nova tentativa por uns dez meses, no mínimo


Ela se levantava todos os dias às três e meia da manhã.

De início, dois quilômetros de caminhada até o trem. Em seguida, o longo percurso de trem até o centro da grande cidade. Em frente à estação ferroviária, atravessando a rua e após não pouca espera, um ônibus que faria um longo trajeto com destino a um bairro distante. Que a deixava numa avenida. Onde ela caminhava outros tantos quilômetros até chegar ao trabalho. Tudo isso teria que se encaixar num horário que a deixasse no trabalho antes das oito, porque a empresa fornecia café com leite pão com manteiga, mas pontualmente às oito essa pobre refeição era recolhida, e então era trabalhar com o estômago vazio até o meio dia, mal enganado por balas ou chicletinhos. No almoço, a empresa não disponibilizava nenhum meio de se esquentar a marmita, que era comida fria, mesmo nos dias mais frios do ano, nos vinte minutos destinados a esse fim. Ela comia em cinco, fumava um cigarro na calçada, corria para escovar os dentes, e ainda lhe sobravam alguns minutos.

Não tinha amigos. Convivia com o paradoxo de trabalhar numa profissão que lhe exigia o contato, a fala, a cortesia, o improviso, e era boa nisso tudo. Mas no trato social era tímida e reservada, portanto não sabia fazer amizades.

Operadora de telemarketing, essa era a sua profissão.

Após a exaustiva viagem de volta, ela só queria janta, banho, e dado um beijo na mãe, tomada a bênção ao pai, um rápido afago nos irmãos pequenos, e com uma boa sensação de culpa por não estar monitorando os estudos deles, só lhe restava ir dormir.

Se parasse para pensar, o que raramente fazia, tamanho era o seu cansaço, ela pensaria no absurdo que é o ato de dormir como um item de agenda, preciso dormir porque preciso acordar, o sono como sendo parte integrante e essencial do trabalho. Mesmo dormindo, portanto, ela estava à serviço da empresa.

Não pensava nisso não, esse pensamento a deixaria triste, e ela ha muito que aprendera a espantar as tristezas evitando de pensar nelas. O trabalho ajudava no sustento da mãe, do pai e dos pequenos, era o que bastava. E então era sinal da cruz e cabeça no travesseiro.

Mas aquela noite seria diferente.

Naquela noite ela ligaria para ele. Após meses criando coragem.

Por algum código de ética existente na cabeça dela, ela achava que seria deselegante ligar na hora do Jornal Nacional. Antes, nem pensar, ele poderia estar no banho, ou jantando, ou... enfim, resolveu que esperaria o Jornal acabar. Espera das mais penosas, porque os olhos estavam a clamar por palitinhos que lhe segurassem as pálpebras pesadíssimas de sono e cansaço. O telefone ao lado do travesseiro, o número anotadinho, só esperando pelo Boa Noite do casal de bacanas, que decerto também acordavam cedo, mas numa rotina bem outra.

- Boa noite! Boa noite e até amanhã!

Contou mais cinco minutinhos, para não dar a impressão que estava justamente esperando acabar o Jornal. E ligou.

Não tinha nenhum roteiro na cabeça, tinha só mesmo o sentimento de muita saudade, de muita vontade de ouvir um olá amigo, de conversar um pouquinho com alguém que lhe era importante, de dar e receber atenção. Na cabeça nada mais do que o “como vai você”, do Roberto, como texto de abertura. O resto ela imaginava que viria normalmente.

Mas...

Trabalhando de janeiro a janeiro ao telefone, ela sabia identificar de primeira se a pessoa estava de boa ou na pilha. E sentiu no tom de voz dele aquela impressão de oi fala rápido que estou fritando batatinhas. Podia ser outra coisa também, e bem diferente de batatinhas. Essa do “cliente fritando batatinhas” era uma brincadeira dos colegas do Terlemarketing. Mas definitivamente, ele estava na pilha.

Ela não era de julgar pessoas. Sabia ser o amigo ocupado, e do lado de cá é impossível saber o que se passa do lado de lá, e não é de bom tom ficar perguntando para as pessoas o que elas estão fazendo quando ligamos – você quer que eu ligue outra hora? ela perguntou diplomática. Esperou tanto por aquele momento, que não queria conversar sabendo que o amigo tinha um timer marcado para no máximo uns quatro minutos na cabeça. Mas ele era gentil, tudo bem, pode falar. Ela sentiu urgência naquele pode falar, e Deus meu, o que eu digo, eles não tinham aquele tipo de amizade que possibilitasse vários assuntos comuns, então ela caiu na bobagem de perguntar como ele estava passando de saúde. Bobagem não era, ela se interessava, sim, pela saúde dos que amava, essa pergunta não era protocolar, mas ele a respondeu como se fosse – eu estou bem ponto final. Ela sentiu que precisava encompridar: – bem, bem, mesmo, tipo, você já fez aqueles exames de praxe, colesterol, glicemia, aquela coisa de gente que está chegando na idade, gracejou? Ele cortesmente disse que sim, que estava tudo sob controle, que cuidava da saúde na base da boa alimentação, já alterando levemente a voz para uma entonação que significava: e agora, qual a próxima pergunta? (Ah, os seus anos de prática ao telefone...)

Ela então cometeu mais um erro, perguntou quando ele viria à capital, pergunta típica dos que vieram e deixaram alguém lá. E quase mordeu a língua de raiva, porque foi o trabalho de perguntar e ouvir a resposta que já conhecia, de tantos amigos e parentes que ficaram: - irei sim, irei assim que der, estou esperando resolver umas coisas, mas se Deus quiser eu vou, que bom que você ligou. Ligou. Conjugado no passado. Ela sentiu que isso arrematava a frustrante conversa. Conversa? Aquilo não foi conversa. Ela queria conversar, não fazer um check list da vida dele, isso não era nada parecido com a sua expectativa de um bom papo, razão pela qual atalhou rapidinho com um vou desligar, desculpe ter tomado seu tempo, imagina, um beijo querida, liga sempre. E ficou aguardando para ouvir o pam do aparelho. Até o pam do aparelho foi na pilha, bom, aí já era exagero, pam é pam.

Ela virou para o lado e adormeceu antes de bater com a cabeça no travesseiro. Foi só no dia seguinte, ao ligar para o primeiro cliente, oito em ponto, incomodando algum coitado, fazer o que, eram ordens, que se lembrou do insucesso da sua ligação. Não era o caso de ter ficado magoada com ele, essas coisas acontecem. E após fumar o seu único cigarro do dia, já enfiando a bituca na caixinha de areia, e já com a enorme saudade reforçada e um aperto na garganta concluiu: era o caso sim de saber que a sua timidez quase patológica impediria que ela fizesse nova tentativa por uns dez meses, no mínimo.