outra criança para acalmar e fazer adormecer na noite escura



Malu, a vaca voadora. Era chamada nas noites em que o sono não vinha. A brincadeira começou quando ela era pequena. Morava num ermo, numa rua sem asfalto, rua de terra como se chamava naqueles tempos, poucas casas, muito mato, árvores secas – arbustos – ela sabe hoje, mas que para sua visão de infância eram árvores, e feias. Ao longe, hoje nem seria tão longe assim, a linha do trem. Adiante, uma olaria que lhe enchia de medo, aquela construção disforme de tijolos escuros com sua fornalha sinistra, cercada de mato e céu, e vacas pastando nos matos, muitas vacas, daí ela conhecer vacas. Malu, porém, não era uma vaca de verdade, e sim uma vaca desenhinho, que ela conhecia das revistinhas. Aquela carinha de gente típica dos bichinhos de desenhos, olhinhos contentes, cílios curvadinhos, sobrancelhinhas arqueadas, tetas bojudas, uma vaquinha feliz. E voadora, mas sem asas. Na verdade ela não voava, ela pairava. Era só o sono não vir, que Malu era convocada. Bastava colocar Malu na paisagem noturna, com sua linha de trem lá longe no infinito escuro, matagal assustador, fornalhas ameaçadoras, que seu mundo se ajustava, o sono vinha.

Pai bebia e brigava com mãe, que brigava com pai, isso assustava a menina e afugentava o sono, então papai do céu era invocado para fazer pai e mãe pararem de brigar. Como papai do céu não era muito dado a fazer a parte dele, Malu era chamada, e com ela o mundo, como dissemos, se ajustava, Malu pairava sobre a paisagem de sua infância, o sono harmonizador vinha, já que os pais não se harmonizaram nunca. Com o tempo ela parou de chamar papai do céu, ficou só com a vaquinha voadora.

Ela cresceu, mas continuou levando Malu consigo. Do mesmo jeitinho, e sempre funcionando maravilhosamente bem. Era muito utilizada em suas viagens noturnas a Belo Horizonte, principalmente nos trechos mais perigosos da estrada, quando o que afugentava o sono era o medo de o ônibus cair nos barrancos. Nessas horas, Malu pairava no céu tranquilamente ao longo da rodovia, na certa pastando os seus medos de menina e de adulta, porque ela só acordava na rodoviária, Malu já esquecida, guardada com seus demais pertences de criança em sua bagagem de adulta.

Ela entendeu muito pequena que sua infância estava sendo roubada, e que era necessário ter um espaço para brincar, ou melhor, entender ela não entendeu, não conscientemente, talvez seu anjo da guarda tenha lhe soprado o formato da brincadeira, talvez tenha sido a única forma que papai do céu encontrou para entrar naquele mundo escuro de criança assustada, e ela então criou personagens, criou um cantinho de brincar no único lugar do mundo em que a deixavam em paz, em sua mente, e os personagens atuavam como numa historinha que ela dirigia como diretor de filme. Malu, porém, era a personagem principal. Adulta, ela guardou a vaca Malu somente para as grandes emergências, a mais importante foi a noite de véspera do dia em que seu filho nasceu. Enquanto sua volumosa barriga ameaçava as primeiras contrações, Malu pastava tranquilamente no alto do quadradinho de céu deixado aberto pelas paredes de seu condomínio.

Fazia terapia há muitos anos, passando por vários analistas. Ela não se sentia encaixada no mundo, e nós pensamos que deve ser mesmo muito difícil se encaixar num mundo onde não existem vacas voando à noite para acalmar as crianças. Ela perdia horas e horas de sua vida em consultórios se queixando do namorado, do noivo, do marido, da cunhada e da sogra que não a compreendiam, o mundo não a compreendia e ela não compreendia o mundo, e a terapia não avançava. Foi então, com o passar dos anos, que ela se pegou pensando em Malu durante as sessões, se pegou pensando em voar para bem longe daquilo tudo, se afastando para sempre da sua escura linha do trem, para bem longe da sinistra fornalha da olaria de sua vida complicada, e vinha um nó na garganta que ela engolia, mas não contava nada disso ao analista. Reclamava da vida, e esperava que a vida um dia se resolvesse; como, ela não sabia.

Mas naquele dia foi diferente. A caminho do consultório, no metrô, o pensamento em ponto morto, eis que se apresenta Malu, a lhe perguntar o que você pretende fazer comigo? Quando você vai entender que eu sou a parte principal de você? Que eu sou a salvação da sua infância perdida? A mensageira da paz em sua existência? Que em meus contornos redondinhos de desenhinhos de infância se encontra o melhor de você? Quando você entenderá que adulto feliz de verdade é aquele que tem uma vaca voadora para brincar? Ela lembrou que tinha dado ao seu filhinho um livro justamente com esse título, A vaca voadora, e que tinha lido junto com ele e achado uma graça. Que pena, ela pensou, que as coisas mais interessantes da vida ficam para trás, no mundo das crianças. Não existe nada mais genial do que uma vaca voando à noite para fazer criança dormir, e foi aí que ela entendeu: é por isso que meu mundo não se encaixa, falta a vaca, e essa conclusão a fez chorar e rir, tudo isso no vagão do trem.

Sabia que a sessão de terapia daquele dia seria diferente, sabia que seria a última, não tenho mais nada a fazer aqui, pensou, enquanto empurrava a pesada porta de vidro e se instalava no sofazinho da recepção. Enquanto existir Malu, a vaca voadora, tudo o que devo fazer é aceitar que dentro de mim existe uma criança que precisa brincar e que, como toda criança, precisa de cuidado e conforto. Essa criança, claro, vai errar, e eu vou corrigi-la com amor e sem transmitir remorso ou culpa. E essa criança, claro, um dia vai crescer, e talvez nesse dia Malu voe para fora da minha história, para longe da minha linha do trem, talvez à procura de outra criança para acalmar e fazer adormecer na noite escura.