nem existia ponte alguma


Um leve sopro e todas as pontes caíram.Nem que eu queira eu consigo retornar. O desamparo é absoluto, a dor é real. Você esfarelou no vento.

Não há mais nada que eu possa fazer, pensando bem nunca houve. Mas o meu frágil conforto era pensar que havia.

Os caminhos se estendem em leque a minha frente. Mas eu não sinto desejo de tomar nenhum. Desisto de viver, pois não desisti de você?

Tenho apenas um retrato pra mirar, sempre, até que se gastem: o retrato, ou meus olhos, ou minha vontade de viver, ou tudo junto.

(Vai ver que nem existia ponte alguma).

chato, entediante e insosso momento de normalidade


Meninas, onde há por aqui um salão com manicures boas e rápidas, era eu perguntando às colegas do novo emprego, toda mulher um dia já fez ou fará essa pergunta. Aqui perto há um, fica logo ali, assim assim, me explicaram. Todas as moças são boas, alertaram, só não vai com a dona Amelinha, por que, porque ela é lerda e meio lesada das ideias, oi boa tarde, a dona Amelinha está livre pra fazer minha unha?

Claro que eu não iria perder a oportunidade sempre divertida de conhecer uma manicure lesada. Não gosto da palavra lesada, mas que é engraçada é. Mas escolhi uma lesada porque de normal e sem graça já bastava eu, uma secretária fazendo uma chata faculdade de Letras, trabalhando num escritório besta, enfiada, melhor dizendo, conformada, a um apertado uniforme cinza com echarpe bege, horrendo.

Todas as moças do salão levantaram a cabeça, achando que eu sim era a lesada do dia, e lá fui eu, ao lugar indicado, para ser atendida pela dona Amelinha.

Sim, ela era lenta. E desajeitada, e mal vestida, deveria ter a mesma idade de minha mãe, uns quarenta e cinco anos, mas aparentava dez anos mais, a pobre. Usava óculos de um arame grosso, que eu pensava não existirem mais. E os óculos viviam escorregando, pesadões, sobre seu nariz oleoso, e que ela ia empurrando de cinco em cinco minutos. De cinco em cinco minutos sim, eu marquei.

Não dá vontade de arrancar os óculos da cara da criatura, pegar um alicatezinho, apertar, depois limpar aquele rosto oleoso com um lencinho apropriado, entendem, consertar a pessoa? Era o que dona Amelinha inspirava. A necessidade de um conserto urgente.

Parêntesis. Falando em conserto pensei em concerto, e lembrei de uma cena em que o Mozart do filme Amadeus, de Milos Forman, compunha uma obra em pé, sobre uma mesa de bilhar ou sei lá eu que jogo da época, jogando uma bolinha que batia, quicava e voltava para ele, que apanhava a bolinha e repetia o gesto enquanto compunha, imperturbável. Quem se perturba é justamente gente como nós, os normais, que sente vontade de entrar dentro do filme e arrancar a bolinha das mãos dele, me dá essa porra dessa bolinha, você está compondo, cara! Cara, você é o Mozart! e está compondo! só pra você se enquadrar na real. Que cara mais sem noção...

Fecho esse parêntesis filosófico, porque talvez dona Amelinha aparentava nem sentir que empurrava os óculos, imperturbável como um Mozart, talvez ela fosse um gênio como ele, gostei de você vou fazer em você a melhor unha que já fiz, ham?

Não, não falei o ham, mas olhei para ela divertida, isso não se fala dona Amelinha, imagine um cardiologista: gostei de você, vou operar direitinho seu coração. Um dentista: fui com a sua cara, vou aplicar anestesia direitinho em você...

Claro que não disse nada, explicar isso pra dona Amelinha tiraria justamente a graça da coisa, e não é que ela fez mesmo? Após tirar minhas cutículas com a suavidade de uma fada, repuxou a pele de cada um dos meus dedos, e cuidadosamente fez uma nova e suave retirada, eu não imaginava que tinha tanta cutícula por baixo daquela primeira, até aprendi a técnica, minhas unhas dando aquela impressão de que tinham nascido sem cutícula na casa de Irene o chão está sempre encerado.

Dessa vez eu fiz o – ham? Aquela frase vinha tão descontextualizada mesmo para uma dona Amelinha, que retirei delicadamente minha mão pra demonstrar que não tinha entendido.

Ela retomou minha mão e me contou que havia uma casa de tolerância, aquilo que nós conhecemos como puteiro, de uma tal dona Irene, onde havia muita alegria, as pessoas entravam e saiam dia e noite, muito mais à noite, e nesse entrar e sair, e nesse dançar e rir, dona Irene não tinha preocupação em lustrar o chão, porque o chão da casa dela era sempre lustro.

Sim, ela disse lustro. Era lesada, mas tinha preocupação em falar corretamente, errado no caso. Talvez pensasse que era errado falar lustrado, aquela coisa lesada de se falar errado achando que é o certo, que todo mundo um dia já fez, mas que nela ficava engraçado.

Mas naquela altura eu já deixava de ficar divertida para ficar matutando, minha Nossa Senhora, que mecanismos de associação essa boa mulher fez para ligar a minha pessoa, uma secretária conformada a um traje cinza-bege-horrendo, a uma senhora dona de uma casa de tolerância, ou seja, uma puta proxeneta, e mais, a essa história estranha de uma mulher que tem o chão sempre lustro?

Nem quis perguntar, porque perguntando eu tirava a graça da coisa toda em si.

E até o final da manicure ela foi dando detalhes, ou melhor, repetindo os mesmos detalhes, de gente que entrava, saia, cantava, ria, dançava e que com todas essas passadas deixavam o chão sempre lustro; dona Irene nunca tinha preocupação em encerar e lustrar o chão, porque na casa de Irene o chão vivia sempre encerado.

Em casa mamãe me contou que havia uma letra de música, italiana, falando da tal casa de Irene, uma casa de gente que entra e sai, rindo, dançando noite adentro, achamos a música na internet, ouvimos, até gostei. Mas nem mamãe conseguiu entender qual foi a associação que passou pela cabeça da dona Amelinha, será que debaixo daquela desajeitada pessoinha havia uma dama da noite querendo sair? Rimos muito mamãe e eu.

Escolhe qualquer esmalte eu disse, para agradá-la, se a gente quer agradar uma manicure é deixar a escolha do esmalte por conta dela. Dona Amelinha levou uma eternidade procurando em sua maleta, e vira que revira, para vir de lá com um rendinha tão fininho e delicado, que certamente teria desagradado dona Irene. Deixou minhas unhas lindas como se fossem de porcelana pega aqui no meu bolsinho o dinheiro, dona Amelinha? E esse trocadinho é para a senhora. Ela me agradeceu muito. Demoramos nisso tudo uma hora e vinte minutos, detalhe, uma manicure esperta faz uma mão em no máximo quarenta minutos, exagerando.

Não, não voltei mais lá. Não poderia me dar ao luxo de perder aquele tempo todo. Não gostaria também de pedir outra moça e preterir dona Amelinha. Mas o mais importante – não gostaria de pedir pela dona Amelinha e ter a decepção de encontrar uma dona Amelinha esquecida de que existe uma casa alegre como a casa de dona Irene, de encontrar dona Amelinha em algum chato, entediante e insosso momento de normalidade.