Às
oito horas e cinco minutos, chega o Encarregado da Distribuição de Papéis. Ali
não há o hábito da conversa, apenas rápidos cumprimentos, muitas vezes somente
um leve aceno de cabeça. O trabalho, todos sabem, é difícil, doloroso, não
resta vontade de conversar sobre frivolidades. Mesmo que houvesse, ele, o Analista
Carimbador, não teria nenhum assunto que não fossem os casos que analisa, ele
não possui vida fora dali. Recebendo os novos papéis, ele inverte cuidadosamente
a ordem deles e os coloca sob a pilha em que está trabalhando, tomando o
cuidado de não alterar a ordem de entrada de nenhum caso. A primeira Vida que
entra é sempre a primeira Vida que sai.
Seu
trabalho é analisar Vidas. Sua sala não é a única. O local de trabalho é como um
imenso aquário subdividido, onde todos se dedicam a estudar papéis, solitários
e em silêncio.
Ele
desconhece se seu trabalho e de seus colegas terminam ali, ou se são supervisionados
pelos tais Graduados, que todos sabem que existem, mas que nunca viram, mas é
bem provável que sim. Ele se sente tão menor, que acha impossível que algo tão
importante como Vidas esteja apenas em suas mãos. Mas realiza seu trabalho com
a mesma meticulosidade, sabendo-se supervisionado ou não, com a importância que
o trabalho merece. Não há nada mais importante do que Vidas, ele sabe. Sabe,
porque o que mais desejaria nesse espaço de existência que eles chamam de Estado
de Processo, seria justamente ter uma Vida, que a julgar pelos papéis que lê, é
algo totalmente diferente do que ele tem. Ele desconhece outro afazer que não
seja o de ler e carimbar. Sua jornada termina às seis da tarde, e reinicia às oito
da manhã, mas desse período de pausa ele nada recorda. Teme perguntar se seus
colegas recordam, e ouvir uma história diferente da sua.
Tudo
o que ele sabe é que habita uma existência que fica a meio caminho entre humana
e angélica. Se fosse anjo, pensa, teria asas, voaria por aí salvando
criancinhas em perigo, e com uma pontada mista de sarcasmo e rancor acrescenta
ao seu pensar: – e não viriam tantos papéis assim para a Sala do Limite...
Isso
é tudo o que ele pensa, porque o trabalho é extenso, é ler. Ler sem
envolvimento emocional, uma leitura racional dos fatos:
Um jovem
totalmente dependente de substâncias químicas ilícitas, já consumiu todos os
bens da família e agora rouba para sustentar a dependência. Está fraco,
alimenta-se mal, compartilha seringas injetáveis com outros dependentes, também
abusa de bebidas alcoólicas, é de família pobre, seus pais, exaustos após
tantas lutas para a sua recuperação, o abandonaram à própria sorte, está só no
mundo sem esperança alguma. São os carimbos da parte esquerda da sala: Finalização.
Abaixo desse: Síndrome de Imunodeficiência Adquirida. Outro carimbo: Pneumonia.
Abaixo desse, mais um carimbo: Provável Alvo de Extermínio por Seres Malévolos.
Para essa Vida não há esperança. Limites como esse, que analisa aos milhares,
são de rápida conclusão, não costumam trazer um único facilitador remissivo,
qualquer humano faria a mesma análise. E num suspiro junta esses papéis aos que
seguirão no final do dia para o seu lado esquerdo, o da Finalização. Desconhece
o trabalho do Finalizador, mas pensa que ele é um dos tais Graduados, que reanalisa
e carimba a forma efetiva de Finalização, ou que talvez tenha poder para
reverter para Remissão, ele não sabe.
As
histórias não são sempre assim, dilacerantes, embora o Analista Carimbador não
veja nenhum motivo como banal. Há uma enormidade de casos de finalização por
idade, e seus motivos desencadeantes, que são na sua grande maioria comuns a
todos. A maioria dos casos é o de idosos que praticaram excessos na juventude. E
há outra enormidade de casos de finalizações chamadas de naturais pelos humanos,
mas ali todos sabem que finalização natural não existe, todas vêm de
intrincados caminhos, que são analisados justamente ali, na Sala do Limite. Toda
doença vem de algum excesso ou escassez de algo tangível ou intangível. E há outras
causas desencadeantes além de doenças, os Limites são em grande quantidade, daí
a enormidade de carimbos, muitos são utilizados combinados entre si. Todos os
casos possuem múltiplas implicações e complicações, em muitas vezes ele passa o
dia analisando uma única Vida, tantas são as variáveis envolvidas. E finalmente
há os da tarja vermelha, apenas para serem carimbados: – Finalização. Esses vêm
direto dos Graduados, já vêm analisados, é só carimbar. Ele às vezes lê
detalhadamente algumas dessas Vidas, por curiosidade, e constata que não existe
linha de raciocínio algum, precedente algum, que as leve à enfermidade, ao
acidente, à finalização súbita, enfim, ao Limite, mas que passarão por isso,
inapelavelmente. São em grande número, para tristeza do Carimbador, que só não
é total porque também chegam casos absolutamente sem solução com a tarja verde
para o carimbo: Remissão.
Remissão.
Felizmente há casos onde se vislumbra uma esperança: um novo tratamento médico,
uma intervenção bem sucedida, terapias alternativas, colaboração humana, uma
conversão de caminhos: um novo emprego, uma vida mais saudável, um filho, e até
eventos intangíveis como o tempo, perdão, amor, preces, às vezes algo simples
como uma viagem, e é com um suspiro de alívio que ele envia esses papéis ao seu
lado direito, para a Remissão, com os carimbos: Remissão. Esperança. E um outro
carimbo com algumas das variáveis acima, ou outras. O maior facilitador dos
processos remissivos é o Amor, ofertado ou recebido, assim como Preces.
Ele
já não se recorda de há quanto tempo trabalha ali, e bem que gostaria de ter
acesso a seus próprios papéis, mas sabe que eles estão em outro Departamento, e
não viriam para a sua Sala do Limite. Mas sabe também que bastaria pedir ao
Encarregado da Distribuição de Papéis, em toda sua longa existência nunca pediu
nada, e sabe que ali não abundam manifestações de sentimentos, a ordem geral é
uma só: trabalho. Sabe, portanto, que seria atendido. Mas vai adiando, tem
medo, – o meu Estado de Processo terá fim? – ele vai pensando entre uma análise e
outra. O medo é de descobrir que não, que aquele seu estado é eterno. –Seria
muito triste, pensa.
Não
precisou nem formular em palavras ao Encarregado da Distribuição de Papéis, bastou
um olhar significativo, algo raro por ali. Há finalização ou remissão para mim?
– pensava,
e foi isso que transmitiu com o olhar ao Encarregado. Começava a se lembrar de vozes,
seria isso o que acontecia em suas noites esquecidas? Vozes que discorriam
sobre Estágios de Compreensão. Pausa para Humanização. Pausa para Regulação dos
Batimentos Cardíacos. Enxugamento de Emoções Banais. Enfrentamento Racional. Apaziguamento
com o Passado. Abandono de Ilusões. Essas lembranças não vieram à sua memória no
mesmo instante, vieram no correr de todos os papéis que ele lia e carimbava, lia
e carimbava, vieram ao longo do interminável começar e recomeçar de muitos e muitos
dias de trabalho. – Estou processando novas orientações, logo, este estado poderá
ter fim, – animava-se ele.
E
foi assim que num desses dias, pontualmente às oito horas e cinco minutos, a
história de seu Estado de Processo eram os primeiros papéis da pilha que
recebeu no guichê do meio, que ele colocou cuidadosamente como últimos sob os
papéis que já tinha em curso, sem alteração dos batimentos cardíacos e sem ser
vencido pela curiosidade. As Vidas tinham mais importância. E nas pausas entre
suas análises pensava que caso viesse a remir seu Estado de Processo, gostaria de
ganhar uma Vida. Mesmo que fosse para ela finalizar como todas, empilhada,
analisada, carimbada e decidida numa Sala do Limite como aquela sua.