Meninas,
onde há por aqui um salão com manicures boas e rápidas, era eu perguntando às
colegas do novo emprego, toda mulher um dia já fez ou fará essa pergunta. Aqui perto
há um, fica logo ali, assim assim, me explicaram. Todas as moças são boas, alertaram,
só não vai com a dona Amelinha, por que, porque ela é lerda e meio lesada das ideias,
oi boa tarde, a dona Amelinha está livre pra fazer minha unha?
Claro
que eu não iria perder a oportunidade sempre divertida de conhecer uma manicure
lesada. Não gosto da palavra lesada, mas que é engraçada é. Mas escolhi uma
lesada porque de normal e sem graça já bastava eu, uma secretária fazendo uma chata
faculdade de Letras, trabalhando num escritório besta, enfiada, melhor dizendo,
conformada, a um apertado uniforme cinza com echarpe bege, horrendo.
Todas
as moças do salão levantaram a cabeça, achando que eu sim era a lesada do dia,
e lá fui eu, ao lugar indicado, para ser atendida pela dona Amelinha.
Sim,
ela era lenta. E desajeitada, e mal vestida, deveria ter a mesma idade de minha
mãe, uns quarenta e cinco anos, mas aparentava dez anos mais, a pobre. Usava óculos
de um arame grosso, que eu pensava não existirem mais. E os óculos viviam escorregando,
pesadões, sobre seu nariz oleoso, e que ela ia empurrando de cinco em cinco
minutos. De cinco em cinco minutos sim, eu marquei.
Não
dá vontade de arrancar os óculos da cara da criatura, pegar um alicatezinho,
apertar, depois limpar aquele rosto oleoso com um lencinho apropriado,
entendem, consertar a pessoa? Era o que dona Amelinha inspirava. A necessidade
de um conserto urgente.
Parêntesis.
Falando em conserto pensei em concerto, e lembrei de uma cena em que o Mozart
do filme Amadeus, de Milos Forman, compunha uma obra em pé, sobre uma mesa de bilhar
ou sei lá eu que jogo da época, jogando uma bolinha que batia, quicava e
voltava para ele, que apanhava a bolinha e repetia o gesto enquanto compunha,
imperturbável. Quem se perturba é justamente gente como nós, os normais, que
sente vontade de entrar dentro do filme e arrancar a bolinha das mãos dele, me
dá essa porra dessa bolinha, você está compondo, cara! Cara, você é o Mozart! e
está compondo! só pra você se enquadrar na real. Que cara mais sem noção...
Fecho
esse parêntesis filosófico, porque talvez dona Amelinha aparentava nem sentir
que empurrava os óculos, imperturbável como um Mozart, talvez ela fosse um
gênio como ele, gostei de você vou fazer em você a melhor unha que já fiz, ham?
Não,
não falei o ham, mas olhei para ela divertida, isso não se fala dona Amelinha,
imagine um cardiologista: gostei de você, vou operar direitinho seu coração. Um
dentista: fui com a sua cara, vou aplicar anestesia direitinho em você...
Claro
que não disse nada, explicar isso pra dona Amelinha tiraria justamente a graça
da coisa, e não é que ela fez mesmo? Após tirar minhas cutículas com a
suavidade de uma fada, repuxou a pele de cada um dos meus dedos, e cuidadosamente
fez uma nova e suave retirada, eu não imaginava que tinha tanta cutícula por
baixo daquela primeira, até aprendi a técnica, minhas unhas dando aquela
impressão de que tinham nascido sem cutícula na casa de Irene o chão está
sempre encerado.
Dessa
vez eu fiz o – ham? Aquela frase vinha tão descontextualizada mesmo para uma
dona Amelinha, que retirei delicadamente minha mão pra demonstrar que não tinha
entendido.
Ela
retomou minha mão e me contou que havia uma casa de tolerância, aquilo que nós
conhecemos como puteiro, de uma tal dona Irene, onde havia muita alegria, as
pessoas entravam e saiam dia e noite, muito mais à noite, e nesse entrar e
sair, e nesse dançar e rir, dona Irene não tinha preocupação em lustrar o chão,
porque o chão da casa dela era sempre lustro.
Sim,
ela disse lustro. Era lesada, mas tinha preocupação em falar corretamente,
errado no caso. Talvez pensasse que era errado falar lustrado, aquela coisa
lesada de se falar errado achando que é o certo, que todo mundo um dia já fez,
mas que nela ficava engraçado.
Mas
naquela altura eu já deixava de ficar divertida para ficar matutando, minha
Nossa Senhora, que mecanismos de associação essa boa mulher fez para ligar a
minha pessoa, uma secretária conformada a um traje cinza-bege-horrendo, a uma
senhora dona de uma casa de tolerância, ou seja, uma puta proxeneta, e mais, a
essa história estranha de uma mulher que tem o chão sempre lustro?
Nem
quis perguntar, porque perguntando eu tirava a graça da coisa toda em si.
E
até o final da manicure ela foi dando detalhes, ou melhor, repetindo os mesmos
detalhes, de gente que entrava, saia, cantava, ria, dançava e que com todas
essas passadas deixavam o chão sempre lustro; dona Irene nunca tinha
preocupação em encerar e lustrar o chão, porque na casa de Irene o chão vivia
sempre encerado.
Em
casa mamãe me contou que havia uma letra de música, italiana, falando da tal
casa de Irene, uma casa de gente que entra e sai, rindo, dançando noite
adentro, achamos a música na internet, ouvimos, até gostei. Mas nem mamãe
conseguiu entender qual foi a associação que passou pela cabeça da dona Amelinha,
será que debaixo daquela desajeitada pessoinha havia uma dama da noite querendo
sair? Rimos muito mamãe e eu.
Escolhe
qualquer esmalte eu disse, para agradá-la, se a gente quer agradar uma manicure
é deixar a escolha do esmalte por conta dela. Dona Amelinha levou uma
eternidade procurando em sua maleta, e vira que revira, para vir de lá com um
rendinha tão fininho e delicado, que certamente teria desagradado dona Irene. Deixou
minhas unhas lindas como se fossem de porcelana pega aqui no meu bolsinho o
dinheiro, dona Amelinha? E esse trocadinho é para a senhora. Ela me agradeceu
muito. Demoramos nisso tudo uma hora e vinte minutos, detalhe, uma manicure
esperta faz uma mão em no máximo quarenta minutos, exagerando.
Não,
não voltei mais lá. Não poderia me dar ao luxo de perder aquele tempo todo. Não
gostaria também de pedir outra moça e preterir dona Amelinha. Mas o mais
importante – não gostaria de pedir pela dona Amelinha e ter a decepção de
encontrar uma dona Amelinha esquecida de que existe uma casa alegre como a casa
de dona Irene, de encontrar dona Amelinha em algum chato, entediante e insosso
momento de normalidade.