deu de cismar com a Erotildes e com a Sophia que trazia dentro dela


Ela voltava da feira com dona Sophia, e ela gostava demais de companhia de mulher mais velha, dona Sophia tinha oitenta anos. Mulher idosa sempre deixa escapar alguma sabedoria, mas precisa investir e ter paciência, porque mulher idosa também deixa escapar muita queixa, mas paciência ela tinha de sobra.

 A subida era punk, então elas iam parando de tempo em tempo para recobrar força, enquanto dona Sophia se queixava, e a queixa do dia era que a pobre tinha um bisneto na cadeia, e sem dinheiro para o advogado, o menino decerto mofaria lá.

 - Ah, mas eu tenho fé em Nossa Senhora, diz a idosa. A Virgem que tanto padeceu neste mundo há de rogar por mim ao Nosso Senhor, por minha fé que isso não fica assim...

 Ela aproveitou a pausa e disse sim, claro, também vou rezar, e no mesmo instante as duas olharam para o céu, um céu azul como o manto de Nossa Senhora e afofado de carneirinhos.

 Foi então que ela viu, mas nunca diria pra dona Sophia, tinha respeito, mas não é que ela viu direitinho?

 - Olha lá, pensou ela, ali, um pimpão! E acolá, mais abaixo, não é que era um par de pernas abertas de mulher, direitinho? Uia!

 Quis demais que a Erotildes estivesse com ela, as duas ririam à farta, mas não quis perder o desenho, dona Sophia olha ali, o céu?

 Dona Sophia botou a mãozinha em pala sobre as rugas fundas dos olhinhos claros e disse filha! É uma resposta de Maria, olha lá, e enxugou uma lagriminha no canto do olho. – Olha a cruz de Nosso Senhor. E ali mais pra baixo, veja, um M, eme de Mãe, de Maria! E fez o sinal da cruz, e beijou o escapulário, ah, filha, é o sinal, minha santa mãezinha irá me valer.

 Era o final da subida onde elas se separavam, a boa anciã fez um aceno e seguiu pressurosa, puxando seu pesado carrinho de feira.

 E ela procurando as chaves na bolsinha e entrando no quintal viu que sim, tinha ventado, e não é que o pimpão tinha mesmo virado uma cruz?

 E ficou ali no quintalzinho olhando para o seu quadrado de céu enquanto o riscado se desfazia e deu de falar não com mãe Maria, mas com São Pedro, com quem nunca tinha ido muito com a cara, primeiro por negar ao Nosso Senhor três vezes, e segundo por trancar o paraíso com uma chave, onde é que já se viu?

 - Tá vendo ô Pedrão? Mandou recado de mau gosto pra mim no céu, Maria acudiu, cruz credo, e fez o pelo-sinal três vezes. Fala assim não, pensou, mãe Maria pode não gostar, mas não resistiu e arrematou já que tinha iniciado no pecado: E tem mais ó São Pedro: Ela é que é a rainha do céu, não o Senhor, e com ela não tem essa de trancar nada a chave não.

 E parou sua discussão com Pedro por aí, tinha pendências no colo da Virgem, melhor não causar mais.

 Mas continuou irritada, ora, mandasse um casal se abraçando como o que a filha tinha lhe mostrado no computador, mas acabou lembrando que cada um interpreta as nuvens pelo seu próprio coração, claro né, ô dêêêr! mas aí a briga já era com ela mesma, cada bobagem que me passa pela lata, afe! 

 E enquanto enchia a geladeira com as compras se resolveu: – bobagem minha, ele é santo, deve estar careca de saber disso, deve mandar os seus recados por atacado, e de repente também não é sinal nenhum, é só nuvem, é só vento.

 Mas pelo resto do dia deu de cismar com a Erotildes e com a Sophia que trazia dentro dela.