reaprender a caminhar é existencial



Caí um tombo.

Não escreva caí um tombo, menino, é redundância, a professora chata de português, a mal amada. Coitada. Cresci, virei homem, e hoje entendo ser péssimo chamar uma mulher de mal amada por ela ser mal humorada, machismo vulgar. Sexo é bom, mas não paga as contas, não encurta a distância da nossa casa ao trabalho, não melhora o trânsito e nem acresce condescendência aos nossos superiores. Uma pessoa pode ser mal humorada apenas por estar inserida no contexto errado da vida, e isso não inclui, necessariamente, o parceiro correto de cama.

Não era o que eu falava, nem meus coleguinhas, principalmente quando a frase errada nos diminuía as notas numa matéria que a gente queria logo de cara eliminar, para poder se dedicar às realmente difíceis, vejam só como já era (mal) tratada nos tempos de antanho nossa pobre língua portuguesa – uma matéria pra eliminar rápido.

Adoraria ter um professor ou professora aqui agora só para riscar com bic vermelha todos os erros que cometi neste texto, e isso porque nem comecei ainda a contar meu caso.

Pois o assunto do dia é que caí um tombo, o terceiro em um ano e meio, média de um tombo por semestre, meu neto mostrando que é bom em matemática; para com isso, anda mais devagar vô! E também mostrou a tal da redundância, não por ser bom em português, mas porque essas corrigendas rolam solto na internet, um enviando para o outro enviando para o outro enviando para o outro, rede é isso. Ninguém lê, e quando lê, é só para pegar alguém, feito meu neto: - não se fala caí um tombo!

Mas como ninguém mais manda em mim, retomando o que dizia lá em cima, caí um tombo, bati queixo, enguli terra, moço, eu falando com o enfermeiro enquanto aguardava, pingando, tem aí uma água oxigenada pra eu me bochechar? pensando em quantos cachorros tinham mijado naquela terra, não temos não senhor, obrigado, eu disse.

O povo já acostumou a falar obrigado mesmo quando não recebe nada, ou seja, sempre. Até que um escritor espanhol me emocionou dizendo que o obrigado nesses casos surge para levantar a nossa dignidade.

Com a dignidade levantada, terrinha nos dentes e o queixo pingando entrei na sala dos consertos, a jovem médica estava no auge do seu bom humor, se fosse eu um psiquiatra arriscaria a dizer que ela estava entrando em ciclo, mas tudo bem. Melhor uma jovem de alto astral, bem amada, como diriam meus coleguinhas, do que um médico ou médica num péssimo dia.

Preparou um pano defenestrado? ela perguntou ao desastrado estagiário, e eu, sentindo dor mas sentindo desesperadamente minha criança cutucando lá de dentro, pois só criança cai tanto como eu, comecei a imaginar o que seria um pano defenestrado, já sei! Há uma criança aqui, mas há um adulto com vocabulário também, pano defenestrado, disse o molequinho interior, é o enfermeiro indo do lado de lá da janela e jogando um pano sobre o meu rosto, porém, não havia janela.

Pano defenestrado nada mais era, óbvio, do que um pano meio apapelzado, sei, sei, essa palavra não existe, estou cansado para explicar e você entendeu, então, um pano apapelzado onde o desastrado jovem cortou uma janelinha. Para a médica bem amada trabalhar sem ser contaminada por mim, preste atenção, senhor, não coloque suas mãos em mim para não me contaminar, e eu cruzei as mãos feito morto para mostrar que tinha entendido.

Se ela veio com esse alerta, é porque devem ser inúmeras as pessoas que ao sentir dor, se agarram ao médico. Se ela me conhecesse, a mim e ao meu orgulho, saberia que eu morro de dor, mas não me agarro a gente estranha, pelo menos não até aqui, pensei.

Pano defenestrado sobre o rosto, minhas mãos em cruz, as mãos da jovem enluvadas, anestesia aplicada, e a tudo ela ia explicando, pedagógica e educada, como se eu fosse seu aluno, e eu até gostei daquela atenção toda? Se fosse no meu tempo era cala a boca aí menino, e não chora, porque se você chorar aqui, vai chorar de novo lá em casa. Foi assim que a gente virou machinho. Culpa das mães, sorte dos psiquiatras.

Três pontinhos, olhou, reolhou, disse, foram os melhores pontos que eu já fiz, disse entre agitada e carinhosa, deve ser porque é cedo, recado para mim mesmo só cair até sete da manhã. E me deixou entregue ao jovem desastrado, que colocou desastradamente sobre o meu queixo umas bandagens moles e feias, não vai ficar uma coisa muito bonita de se ver tá bom, senhor? Mas o senhor pode tirar amanhã.

Cair tombos é o princípio de tudo. É um novo nascimento. Momento da conscientização – não sou mais um garoto, não enxergo como antes, meus pés resvalam mesmo quando não há buracos nas calçadas, preciso andar lentamente. Preciso reaprender a caminhar.

Porque logo logo a vida vai me defenestrar, Papai do Céu chamando, aí sim saberei o que é caminhar livre e solto. Até lá, cuidadinho. Para ir embora com menos remendos, rosto bonitinho no caixão, morreu bonitinho né? dirá aquela tia velha que não morre nunca.


Foi quando reli todo o escrito, eu meu próprio professor de português, que me dei conta de que a frase preciso reaprender a caminhar é existencial.