Jesus finalmente está de volta em nossa casa

– Quem era ao telefone? Cruzes, você está branca...

 – Era Pedro. Diz que ele vem. Finalmente.

– Ele quem mulher?

– O hôme.

– Que “hôme”? Desembucha mulher, toma este copo de água. Quem vem? Ai! Ai, Jesus, não vá me dizer que...

– O próprio. Pedro, Jesus e a turma toda.

– Quando? – Agora!
– Assim de última hora? Minha Nossa Senhora!

– Ela vem, também. E olha a casa, olha essa bagunça! Pensa que Maria não repara? E agora? Ai meu jesuscristinho...

– Já sei, vamos chamar a Marli. Ela tem uma mão de ouro pra limpeza, e é rápida a danada. Ela começa pelos banheiros, ajeita os quartos...

– Ai Jesus!

– Que foi, para de tomar o nome dele em vão...

–Toalhas de mesa! E guardanapos. E lençóis, se ele resolver pousar, e fronhas, e toalhas de banho, de rosto, toalhas de mão, e não esqueça que grande parte das amigas de Jesus são damas da alta sociedade.

– Que isso, mulher, seu enxoval é lindo. E as toalhas bordadas que trouxemos da Ilha da Madeira?

– Meu enxoval está lindamente enfiado numa gaveta cheirando naftalina!

– Toca lavar tudo.

– Sem sol? Não vai secar. Lembra daquela secadora que você ficou de consertar?!

– Já sei, vamos pedir pra Amarílis.

– Beleza, liga pra ela. Só que...
– ai Jesus...

– PARA DE TOMAR O NOME DELE, que foi agora?

– Esqueceu dos seus sobrinhos? Que comem feito lima nova? Imagine aquelas três dragas aqui, mais a Amarílis, ou você acha que ela vai se contentar em lavar a roupa e não vir aqui pra boca livre? Fora a tropa toda, O QUE NÓS VAMOS SERVIR?!

– Calma. Calma. Fique calma.

– Não me mande ficar calma. Estou em pânico. Precisa ser algo elegante, o que acha?

– Não se preocupe, o importante é a variedade. Veja: bacalhau desfiado temos um tantão no friser, e carnes temos cupim, picanha, filés, lombo... – lombo não pode, esqueceu? – Ah, mulher, Jesus não liga mais pra isso não. Olha, fica faltando mesmo uns camarões pra uma moqueca, umas lagostas para dar um toque requintado, um pirão caprichado, pode deixar, estou indo ao mercado municipal.

– Camarões e lagostas também ouvi dizer que... esquece, ok, traz.

O Jão ligando o carro eu corro atrás dele: – Traz batatas também, um montão. E cebolas, e temperos, e frutas, Jesus ama frutas, e não se esquece da farinha de mandioca, ai meu Deus!!

– Agora é Deus? O que mais?

 – Precisamos de vinho. Precisamos de MUITO vinho. Passa naquela Maison bacana lá.

– Você está louca? O preço lá é pela hora da morte. Deixa que eu
me viro no mercadão. Er... me dá o seu cartão?...

– Afe. Leva o de débito e o de crédito, acho que não temos limite para tudo isso. Tenta parcelar o vinho.

– Oi, bom dia! É dona Iracema que chega. Que corre-corre é esse, ouvi dizer que a Marli foi convocada pra vir limpar a casa às pressas, vai chegar quem?

– Er, é... bem...Jesus.

– O quê? E você não falava nada? Eu vou já pra sua cozinha fazer meu famoso doce de batata doce com cravo, que eu sei que Jesus adora, é o tempinho de ir lá em casa buscar os ingredientes...

O problema é que dona Iracema tem marido e cinco filhos, eu penso, já começando a sentir um início de desespero. E eles virão, com certeza. Chega Amarílis.

– Já joguei tudo na máquina. Precisa amaciante, você tem?

– Não, e o pior é que o Jão levou meus dois cartões no mercadão.

– Pode deixar, eu penduro.

 – Mas não comente nada que...

Tarde demais, ela já foi. E pior, vai comentar. E o dono da venda tem esposa e filhos, tudo bacuri, e tudo morto de fome, e a molecada adora ver Jesus. Melhor ver se tem refrigerante. Claro, não tem.


 – Alô, seu Domingos? Olha, a Amarílis está chegando aí, pede pra ela trazer três dúzias de refrigerantes...

– Quem vai chegar em sua casa? Os três reis magos?

– Quase. É... bem...Jesus. Pedro ligou.

– Jesus? A meninada vai adorar saber. Sabia que ele adora pudim de leite condensado? Minha sogra dona Célia faz como ninguém, vou já pedir pra ela fazer bem uns quatro aqui no forno da padaria. Vem a tropa toda, não vem?

– É... parece que sim, Jesus não costuma andar sozinho por aí...

– Vou mandar umas cervejinhas.

– Cervejinha não, o Mestre pode não gostar, ele...tum-tum, o Domingos desligou. Tudo bem, cervejinhas.

E em menos de quinze minutos está tudo lá, quatro engradados de cerveja, quatro engradados de refrigerantes, e dona Iracema já está tomando conta da cozinha com os preparativos do doce de batatas, o que me lembra de ligar pro Jão perguntar o que é dos camarões e as lagostas.

– Já estão aqui, já estou voltando, problema é o trânsito dos diá... problema é o trânsito. Comprei atum também, lindo, enorme, o Tomé não vai acreditar, vai achar que é um golfinho, ah, e comprei carne seca, se não me engano o Pedro deu de gostar de carne seca fritinha. E comprei as frutas, e farinha de mandioca, e mandioca. Pra fazer frita.

– E o vinho, foi...tipo...muito caro?

– Foi uma fortuna, melhor eu nem falar, como estão as coisas por aí?

– Eu já coloquei o bacalhau no forno, estou fazendo um panelão de arroz, outro de feijão, estou assando as carnes, dona Célia está fazendo uma cacet...um monte de pudim, e...bagunça da Marli...dona Iracema, afe...Chega logo, por misericórdia.

Quem chega é o Carlão. – É verdade esse beó? O hôme está chegando aí?

– Não chame a chegada do Mestre de beó. Sim, ele vem, mais a turma.

– E você vai receber Jesus com camarãozinho e bacalhauzinho? Mas só mulher mesmo, e a bichinha do meu irmão. Esse evento pede é um churrasco, coisa de macho, deixa comigo que eu vou chamar os caras.

– Chamar quem?! Nem pense em trazer o Bafo e o Bola, era só o que faltava, Carlão, É O MESTRE!!

Mas o Carlão já foi. Atrás dos caras e dos pertences do churrasco. E não adianta reclamar, eles já estão lá, fazendo um fumaceiro medonho, e já estão deitando as linguicinhas e as asinhas de frango, e a tralha toda. E já estão tomando cervejas, Jesus Cristo, cervejas.

– Tiá, vai ter caldinho de feijão? É o folgado do Bola.

– Bem, eu...tá...vai. Daqui a pouco eu levo lá. Eu levo o caldinho e vejo um balde de sardinhas, NINGUÉM VAI LIMPAR SARDINHAS NO MEU TANQUE!

– E ninguém vai me impedir de assar sardinhas na brasa pra Jesus, é o Bafo, faca em riste, recuo diplomática e cautelosamente, da faca, do bafo e do Bafo, ok, sardinhada pra Jesus. O balde transborda, é bom que o Mestre venha com muita fome...

A bacalhoada já está quase pronta, o atum já está apurando no forno com as batatas, os camarões e as lagostas estão deixando um cheiro delicioso no ar, dona Iracema, prova esta carne, não está cheirando peixe? – Não, filha, nossos sentidos nos enganam. Dona Iracema citando Descartes era só o que me faltava... A Marli resolveu lavar toda a porcelana, bagunça total na cozinha, Amarílis chegando com as roupas cheirosas e passadinhas, dona Iracema quase que queima o doce de batata doce, e os netos da dona Célia chegaram cada um segurando um formoso prato de pudim. Ainda bem que eu e o Jão investimos numa cozinha grande e equipada, na verdade nosso sonho sempre foi esse, e no fundo sabíamos que mais dia menos dia Jesus passaria de novo por aqui.

– Gente, não vai ter uma saladinha? É a esposa do seu Domingos do mercadinho, a Rosa. Imagina, não servir uma saladinha...

– Os rapazes lá fora fizeram um vinagrete...

– Ah, mas aquilo é molho de churrasco, falo de uma salada bem caprichada....

– É...do jeito que a mulherada que acompanha Jesus é cheia das finuras, acho melhor uma salada sim, faz uma salada e bota uns ovos. Não tem ovos.

– Me dá o seu cartão?

– Que tal o SEU cartão?

– Não fique estressada, está bem, o meu cartão, pô, vem o Mestre, Paz!

– Paz... com o MEU cartão. Sei... Ai Senhor Amado, como vou pagar essa conta? Esse vinho?

Barulho terrível lá fora, um pagodaço, chegou uma turma com instrumentos, o churrasco rola solto, um cara que eu nunca vi está na minha cozinha fazendo uma jarra enorme de caipirinha de vodka, CAIPIRINHA DE VODKA NÃO, O MESTRE NÃO VAI GOSTAR.

Falei pras paredes. E dá-lhe caipirinha de vodka, e não é que ficou boa demais? – Humm... E com esse caldinho de feijão então? O Jão, animado, resolve fritar torresmos. Uma babilônia de torresmos. E mandioca frita. E batatas fritas.

– Jão, isso é uma Torre de Babel de mandiocas, mais um Monte Sinai de batatas...

– Os filhos de Zebedeu. Adoram frituras.

– Virgem Santa, (– Ó, Maria não gosta que chama ela assim não...) é verdade, ainda bem que o Jão lembrou. E trocamos um beijo besuntado a torresmo. E eu não posso esquecer que eles adoram assentar à direita e à esquerda do Mestre, preciso tomar cuidado senão sai briga... O que mais está faltando?

– Polenta! A Madalena adora uma polenta.

– Deixa que eu faço, é a Raissa do Carlão, de top e shorts curtíssimos. Boto um molho da hora por cima tia, com parmesão ralado e azeitonas. Tem azeitonas?

– Misericórdia! Não. Um dos filhos da Amarílis corre comprar, e por milagre (do Mestre, à distância, só pode ser), não pede dinheiro.

Pagode no maior volume, parece que alguém compôs um
sambinha especial pra Jesus. Fumaceiro medonho, alguém trouxe uma imensa picanha, (corte especial pra Jesus, é o Décio, açougueiro) e está rolando cerveja e caipirinha com pão de alho e queijo de coalho, e NÃO TOQUEM NO VINHO! Falando em vinho, ai meu Jesus...

– Que foi agora, pergunta o Jão.

– As taças quebraram na mudança! Acha que eu vou servir vinho pra Jesus em copos de requeijão? Preciso de taças, não há taça que chegue!

– Minha sobrinha que casou ganhou um monte, vou lá e trago, diz a Marli.

Traz as taças e a sobrinha, pensei, já passando do desespero para o pânico absoluto, a turma só aumenta... E o maridão folgado dela, o Tato, sujeito folgado, ai jesuscristinho...

Mas as taças chegam, e a sobrinha com o marido folgado também, parece que Jesus esteve no casamento deles, querem mostrar as fotos pra ele. Nossa elegante e espaçosa sala de jantar tem uma linda mesa, que na verdade compramos pensando nele. Mas agora vejo que só vai dar pra comportar Jesus, os discípulos e as mulheres, como a notícia da chegada de Jesus se espalha! O que fazer? Mas o Tato mostrou que serve para alguma coisa, e em um instante está trazendo com os rapazes do pagode aquelas horrorosas mesas de plástico de boteco, com as inevitáveis cadeiras brancas. Um horror! Se a decoradora de nossa casa visse... Não vai dar pra todo mundo, a maioria senta no chão ou nas poltronas, paciência. A toalha mais linda, branca, da Ilha da Madeira, fica na mesa principal. Juntamos as mesas e emendamos as outras toalhas, ficou um colorido bonito. E flores? Ninguém vai pôr flores na mesa? Maria ama flores...

– Pode deixar, tia, eu trago as flores, diz um rapazinho que nunca vi na vida, quem é ele?

– É o Vladimir, saiu ontem, puxou dois anos. Diz que precisa

porque precisa "levar um lero" com o Mestre.

– Um ex-presidiário aqui!! Meu Deus, mas é o Mestre! E aposto que ele vai trazer flor roubada do cemitério.

Parece que o Vladimir ouviu e gostou da ideia, porque dali a minutos ele volta com uma imensa braçada de cravos-de-defunto amarelos, saidinhos dos túmulos, decerto, ou de alguma coroa de flores, porque o Vladimir é rapaz de expediente.

Paciência. Flor de defunto, tudo bem. As meninas do pagode fazem uns arranjos, e colocam ramos e fitas nas emendas e não é que ficou bom?

– Jão, essas meninas do pagode não poderiam estar com um pouquinho só mais de roupa?

– Fazer o que mulher, elas são da Comunidade do Córrego, e lá usa se vestir assim. Jesus anda sempre por lá ensinando, elas o amam tanto quanto nós, a notícia espalhou...

– É... bom...então tá.

O telefone toca, é Pedro: – Estou com pouca bateria, está tudo certo aí? Já estamos chegando, é que tem uma turma enorme em volta de Jesus que estamos tentando afastar, mas periga de a gente não conseguir e eles irem junto. Vocês fizeram doce de abóbora? Jesus adora doce de abóbora.

Doce de abóbora!

Mas a santa dona Iracema tinha feito. De batata doce, de abóbora e de mamão verde, segundo ela os favoritos de Jesus. Merece um beijo a fofa. E cocada de colher e doce de leite, gente, essa mulher não existe! E ainda mandou o neto buscar cinco potes de sorvete de sabores variados, não é uma gata?

– Eu trouxe um de napolitano, Jesus é maluco por napolitano diz o moleque todo suado da corrida, orgulhoso por também conhecer o gosto de Jesus.

O Jão: – que tal se a gente botasse uma mesa lá fora pras crianças?

– Você cheirou o bafo do Bafo, só pode. E por acaso as crianças desgrudam do Mestre? – Ih, pior que é...

– Jão, volta pras suas frituras, está boa essa carne seca não?...Acho que vou fazer uns pasteizinhos com elas...

Alguém: – Ó Jão, tem um carinha estranho lá fora, sei não, mas acho que ele está puxando fumo...

– Está sim, fui lá, falei com ele. Diz que precisa muito "trocar uma ideia" com o Mestre. Deixa ele lá.

– Mas...drogas no nosso quintal?... – Mulher, calma. Isso é assunto para Jesus resolver.

– Então tá...

O Carlão lá de fora, piadista: – Resolver eu tenho certeza que Jesus resolve, agora problema é resolver a larica...

– Carlão, tu não presta...

Parece que está tudo pronto. Jesus!! Preciso me arrumar, olha como estou suada, e cheiro o sovaco, e vejo ao espelho meu cabelo oleoso, desgrenhado, cheirando a sardinha, olha você Jão, marido do céu, vamos dar um trato, a mulherada repara.

– Não vai não, os chuveiros todos de cima pifaram estou vindo agorinha do banheiro da suíte de vocês, olhei os outros quartos, nenhum está funcionando, algum problema no 220. É a Marli. Com a bela notícia. Vamos receber o Mestre sem um banho. Mas e se o Mestre resolver tomar um banho? Ai meu Jesus, e eu já perdi a conta de quantas vezes tomei seu nome em vão nessa bagunça toda da preparação da festa.

– Pode deixar tia, a gente conserta, diz outro dos filhos da Amarílis, mas pode demorar.

– Então eu vou pelo menos trocar de roupa, gente abaixa esse som! E essa meninada correndo? E quem está assistindo essa televisão? Cuidado menino, você quase derruba esse copo, ai, nããão! O cachorro tinha que fazer bem agora, Jão, corre, limpa aí esse...

– Paz seja nesta casa.

Parece que o tempo para. Parece que nem ouço mais barulho algum vindo de fora. Parece que apenas Ele está aqui. A sua voz e a sua presença dominam todos os espaços. Passou a sensação de cansaço, de suor grudado no corpo, sinto o corpo leve como se tivesse saído de um banho... E eu corro e me penduro ao pescoço do Mestre, o Jão disfarçando o choro se abraça em nós dois e assim ficamos um tempo que eu não saberia dizer, nós três, um bloco. O cachorro late e pula frenético a nossa volta, o Jão acaba se entregando e chora feito um bebê, a cabeça declinada no ombro do nosso amigo amado. Eu, que não posso ver ninguém chorar, desabo meu aguaceiro. Quanta saudade meu Deus... Quanta coisa eu teria pra dizer, mas tudo que quero é ficar abraçada aqui, sentindo o perfume dos seus cabelos castanhos, sua presença reconfortante e suave... E lá longe, muito longe, aquela correria toda, aquela preocupação toda, o cartão de crédito estourado, a turma da boca livre, a fumaça, o ar empestado de cheiro de sardinha, o pagodaço, a cervejada, a rapaziada puxando fumo, as mocinhas em trajes mínimos, a bagunça da cozinha, a meninada correndo, a comida que talvez não chegue, a sujeira do cachorro, o chuveiro que queimou e...

Paz. Estou em absoluta paz. Jesus finalmente está de volta em nossa casa.