crochê. Noventa e três. Três toalhas diferentes todo
dia. Uma, tipo um xale, ficava estendida atravessada sobre a cama. Outra, um
caminho retangular com borlas arredondadas, sobre a única cadeira. E a redonda,
sobre uns caixotes que comportavam seus pertences, por sobre o qual havia uma tábua,
e sobre ela, seus poucos produtos de toalete, a saber: Água de Colônia, Creme
Nívea, Óleo de Amêndoas Doces da Leclerc, sempre da Leclerc. Algodão, acetona e
colírio, que com o tempo passou a ser chá de camomila. É tão bom ou melhor que
colírio disse a prima, você não deixe de usar, faça compressas, tua vista
poderá até melhorar.
Numa
caixinha de sapatos, uma infinidade de esmaltes, mas eram esmaltes itinerantes.
Havia muita troca de esmaltes por lá, e a prima sempre trazia mais, porque
tinha um salão de beleza. Vou levar esse, posso? Era uma colega. Não precisa
pedir, dizia ela, são nossos. Essa frase são nossos, é uma frase perigosa de
ser usada entre pessoas com pouca ou nenhuma consciência, mas ela sabia e não
ligava. Muito esmalte não voltava jamais, ou voltava trazendo só um restinho
duro no fundo do vidro, e elas nem se desculpavam.
Sem
problemas, ela pensava. Já perdi coisas muito mais importantes nesta vida do que
esmaltes.
Completando
sua parafernália cosmética, uma caixinha jogo de sombras, pó compacto, blush,
delineador, lápis e rímel, que a prima também renovava de tempos em tempos. E
num copinho pentes, escova de dentes, essas tralhas. Seus cabelos eram tão
complicados que ela só os penteava de tempos em tempos, com a ajuda da Cássia.
No
começo as moças achavam graça daquela colega que chegava todas as manhãs na
oficina de costura completamente maquilada, as unhas perfeitas, as sobrancelhas
acertadinhas, pra quê isso? Nem homem temos aqui, além da Cássia... Cássia se
chamava Rosicleide, e era o homem da turma, tatuadíssima, invocadíssima, boca
sujíssima mas com ela, super gente fina, ei, deixem a mina em paz, a cara é
dela, ela pinta como quiser.
O
que ela não dizia para as colegas é que ela tinha fome de cor. Daí as toalhas
de crochê, multicoloridas, a prima trazia os fios. Os esmaltes, ela chegava ao
cúmulo de usar cores diferentes nas dez unhas. A maquilagem fortíssima sobre os
olhos. Cor. Meu Deus, cor. Muito mais do que chocolate, muito mais do que uma
lazanha ou uma pizza ou até mesmo sexo – cor!
Esses
poucos pertences de toalete, mais o sabonete, a pasta, o xampu, o creme rinse e
os cremes que a prima fazia por ficarem mais baratos, constituíam a soma de
todos os seus pertences, mas para ela eram objetos de muita distração. Tirar
lentamente as sobrancelhas. Ajeitar caprichosamente as unhas, e sem usar
ferramentas. Só com o pauzinho de laranjeira, a espátula, e sempre que estava à
toa esfregava nas unhas um algodão embebido em óleo, e as cutículas da mãos e
dos pés foram ficando finíssimas. Levando horas penteando o cabelão, passando
óleo de amêndoas, que antes esfregava nas palmas das mãos...
De
vez em quando descia para assistir televisão, mas isso mais para garantir sua
sociabilidade, porque os olhos ficavam na tevê, mas a mente ficava em off.
Invariavelmente pensava nele, como ele estará, o que estará fazendo? E só de
saber que ele estava bem, já a tranqüilizava muito.
Uma
dia a prima trouxe duas imensas caixas de plástico com tampas. São caixas box,
estão a venda aos montes por aí, pensei em você. Então as caixas substituíram
os caixotes, e a prima conseguiu uma madeira compensada, mais leve, para
substituir aquela feia tábua, e trouxe um espelho maior, com suporte. E trouxe
também um painel para colocar fotos com ímas. Trouxe os ímas. E as fotos. Da
mãe. Do Pai. De todos. Pena que não tinha nenhuma foto dele, ele ela só trazia
nas retinas, e como tinha medo de esquecer, todo dia, ao acordar, após o sinal
da cruz e do padre nosso, olhava mentalmente para o rosto dele, e sorria, e só
então saia da cama.
Tudo
isso ela lembrava enquanto ia retirando as fotos do painel, ajuntando seus
poucos pertences.
A
prima, que também era muito pobre, como ela, por uma combinação das duas,
começou a trazer, de longe em longe, pacotinhos com Coisas Especiais. Que ela
nem abria, porque sabia o que continham. Os pacotinhos iam sendo guardados na
Bolsa Especial, uma sacola de lona cor de rosa, mas que não ficava com ela e
sim com a Cássia, que defendia essas coisas com a própria vida, ai de quem
chegar perto das coisas da minha amiga! E todas sabiam que a Cássia falava a
verdade.
De
tempos em tempos a Bolsa Especial ia ganhando pacotinhos com as Coisas Especiais.
Então
ela dobrou as toalhas e as deixou num canto, não precisaria mais delas,
escolheu apenas duas, uma verde e uma azul. Com os livros fez o mesmo, ela
tinha uma regra – livro lido, livro descartado, ora, se eu já me alimentei
deles. E os passava para outras pessoas, mas por ali ninguém gostava muito de
ler. Mesmo assim os deixou, uma pequena pilha. E os esmaltes, e a maquilagem, são
cores, mas ao mesmo tempo são sombras, pensou, não, não irão comigo. E toda a
tralha. Deixaria tudo para a Cássia. Pensando bem, tudo não, as toalhas de
crochê distribuiria entre as meninas.
Uma
leve batidinha na porta, era justamente a Cássia, que silenciosa, pousou a
Bolsa Especial sobre a cama, e as duas trocaram um demorado abraço. E os rostos
das duas foram se aproximando, se aproximando, e ela entendeu que Cássia, pela
primeira vez, cobrava o preço da proteção que lhe dera esses meses todos. Começou
com um beijo. Que ela devolveu, com ternura e emoção. Um beijo delicioso, por
sinal, que nunca tinha recebido de homem algum. E após algum tempo, e sem dizer
nada, Cássia se foi.
A
prima, caprichosa como sempre fora, etiquetou os pacotinhos por ordem numérica,
que ela foi abrindo na sequência. Pacote
número um: um creme cheiroso da Avon. Pacote número dois: um par de meias
soquete da Betty Boop. E assim foi. Um conjuntinho de calcinhas e sutiã de oncinha,
que lindinho, que mimoso, alcinhas pretas, babadinhos pretos, ela quase chorou.
Demorou um tempão para vestir, só
olhando. Uma calça Sawary, olha como ficou justinha, que linda. Uma camiseta
Zahra, preta, também coladinha. All Star xadrezinho lilás, ai meu Deus, que
mimo. Um colar de várias voltas de correntes fininhas tipo imitação de cobre,
que ela na certa teria comprado muito baratinho na Porto Geral. E um lenço que
dizia ela todo mundo estava usando, de algodão, axadrezado, com franjas
brancas. Azulado Metálico. Muito bonito, você enrola como quiser no pescoço, ou
deixa solto como um xale, pode até usar como um babador por sobre o peito, de
qualquer maneira vai ficar bonito. Estava escrito no papelzinho, colado com
durex. E várias pulseirinhas de cristal, que ela entendeu que deveria usar uma
ou duas, e distribuir as outras para as moças.
Levaria
ou não a bíblia? A Bíblia na Linguagem de Hoje, oferecida por uma mulher muito
simpática chamada Osana, filha, Deus nos leva ao deserto para nos tratar. Você
está tratando muito bem da sua aparência, mas pense no seu interior. O primeiro
passo é o perdão. Você precisa perdoar.
Perdoar.
Perdoar
os que a deixaram ali, trancafiada como o bule de chá verde da vovó.
Todos
se safaram. Para fora do país, para suas casas de campo, suas elegantes
coberturas, para suas vidas respeitáveis, e foi só ela, a tonta, a bobona, a
sozinhona, a sem noçãozona, a que ficou com a carta mico na mão sem nenhuma
explicação e sem um tostão para contratar advogado. A que ganhou um par de
algemas e esta cela, por dois longos anos, e isso graças a sua vida pregressa, pela
graça de Deus possuía ficha limpa, limpíssima. Senão seriam quatro, disse a
juíza. Até carteira assinada ela tinha. Tinha, era a palavra certa. Perdeu o
emprego. A liberdade. A honra. A cidadania. Os amigos. Perdeu a saúde. O sono. Perdeu, perdeu,
perdeu.
Ficava
horas, à noite, pensando em como todos estariam rindo dela. E esmurrava o
travesseiro, e gritava, cara enfiada no travesseiro, ei! menos! Era a Cássia.
Que trazia um chá, oferecia um cigarro. Ela nunca fumou, imagina, já não tenho
dentes bonitos, só o que me faltava era complicar meus dentes também.
Quando
recebeu a única carta dele, em resposta a que tinha escrito narrando sua
rotina, ele dissera: todos esses cuidados que você está mantendo com seu corpo,
sua saúde, sua aparência, para mim significam só uma coisa – que você ainda não
perdeu a esperança. Falava outras coisas mais, muito bonitas, ela decorou tudo.
E bem no pé da carta, disfarçado num desenhinho, a mensagem codificada: vou
arrumar comprimidos.
A
prima trouxe. Se os comprimidos chegassem no dia seguinte já a encontrariam
morta, ela teria cortado os pulsos nem que fosse com os dentes. Mas aqueles
abençoados remédios a fizeram aguentar. A Cássia também os guardava, e
cuidadosa como uma mãe, evitava que ela os tomasse demais.
Ele
não mandou mais cartas, mas os comprimidos chegavam pontualmente, e ela se
sentia protegida, acompanhada e abençoada por ele, e não sentia falta de
correspondência. Adivinhava suas palavras por detrás dos remédios, o conhecia
tão bem que sabia quais seriam suas palavras. Sabia que ele chorava por ela. E
isso bastava.
Finalmente,
um último pacote – para ser aberto lá fora. Grande. Fofão. O que seria?
Resolveu
que levaria a bíblia, que leu de ponta a ponta cinco vezes. No começo criou Deus os céus e a terra. A
terra era vazia, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo.
A escuridão cobria o mar, e o Espírito de Deus se movia por cima da água. Então
disse Deus: - Que haja luz! E a luz começou a existir!
Achou
tão linda aquela poesia, que a decorou, e passou a ser sua oração matinal no
lugar do padre nosso. Todas as manhãs, enfatizando – o Espírito de Deus se
movia por cima das águas. E sempre que sentia à sua volta uma enorme escuridão,
tão grande, tão real e compacta, que já nem era mais escuridão, porque era
visível, brilhante e clara, ela pensava no Espírito de Deus, que por certo
estaria ali também.
Cinco
para as seis, e ela estava, como queria, pronta, sentada na cama. Pontualmente as
seis vieram buscá-la. Ela segurava nas mãos a escova de dentes já com a pasta.
Tomou o seu último café da manhã lá dentro. Escovou os dentes, jogou fora a
escova, e foi ao pequeno escritório acertar sua vida civil. Seus papéis. Seus
documentos. Sua aliança de ouro, pode ficar para você, posso? E os olhos da
Agente brilharam de contentamento. E distribuiu as pulseirinhas de cristal. E a
Bárbara da Oficina lhe deu um presente em nome de todas, não tivemos tempo de
embrulhar, era uma almofada coração fofona, pink-love, Deus, como ela tinha
desejado uma. Chorou. Abraçou todas. Caminhou carregando sua Bolsa Especial com
as pouquíssimas coisas que levava, mais a almofada, seguindo a Agente. E aquele
enorme portão de duas folhas foi aberto para ela, o mesmo que lhe causara o
maior aperto no coração de sua vida, no dia em que por ele adentrou, no bonde,
algemada: Penitenciária Feminina da Capital, a famosa PFC. A Agente lhe deu
dois passes de metrô, e adeus, boa sorte, filha.
Leva
um tempo para quem sai da prisão se reorientar, mesmo nascida na capital, onde
estava? E a cabeça parecia que ia girando como o disco rígido de um computador
velho, até que ah, sim, ali é a Cruzeiro do Sul, aqui é a Zaki Narchi, ali a Doutor
Zuquim. Ali fica o metrô, aqui perto a rodoviária.
A
rodoviária...
Bem
que disseram que aqui agora havia um parque. Onde há parques há bancos, e ela
precisava sentar. Para abrir o último Pacote Especial. O que seria?
Colado,
um cartão. Não era um cartão de loja, era um cartão feito por ele, um cartão
cheio de gatinhos, mas tão cheio de gatinhos, que ela demorou para entender que
eram gatinhos, porque estavam todos apertadinhos uns contra os outros, aquela
profusão de bigodes patas e rabos. Que
coisa mais lindinha, não precisava nenhum outro presente. Mas havia. Ao
desembrulhar, seu coração quase pulou para fora, de emoção. Era uma bolsa do
ursinho Puff. Pooh, como se dizia. Em couro rosa, como ela queria. E cheia de chaveirinhos e penduricalhos
coloridos, ele entendia sua fome de cor e de beleza. E dentro da bolsa, ah... dentro
da bolsa.
Um
gloss sabor cereja, da Natura, meu Deus, da Natura. Também da Natura um creme
de mãos de ervas da Amazônia, e quase chorou ao sentir o cheiro maravilhoso. Um
perfume Victoria’s Secret. Pequeno, mas
dos deuses. Uma caixinha espelho, dourada com desenhos de flores, que se abria
em duas, ele sabia o quanto ela amava espelhos. Um baton Nude, da Vult. Só ele
mesmo para entender que era a cor da moda. Uma caixinha estojo de sombras
translúcidas, desses paraguaios, mas lindinho, cada cor num formato de
coraçãozinho, novinho, cheiroso. Blush da Avon. Pó compacto Marcelo Beauty,
cheiroso, pó cheiroso meu Deus. E um jogo de pincéis. Ah! E riu! Um pacotinho
de absorventes diários, sem perfume, sem perfume, claro! Uma caixinha com
chocolates da Cacau Show, e balas da Arcor. Um anel de fantasia com um lindo
cristal vermelho, enorme, escandalosamente lindo. E as balas e os chocolates
vinham envolvidos num escorregadio lenço azul celeste, azul celeste, meu Jesus!
E
uma foto recente dele, acenando.
E
um envelopinho com duzentos reais, acho que dá para comer um lanche na viagem
não dá? Comer um lanche? Com duzentos reais ela sobrevivia quatro meses.
E
uma passagem só de ida.
Uma
passagem. Só de ida.
E
uma chave.
E
no cartão, dentro, estava escrito:
Vem.
Olha, se disser que sei exatamente como te ajudar, estarei mentindo. Há muito a
ser feito, você precisa retomar sua vida praticamente do zero. Não, não sei por
onde começar a te ajudar. Talvez... talvez se você aprender uma profissão, você
é inteligente, aprende, eu tenho alguns contatos, vamos ver, tem fé e vem.
Não
sei ao certo por onde começar. Só sei que há um espaço aqui para você, para
você refletir, e descansar, e repor suas forças. Depois, depois veremos. Deus
nos ajudará.
Vem.
A chave é para o caso de eu não estar, é que eu saio muito. Se eu não estiver
você pode entrar. Deixei uma cama preparada para você, e toalhas, e lençóis, e
travesseiros, e um espaço no guarda roupas para suas coisas. E comida na
geladeira. Farei o possível para estar, mas se não estiver, volto logo. Vem.
Quatro
vezes a palavra vem, era o próprio Espírito de Deus pairando sobre o abismo que
tinha sido sua vida naqueles últimos dois anos. – Que haja luz!
O
horário da passagem era para o meio dia, havia um relógio no parque, dez horas,
a rodoviária era logo ali, havia tempo de sobra.
Sentindo-se
muito bem com suas roupas novas, perfumada, carregando sua bonita bolsa rosa e
sua enorme almofada coração pink-love, o Ursinho Puff à tiracolo olhando para um potinho de mel e
abelhas, ela passou baton sem olhar no espelho como fazia desde que se conhecia
por gente, e enrolando o bonito lenço ao pescoço porque fazia frio, ela caminhou
aprumada rumo ao início do resto de sua vida, só pensando na palavra mágica,
chave, solução, divina, gênese da sua vida:
-
Vem.
mas para mim é linda demais. é minha
Eu
devia ter uns oito ou nove anos, e o rádio ficava sobre um armário, e a gente
ouvia olhando para ele, como hoje olhamos para a televisão. Foi então que veio
a notícia: - Roberto Carlos irá defender o Brasil no Festival de Sanremo.
deu de cismar com a Erotildes e com a Sophia que trazia dentro dela
Ela
voltava da feira com dona Sophia, e ela gostava demais de companhia de mulher mais
velha, dona Sophia tinha oitenta anos. Mulher idosa sempre deixa escapar alguma
sabedoria, mas precisa investir e ter paciência, porque mulher idosa também
deixa escapar muita queixa, mas paciência ela tinha de sobra.
é Chiquitita. do Abba. e ponto
- No meu enterro eu quero que o povo cante as
“incelença”!
Era Severina, mãe de três filhos, o menor de oito, a
do meio com dez, o mais velho, doze. Ao seu lado o marido, assistindo ao
futebol, enquanto as crianças se distraiam ao computador, aquisição recente, e
para orgulho do pai, o Severino. Foi um casamento maduro, ela se casou aos trinta e cinco,
ele aos quarenta, o que não impediu a ela de dar ao marido três lindos
filhos, sua maior alegria, além da Severina, que era um mulherão da gota.
- Ôxe! Que conversa é essa mulé? Vixe! Era o marido.
O sotaque dele era de fato nordestino. O dela era
imitado. Explicamos: imitado, porque ela tinha vindo para a Capital na barriga
de Mainha, e ficou falando como eles
de ouvir a parentada. E fazia questão de conservar, para divertimento da
filharada que achava aquilo puro esnobismo da mãe.
- Ôxe! Se Caetano que é CAETÂNO, deixou Santo Amaro
da Purificação no século retrasado, e ainda fala com sutaque, porque é que eu
havera de não pudê? Me digue!
E tudo acabava em graça. Mas a do meio quis saber o
que era aquilo de incelença, e ia teclando na internet, quando o mais velho
interviu, não maninha, você precisa teclar da maneira correta:
E-x-c-e-l-ê-n-c-i-a!
- Pois tu tá errado, atalhou a mãe. Tu vai carregar
a página com um tantão de excelências, e não vai achar o costume do povo, que é
INCELENÇA mesmo.
Como é que a mãe entendia isso de internet? Até o marido
olhou meio desconfiado, mas foi de o mais velho teclar como a mãe disse e
aparecer: canções entoadas em velórios à beira do defunto, ainda em uso nas
regiões tal, tal e tal do país.
- Viste? Fez ela orgulhosa de seus saberes.
As crianças se interessaram: - conta mais, mãe. Por
mais que ela tentasse, eles não se acostumaram a chamá-la de Mainha, tão lindo
Mainha, tão doce o costume do meu povo... – Mãe, ouviu? Conta mais.
E ela, como se entendesse de um tudo que dissesse
respeito ao sertão, pôs-se a cantar uma incelença, que era uma monótona
cantilena do tipo: uma incelença, o corpo quer ir embora, duas incelença, o
corpo quer ir embora, ela não lembrava muito bem, quem tinha contado essa das
incelenças era a bisavó.
Afe mãe, fez uma careta o mais novo. Primeiro: Nunca que a
senhora vai morrer. Segundo: Nunca que a gente vai ficar nessa música triste a
noite inteira.
- Nisso tu tá mais é certo, fez a mãe, puxando de um
tantão a blusa e mostrando os peitos para o marido. Ela nunca se descuidava nem
um bocadinho, vai que uma sonsa aparece, eu heim? Era blusa decotada, mini
sainha, e de noite, calcinhas atrevidas. E o Severino babava de gosto. – Cantem,
continuou ela, mas só de um tantinho. Pra manter a tradição de nosso povo.
- Mas já vão anotando aí que eu vou deixar as
instruções do meu velório. E só por brincadeira a do meio abriu uma página do
bloco de notas e começou, fala aí mãe:
- Primeiro anotem os nãos: - Não botar em cima de
mim defunta aquele ridículo veuzinho roxo da prefeitura. Quero fúcsia.
- Fu o quê, fez o mais velho, já com cara de
malandro, e foi rápido pra escapar do tapão da mãe.
- Fúcsia é pink, seus burros, o que é que vocês
aprendem lá naquela escola, an?
- Ela está certa, disse o Severino, que tinha
algumas letras. Isso de usar palavra inglesa chama-se anglicismo.
- Êba, vou tirar um barato dos caras na lanchonete,
abaixo o hot dog, seus linguicistas! E escapou da tapona da irmã.
A do meio se irritava, vocês estão mudando o
assunto, mãe, manda aí o próximo não.
- Não quero choradeira em cima de mim. Até porque
algo me diz que eu vou morrer bem velhinha de algum acidente bem engraçado.
- Engraçado de que tipo, dá uma idéia, pediu o
menor. Mas ela não tinha nenhuma idéia. – Ah, será algo engraçado. Fulano vai
ligar pra Beltrano avisando que a Severina morreu, e quando Beltrano perguntar
de que, e Fulano responder, ficará uma vontade de rir no ar. Finalmente, no
velório, sempre aparecerá uma pessoa mais desbocada que vai escancarar a piada,
e todos vão rir à farta. Se eu vim ao mundo de um modo ridículo, é normal sair
dele assim também.
Todos já conheciam de cor e salteado a história. O voinho, que não entendia como
funcionavam as coisas na capital, vendo a mulher nos trabalhos de parto, a
internou no primeiro hospital que viu pela frente. Na hora de pagar, era muito
mais do que ele tinha trazido achando que com aquele tanto passaria o seu
primeiro ano. O diretor do hospital não quis saber de conversa: ou paga, ou
essa história acaba na delegacia de polícia. Depois amenizou: - tudo bem, a mãe
pode sair. Mas a criança fica. E foi assim que Severina nasceu. Afiançando a
dívida do pai. – já nasci afiançada, ela disse pela milionésima vez, puxando o
decote e patenteando um belo par de seios aprisionados por um sutiã preto com
babados e rendas vermelhas.
As crianças riam, embora ninguém tivesse muita
certeza de que a história era verdadeira; todos da família já tinham morrido,
mas na boca de Severina o que verdade era, verdade ficava, assim como seu
sotaque, que ela treinava era nas novelas da televisão. E com o marido, este
sim, um autêntico nordestino, e dos bons, e bota bom nisso, ela pensava, na
feira, quando encomendava, já chegou aquele conjuntinho de meia de renda com
lacinhos e corpete pretinho, já? O Severino só passava no bar pra molhar a
goela com um rabo de galo e rumava aprumado pra casa, vai que o Ricardão
descobre o caminho?
- Fala outro não, mainha, fez a do meio, sabendo que
a mãe adorava esse chamego.
- Chega de nãos, agora é só sim. Quero maquilagem,
quero ir com minha camisola vermelha bordada, camisola mãe? Que falta de
respeito, disse o mais velho.
- O defunto é meu, ela disse botando a mão no
decotaço! E todo mundo riu.
- Tá bom, camisola, que mais?
- Quero flores de crochê de seda, e não preciso nem
indicar quem faz, que todo mundo aqui já sabe.
Como não saber, se toda roupa de Mainha era bordada,
customizada, explicava a menina. Severina sempre achava que sua roupa precisava
de um brilho a mais, de um paetê a mais, de umas pérolas a mais, até nas
sapatilhas ela mandava colar enfeites e brilhozinhos.
- A Tiana! Responderam todos.
- Iiisso, fez a Mãe. Agora o detalhe, prestem muita
atenção: quero incenso, e dos bons, acentuou bem “ e dos bons” queimando o
tempo todo. E velas cor de rosa e perfumadas. E agora vem o mais importante, o
principal, a música, que vai tocar na repetença o tempo todo do meu velório.
Repetição, fez o marido. – Pois foi o que eu disse, abanou os peitos cheirosos
na cara do marido – repetição.
- Ué, o que houve com as incelenças, começou a gozar
o maridão, mas teve de fugir de um sopapo.
- Eu sei qual a música, minha flor do nordeste: -
Aceito Seu Coração, do segundo amor de sua vida, o Rei Roberto. Eles tinham
mandado tocar na hora do bolo, no casamento, bolo que ela não conseguiu nem
provar, de enjoada que estava da gravidez do mais velho.
- A nossa música, terminou o Severino, emocionado,
olho no decotão à sua espera, logo mais, na fofa cama do casal.
- Errou, disse ela. A música é Chiquitita, do Abba!
- Ham?! estranharam todos. Ninguém nunca ouviu falar
disso aí, tecla aí maninha. Achada a música, ouvida, traduzida pela ferramenta
de tradução, ninguém entendeu foi nada.
- Mas mãe, essa coisa horrível aí fala de uma pessoa
triste, que passou por decepção, que está precisando de um carinho, nada
parecido com sua vida, disse a menina, e todos apoiaram, inclusive o maridão,
que se sentiu até ofendido. Ele dava pra ela vida de princesa, uma linda casa
própria, o quarto deles com suíte, móveis afofados, cozinha resplandecente,
quartos pros meninos, carro do ano na garagem, e agora a tevê de LED a cabo com
computador, maior alegria que ele teve em comprar do melhor, o mais caro, e ela
vem com essa música de tristeza aí, ah não...
- Severina não arredou pé. A música é essa. E usou o
recurso que Cleópatra já devia ter usado ao seduzir Marco Antonio: bateu as
pestanas, balançou a cabeça para fazer barulhinho com os brincos e jogou os
cabelos para trás num leve suspiro sem explicar mais nada, deixando evidente
que uma mulher esperta, mas esperta mesmo, que quer segurar seu homem, tem de
ter sempre um segredo bem escondidinho na manga.
- É Chiquitita. Do Abba. E ponto.
nova tentativa por uns dez meses, no mínimo
Ela se levantava todos os dias às três e meia da manhã.
De início, dois quilômetros de caminhada até o trem. Em seguida, o longo percurso de trem até o centro da grande cidade. Em frente à estação ferroviária, atravessando a rua e após não pouca espera, um ônibus que faria um longo trajeto com destino a um bairro distante. Que a deixava numa avenida. Onde ela caminhava outros tantos quilômetros até chegar ao trabalho. Tudo isso teria que se encaixar num horário que a deixasse no trabalho antes das oito, porque a empresa fornecia café com leite pão com manteiga, mas pontualmente às oito essa pobre refeição era recolhida, e então era trabalhar com o estômago vazio até o meio dia, mal enganado por balas ou chicletinhos. No almoço, a empresa não disponibilizava nenhum meio de se esquentar a marmita, que era comida fria, mesmo nos dias mais frios do ano, nos vinte minutos destinados a esse fim. Ela comia em cinco, fumava um cigarro na calçada, corria para escovar os dentes, e ainda lhe sobravam alguns minutos.
Não tinha amigos. Convivia com o paradoxo de trabalhar numa profissão que lhe exigia o contato, a fala, a cortesia, o improviso, e era boa nisso tudo. Mas no trato social era tímida e reservada, portanto não sabia fazer amizades.
Operadora de telemarketing, essa era a sua profissão.
Após a exaustiva viagem de volta, ela só queria janta, banho, e dado um beijo na mãe, tomada a bênção ao pai, um rápido afago nos irmãos pequenos, e com uma boa sensação de culpa por não estar monitorando os estudos deles, só lhe restava ir dormir.
Se parasse para pensar, o que raramente fazia, tamanho era o seu cansaço, ela pensaria no absurdo que é o ato de dormir como um item de agenda, preciso dormir porque preciso acordar, o sono como sendo parte integrante e essencial do trabalho. Mesmo dormindo, portanto, ela estava à serviço da empresa.
Não pensava nisso não, esse pensamento a deixaria triste, e ela ha muito que aprendera a espantar as tristezas evitando de pensar nelas. O trabalho ajudava no sustento da mãe, do pai e dos pequenos, era o que bastava. E então era sinal da cruz e cabeça no travesseiro.
Mas aquela noite seria diferente.
Naquela noite ela ligaria para ele. Após meses criando coragem.
Por algum código de ética existente na cabeça dela, ela achava que seria deselegante ligar na hora do Jornal Nacional. Antes, nem pensar, ele poderia estar no banho, ou jantando, ou... enfim, resolveu que esperaria o Jornal acabar. Espera das mais penosas, porque os olhos estavam a clamar por palitinhos que lhe segurassem as pálpebras pesadíssimas de sono e cansaço. O telefone ao lado do travesseiro, o número anotadinho, só esperando pelo Boa Noite do casal de bacanas, que decerto também acordavam cedo, mas numa rotina bem outra.
- Boa noite! Boa noite e até amanhã!
Contou mais cinco minutinhos, para não dar a impressão que estava justamente esperando acabar o Jornal. E ligou.
Não tinha nenhum roteiro na cabeça, tinha só mesmo o sentimento de muita saudade, de muita vontade de ouvir um olá amigo, de conversar um pouquinho com alguém que lhe era importante, de dar e receber atenção. Na cabeça nada mais do que o “como vai você”, do Roberto, como texto de abertura. O resto ela imaginava que viria normalmente.
Mas...
Trabalhando de janeiro a janeiro ao telefone, ela sabia identificar de primeira se a pessoa estava de boa ou na pilha. E sentiu no tom de voz dele aquela impressão de oi fala rápido que estou fritando batatinhas. Podia ser outra coisa também, e bem diferente de batatinhas. Essa do “cliente fritando batatinhas” era uma brincadeira dos colegas do Terlemarketing. Mas definitivamente, ele estava na pilha.
Ela não era de julgar pessoas. Sabia ser o amigo ocupado, e do lado de cá é impossível saber o que se passa do lado de lá, e não é de bom tom ficar perguntando para as pessoas o que elas estão fazendo quando ligamos – você quer que eu ligue outra hora? ela perguntou diplomática. Esperou tanto por aquele momento, que não queria conversar sabendo que o amigo tinha um timer marcado para no máximo uns quatro minutos na cabeça. Mas ele era gentil, tudo bem, pode falar. Ela sentiu urgência naquele pode falar, e Deus meu, o que eu digo, eles não tinham aquele tipo de amizade que possibilitasse vários assuntos comuns, então ela caiu na bobagem de perguntar como ele estava passando de saúde. Bobagem não era, ela se interessava, sim, pela saúde dos que amava, essa pergunta não era protocolar, mas ele a respondeu como se fosse – eu estou bem ponto final. Ela sentiu que precisava encompridar: – bem, bem, mesmo, tipo, você já fez aqueles exames de praxe, colesterol, glicemia, aquela coisa de gente que está chegando na idade, gracejou? Ele cortesmente disse que sim, que estava tudo sob controle, que cuidava da saúde na base da boa alimentação, já alterando levemente a voz para uma entonação que significava: e agora, qual a próxima pergunta? (Ah, os seus anos de prática ao telefone...)
Ela então cometeu mais um erro, perguntou quando ele viria à capital, pergunta típica dos que vieram e deixaram alguém lá. E quase mordeu a língua de raiva, porque foi o trabalho de perguntar e ouvir a resposta que já conhecia, de tantos amigos e parentes que ficaram: - irei sim, irei assim que der, estou esperando resolver umas coisas, mas se Deus quiser eu vou, que bom que você ligou. Ligou. Conjugado no passado. Ela sentiu que isso arrematava a frustrante conversa. Conversa? Aquilo não foi conversa. Ela queria conversar, não fazer um check list da vida dele, isso não era nada parecido com a sua expectativa de um bom papo, razão pela qual atalhou rapidinho com um vou desligar, desculpe ter tomado seu tempo, imagina, um beijo querida, liga sempre. E ficou aguardando para ouvir o pam do aparelho. Até o pam do aparelho foi na pilha, bom, aí já era exagero, pam é pam.
Ela virou para o lado e adormeceu antes de bater com a cabeça no travesseiro. Foi só no dia seguinte, ao ligar para o primeiro cliente, oito em ponto, incomodando algum coitado, fazer o que, eram ordens, que se lembrou do insucesso da sua ligação. Não era o caso de ter ficado magoada com ele, essas coisas acontecem. E após fumar o seu único cigarro do dia, já enfiando a bituca na caixinha de areia, e já com a enorme saudade reforçada e um aperto na garganta concluiu: era o caso sim de saber que a sua timidez quase patológica impediria que ela fizesse nova tentativa por uns dez meses, no mínimo.
para colocar seus bichinhos e as fotinhos dos seus filhotes
Ela era faxineira noturna, num escritório enjoado. Não sabia o porquê dessa idéia que lhe vinha à cabeça, escritório enjoado, ou sabia sim, era por conta das funcionárias enjoadas que sempre mandavam recadinho. – Tinha pó na minha mesa ontem. – Aquele banheiro está um nojo!...
Cretinas. Nenhuma delas teria dinheiro pra ter empregada em suas casas, fácil ficar dando ordens para os empregados dos outros.
Quem falava assim não era ela não, era dona Myrtha, Myrtha com ypicilone e com agá, tá meninas? Era a chefe das faxineiras, bacaninha ela. Não ligava pra nada não. Tudo o que queria era ficar em paz tomando o seu querozene, era assim que ela chamava a sua pinga. Querozene. Ela achava engraçado. Enquanto todas tiravam das bolsinhas danoninho, suquinho, garrafa térmica com café, dona Myrtha tirava uma garrafa de goró. E ficava de boa, bebendo, lendo jornal, e de olho na sua televisãozinha.
Elas chegavam e trabalhavam rápido, era um acordo entre elas. Limpeza de escritório é baba. Era só tirar o pozinho das mesas das chatas, nas dos rapazes só passar um pano apressado, elas sabiam de quem era a mesa de quem, até porque mesa de enjoada sempre tem fotinhos de crianças chatas, e bichinhos, e fofurices. Mesa de homem só tem bagunça, e nas gavetas, revista de mulher pelada. E depois, era jogar litros e litros de desinfetantes nas privadas, porque as enjoadas só queriam isso mesmo, sentir o cheirinho de limpeza as bobas, e não seriam elas que iriam ficar enfiando as mãos nos vasos pra limpar de verdade.
Um capricho melhor no banheiro da secretária, o que tinha uma poltroninha. Todas sabiam a serventia da poltroninha, era ali que ela dava pro chefe, pessoal, eu deixo uma poltroninha aqui para colocar minhas bolsas e coisas, ok? Era a copeira que contava antes de ir embora. Pois sim. Ali o amorzinho rolava solto. E um capricho maior na sala do chefe, que tinha um tapetão fofo onde o amorzinho também rolava, e uma mesa com tampo de vidro sem nenhum papel em cima, porque o chefe não fazia nada, só fazia em cima da secretária, e a julgar pela cara de nojo da secretária, não devia fazer lá muito bem não.
Feito isso elas tinham tempo de sobra pra não fazer nada. Fumavam. Batiam papo encostadas na parede sentadas no carpete. Liam horóscopo, revistas de novela, discutiam novela, vidas de artistas e big brother. Faziam cruzadinhas enquanto papeavam. Umas dormiam, sono solto, e tinha até quem puxasse um fuminho. Dona Myrtha só não queria que deixassem cheiro. Então era um tal de descascar mexerica pra tirar o cheiro do bagulho, mas depois ficava o cheiro da mexerica que elas tiravam com Bom Ar. E ficava aquele cheiro bom de bagulho com mexerica e flores do campo por todo o escritório.
Tinha uma lá que fazia faculdade de dia, pagava com o serviço da noite, ela ficava se perguntando quando que a coitadinha descansava. Foi ela que descobriu como ligar os computadores, aí foi só festa. Todas aprenderam a fazer MSN, Orkut, Face Book, tiravam fotos umas das outras no celular e iam fazendo a alegria. Muitas ficavam teclando com seus casos ou com outras colegas, filhos e parentes de outras cidades. Felicidade total.
Foi ela também, a universitária, que entrou no computador do chefe. Tinha lá um quadradinho amarelo, ela falou que chamava pasta, escrito: Relatórios de Diretoria. Abriu não deu outra, cheinho de fotos pornô. Coisa de arrepiar. Ela nunca que tinha visto aquilo. E foi uma gargalhada só, o mulherio não se aguentava. Chamaram a dona Myrtha. Dona Myrtha não era tão mais velha que as demais, tinha seus trinta e oito, mas ela achava que a chamavam de dona porque ela tinha aquele corpanzil de mulherona, panção, peitão. - Dona Myrtha, corre ver isso. Isso era uma mina caindo de boca num pimpão, dona Myrtha tinha ficado viúva bem mocinha. E as gozações choveram, lembra, dona Myrtha? Tinha esquecido né? Então, é assim que é o bilau! Ou no seu tempo era menorzinho?
Dona Myrtha riu tanto, mas tanto, que vieram lágrimas. Tanta lágrima, mas tanta lágrima, que de repente as meninas deram de suspeitar que já não eram lágrimas de riso, era choro mesmo. E ela então voltou pro seu goró, mas meio murchinha...
E assim terminava mais um dia, melhor dizendo, mais uma noite de trabalho. Na manhã seguinte chegariam o chefe, a comidinha dele, as demais enjoadas e os caras folgados, e o escritório na certa voltaria a ser chato.
Mas ela morria de vontade de arrumar um emprego assim, de usar roupa de modinha e não uniforme azul de limpeza, e ter sua mesa com computador e telefone, para colocar seus bichinhos e as fotinhos dos seus filhotes.
Cretinas. Nenhuma delas teria dinheiro pra ter empregada em suas casas, fácil ficar dando ordens para os empregados dos outros.
Quem falava assim não era ela não, era dona Myrtha, Myrtha com ypicilone e com agá, tá meninas? Era a chefe das faxineiras, bacaninha ela. Não ligava pra nada não. Tudo o que queria era ficar em paz tomando o seu querozene, era assim que ela chamava a sua pinga. Querozene. Ela achava engraçado. Enquanto todas tiravam das bolsinhas danoninho, suquinho, garrafa térmica com café, dona Myrtha tirava uma garrafa de goró. E ficava de boa, bebendo, lendo jornal, e de olho na sua televisãozinha.
Elas chegavam e trabalhavam rápido, era um acordo entre elas. Limpeza de escritório é baba. Era só tirar o pozinho das mesas das chatas, nas dos rapazes só passar um pano apressado, elas sabiam de quem era a mesa de quem, até porque mesa de enjoada sempre tem fotinhos de crianças chatas, e bichinhos, e fofurices. Mesa de homem só tem bagunça, e nas gavetas, revista de mulher pelada. E depois, era jogar litros e litros de desinfetantes nas privadas, porque as enjoadas só queriam isso mesmo, sentir o cheirinho de limpeza as bobas, e não seriam elas que iriam ficar enfiando as mãos nos vasos pra limpar de verdade.
Um capricho melhor no banheiro da secretária, o que tinha uma poltroninha. Todas sabiam a serventia da poltroninha, era ali que ela dava pro chefe, pessoal, eu deixo uma poltroninha aqui para colocar minhas bolsas e coisas, ok? Era a copeira que contava antes de ir embora. Pois sim. Ali o amorzinho rolava solto. E um capricho maior na sala do chefe, que tinha um tapetão fofo onde o amorzinho também rolava, e uma mesa com tampo de vidro sem nenhum papel em cima, porque o chefe não fazia nada, só fazia em cima da secretária, e a julgar pela cara de nojo da secretária, não devia fazer lá muito bem não.
Feito isso elas tinham tempo de sobra pra não fazer nada. Fumavam. Batiam papo encostadas na parede sentadas no carpete. Liam horóscopo, revistas de novela, discutiam novela, vidas de artistas e big brother. Faziam cruzadinhas enquanto papeavam. Umas dormiam, sono solto, e tinha até quem puxasse um fuminho. Dona Myrtha só não queria que deixassem cheiro. Então era um tal de descascar mexerica pra tirar o cheiro do bagulho, mas depois ficava o cheiro da mexerica que elas tiravam com Bom Ar. E ficava aquele cheiro bom de bagulho com mexerica e flores do campo por todo o escritório.
Tinha uma lá que fazia faculdade de dia, pagava com o serviço da noite, ela ficava se perguntando quando que a coitadinha descansava. Foi ela que descobriu como ligar os computadores, aí foi só festa. Todas aprenderam a fazer MSN, Orkut, Face Book, tiravam fotos umas das outras no celular e iam fazendo a alegria. Muitas ficavam teclando com seus casos ou com outras colegas, filhos e parentes de outras cidades. Felicidade total.
Foi ela também, a universitária, que entrou no computador do chefe. Tinha lá um quadradinho amarelo, ela falou que chamava pasta, escrito: Relatórios de Diretoria. Abriu não deu outra, cheinho de fotos pornô. Coisa de arrepiar. Ela nunca que tinha visto aquilo. E foi uma gargalhada só, o mulherio não se aguentava. Chamaram a dona Myrtha. Dona Myrtha não era tão mais velha que as demais, tinha seus trinta e oito, mas ela achava que a chamavam de dona porque ela tinha aquele corpanzil de mulherona, panção, peitão. - Dona Myrtha, corre ver isso. Isso era uma mina caindo de boca num pimpão, dona Myrtha tinha ficado viúva bem mocinha. E as gozações choveram, lembra, dona Myrtha? Tinha esquecido né? Então, é assim que é o bilau! Ou no seu tempo era menorzinho?
Dona Myrtha riu tanto, mas tanto, que vieram lágrimas. Tanta lágrima, mas tanta lágrima, que de repente as meninas deram de suspeitar que já não eram lágrimas de riso, era choro mesmo. E ela então voltou pro seu goró, mas meio murchinha...
E assim terminava mais um dia, melhor dizendo, mais uma noite de trabalho. Na manhã seguinte chegariam o chefe, a comidinha dele, as demais enjoadas e os caras folgados, e o escritório na certa voltaria a ser chato.
Mas ela morria de vontade de arrumar um emprego assim, de usar roupa de modinha e não uniforme azul de limpeza, e ter sua mesa com computador e telefone, para colocar seus bichinhos e as fotinhos dos seus filhotes.
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