não precisa, ela sabe


E aí, saiu o resultado, é benigno?

Essa preocupação martelou meu dia

Desde a hora em que tirei o carro

Benigno? Maligno?

Quem foi que inventou a porra

desses nomes?

Como é que uma coisa que tira o sono da gente

pode ser benigna? Tudo o que nos faz rolar na cama

é do demo. Inclusive. Só que sexo é bom

O demo ensinou coisa boa, foi vingança, decerto,

daquela história de paraíso, onde ele ficou por baixo

Mas e aí, o que é que deu?



É maligno, vai ter quimio, começa semana que vem

E vai ser foda, não se iluda não, doutor falou.

Quer combater? Vai penar

Que nem no dia em que chamamos os caras

pra exterminar os bichos, ficamos tempão sem dormir

A rinite comendo solto.



Vamos contar pros meninos? Sim, faz parte do processo,

a família precisa participar, e ah, eu vou vomitar pacas.

E vou perder cabelo, e emagrecer, sabe aquele olho encovado?

E sei não, é uma loteria

é tudo isso com uma chance grande de eu morrer.



Gozado ela, dar a notícia com tanta calma

Mulher é bicho forte, ou então entende mais

da nossa animalidade, bicho esquisito, não disse a roqueira esquisita?

Tenho vontade de dar nela um puta abraço, mas precisava mesmo

que ela me abraçasse: como vou me virar sem ela?



E me vem à mente o egoísmo dessa pergunta

Não estou com pena dela, ela vai embora dessa merda de vida.

Fico eu aqui, com crianças, hipoteca, desemprego

e falta de situação, e é claro que voltarei a fumar

Engordar

Comer mal, e no final

Também bater com as dez.



É. A gente se encontra, penso. Mas e os meninos?



Ah, que se foda, eles se encontram também

E quer saber: ficam melhor sem mim, sem nós

Dupla de desorientados

Mal vividos, mal resolvidos, mal acabados.



E é só aí que consigo chorar

E é só aí que o abraço vem

Mas não digo nada não. Não precisa, ela sabe.