analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua

É uma sala envidraçada da metade para cima das divisórias de madeira compensada, grande, quadrada, tendo como único mobiliário uma cadeira com rodízios e uma bancada que toma toda a volta do ambiente. Possui três guichês recortados nos vidros. Um à frente, os outros dois aos lados direito e esquerdo. Pelo da frente, onde fica a porta sempre fechada, entram papéis novos, para serem analisados. Nas aberturas à direita e à esquerda do Analista Carimbador Limitante, respectivamente, pois que estamos falando do Analista Carimbador Limitante, há as Salas de Remissão e Finalização. A sua sala chama-se Sala do Limite. Sobre a bancada, centenas de carimbos, dos quais ele sabe a exata localização, acharia seus carimbos no escuro. Carimbo retirado, carimbo devolvido sempre ao mesmo lugar. Os carimbos ficam pendentes em suportes, como cachos, que ficam alinhados em várias filas e em ordem sobre a bancada às centenas, aproximando do milhar, tendo à sua frente inúmeras almofadas de tintas azuis, verdes e vermelhas por sobre toda a bancada, e também muito bem alinhadas. Seu dia de trabalho começa pontualmente às oito da manhã, e ele embora sabendo que a sala está limpa, gosta de começar seu dia passando sobre os suportes dos guichês uma flanelinha amarela, é o seu ritual de começar.

Às oito horas e cinco minutos, chega o Encarregado da Distribuição de Papéis. Ali não há o hábito da conversa, apenas rápidos cumprimentos, muitas vezes somente um leve aceno de cabeça. O trabalho, todos sabem, é difícil, doloroso, não resta vontade de conversar sobre frivolidades. Mesmo que houvesse, ele, o Analista Carimbador, não teria nenhum assunto que não fossem os casos que analisa, ele não possui vida fora dali. Recebendo os novos papéis, ele inverte cuidadosamente a ordem deles e os coloca sob a pilha em que está trabalhando, tomando o cuidado de não alterar a ordem de entrada de nenhum caso. A primeira Vida que entra é sempre a primeira Vida que sai.

Seu trabalho é analisar Vidas. Sua sala não é a única. O local de trabalho é como um imenso aquário subdividido, onde todos se dedicam a estudar papéis, solitários e em silêncio.

Ele desconhece se seu trabalho e de seus colegas terminam ali, ou se são supervisionados pelos tais Graduados, que todos sabem que existem, mas que nunca viram, mas é bem provável que sim. Ele se sente tão menor, que acha impossível que algo tão importante como Vidas esteja apenas em suas mãos. Mas realiza seu trabalho com a mesma meticulosidade, sabendo-se supervisionado ou não, com a importância que o trabalho merece. Não há nada mais importante do que Vidas, ele sabe. Sabe, porque o que mais desejaria nesse espaço de existência que eles chamam de Estado de Processo, seria justamente ter uma Vida, que a julgar pelos papéis que lê, é algo totalmente diferente do que ele tem. Ele desconhece outro afazer que não seja o de ler e carimbar. Sua jornada termina às seis da tarde, e reinicia às oito da manhã, mas desse período de pausa ele nada recorda. Teme perguntar se seus colegas recordam, e ouvir uma história diferente da sua.

Tudo o que ele sabe é que habita uma existência que fica a meio caminho entre humana e angélica. Se fosse anjo, pensa, teria asas, voaria por aí salvando criancinhas em perigo, e com uma pontada mista de sarcasmo e rancor acrescenta ao seu pensar: – e não viriam tantos papéis assim para a Sala do Limite...

Isso é tudo o que ele pensa, porque o trabalho é extenso, é ler. Ler sem envolvimento emocional, uma leitura racional dos fatos:

Um jovem totalmente dependente de substâncias químicas ilícitas, já consumiu todos os bens da família e agora rouba para sustentar a dependência. Está fraco, alimenta-se mal, compartilha seringas injetáveis com outros dependentes, também abusa de bebidas alcoólicas, é de família pobre, seus pais, exaustos após tantas lutas para a sua recuperação, o abandonaram à própria sorte, está só no mundo sem esperança alguma. São os carimbos da parte esquerda da sala: Finalização. Abaixo desse: Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Outro carimbo: Pneumonia. Abaixo desse, mais um carimbo: Provável Alvo de Extermínio por Seres Malévolos. Para essa Vida não há esperança. Limites como esse, que analisa aos milhares, são de rápida conclusão, não costumam trazer um único facilitador remissivo, qualquer humano faria a mesma análise. E num suspiro junta esses papéis aos que seguirão no final do dia para o seu lado esquerdo, o da Finalização. Desconhece o trabalho do Finalizador, mas pensa que ele é um dos tais Graduados, que reanalisa e carimba a forma efetiva de Finalização, ou que talvez tenha poder para reverter para Remissão, ele não sabe.

As histórias não são sempre assim, dilacerantes, embora o Analista Carimbador não veja nenhum motivo como banal. Há uma enormidade de casos de finalização por idade, e seus motivos desencadeantes, que são na sua grande maioria comuns a todos. A maioria dos casos é o de idosos que praticaram excessos na juventude. E há outra enormidade de casos de finalizações chamadas de naturais pelos humanos, mas ali todos sabem que finalização natural não existe, todas vêm de intrincados caminhos, que são analisados justamente ali, na Sala do Limite. Toda doença vem de algum excesso ou escassez de algo tangível ou intangível. E há outras causas desencadeantes além de doenças, os Limites são em grande quantidade, daí a enormidade de carimbos, muitos são utilizados combinados entre si. Todos os casos possuem múltiplas implicações e complicações, em muitas vezes ele passa o dia analisando uma única Vida, tantas são as variáveis envolvidas. E finalmente há os da tarja vermelha, apenas para serem carimbados: – Finalização. Esses vêm direto dos Graduados, já vêm analisados, é só carimbar. Ele às vezes lê detalhadamente algumas dessas Vidas, por curiosidade, e constata que não existe linha de raciocínio algum, precedente algum, que as leve à enfermidade, ao acidente, à finalização súbita, enfim, ao Limite, mas que passarão por isso, inapelavelmente. São em grande número, para tristeza do Carimbador, que só não é total porque também chegam casos absolutamente sem solução com a tarja verde para o carimbo: Remissão.

Remissão. Felizmente há casos onde se vislumbra uma esperança: um novo tratamento médico, uma intervenção bem sucedida, terapias alternativas, colaboração humana, uma conversão de caminhos: um novo emprego, uma vida mais saudável, um filho, e até eventos intangíveis como o tempo, perdão, amor, preces, às vezes algo simples como uma viagem, e é com um suspiro de alívio que ele envia esses papéis ao seu lado direito, para a Remissão, com os carimbos: Remissão. Esperança. E um outro carimbo com algumas das variáveis acima, ou outras. O maior facilitador dos processos remissivos é o Amor, ofertado ou recebido, assim como Preces.

Ele já não se recorda de há quanto tempo trabalha ali, e bem que gostaria de ter acesso a seus próprios papéis, mas sabe que eles estão em outro Departamento, e não viriam para a sua Sala do Limite. Mas sabe também que bastaria pedir ao Encarregado da Distribuição de Papéis, em toda sua longa existência nunca pediu nada, e sabe que ali não abundam manifestações de sentimentos, a ordem geral é uma só: trabalho. Sabe, portanto, que seria atendido. Mas vai adiando, tem medo, – o meu Estado de Processo terá fim? – ele vai pensando entre uma análise e outra. O medo é de descobrir que não, que aquele seu estado é eterno. –Seria muito triste, pensa.

Não precisou nem formular em palavras ao Encarregado da Distribuição de Papéis, bastou um olhar significativo, algo raro por ali. Há finalização ou remissão para mim? – pensava, e foi isso que transmitiu com o olhar ao Encarregado. Começava a se lembrar de vozes, seria isso o que acontecia em suas noites esquecidas? Vozes que discorriam sobre Estágios de Compreensão. Pausa para Humanização. Pausa para Regulação dos Batimentos Cardíacos. Enxugamento de Emoções Banais. Enfrentamento Racional. Apaziguamento com o Passado. Abandono de Ilusões. Essas lembranças não vieram à sua memória no mesmo instante, vieram no correr de todos os papéis que ele lia e carimbava, lia e carimbava, vieram ao longo do interminável começar e recomeçar de muitos e muitos dias de trabalho. – Estou processando novas orientações, logo, este estado poderá ter fim, – animava-se ele.

E foi assim que num desses dias, pontualmente às oito horas e cinco minutos, a história de seu Estado de Processo eram os primeiros papéis da pilha que recebeu no guichê do meio, que ele colocou cuidadosamente como últimos sob os papéis que já tinha em curso, sem alteração dos batimentos cardíacos e sem ser vencido pela curiosidade. As Vidas tinham mais importância. E nas pausas entre suas análises pensava que caso viesse a remir seu Estado de Processo, gostaria de ganhar uma Vida. Mesmo que fosse para ela finalizar como todas, empilhada, analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua.