Havia
num lugar perdido deste imenso país, uma pequena cidade chamada Brisabela. Por
algum motivo que desconhecemos, a cidade se perdeu no mapa e o governo a deixou
em paz. Então eles possuíam sua própria Caixa de Depósitos, Prefeitura,
Cartório, Hospital, Igreja, Escola, Cemitério e Presídio, este vivia vazio,
vazio não, ali funcionava uma linda Biblioteca, e os moradores diziam que nem
os livros eram presos no presídio, porque qualquer um podia levar os que
quisesse para suas casas, e todos liam, e devolviam. E o cemitério era pouco
habitado, ali se vivia muito.
Brisabela
ficava cercada por lindas montanhas, dessas que nos deixam com vontade de
passar por sobre elas uma imensa mão, montanhas que nos fazem quase que sentir
a maciez da verdura sobre as elevações. Essas montanhas deixavam passar o calor
do sol e o frescor da brisa naquela exata proporção de paraíso. Em se plantando
tudo dava, a água era abundante e deliciosa, ninguém necessitava de nada e
todos viviam em paz.
Mas
como uma felicidade nunca é completa, Brisabela tinha um problema, que era a
carência de crianças. Não que ali não nascessem crianças, nasciam poucas, o que
deixava todos preocupados – o que será do futuro de Brisabela?
Num
certo dia, um casal de meia idade, vendedores de doces na única pracinha da
cidade e muito queridos por todos, anunciaram a fantástica notícia: a mulher
estava grávida, e nem era necessário o anúncio, pois o ventre da mulher
demonstrava adiantada gravidez.
Todos
ficaram deslumbrantes de felicidade, pois viram no inusitado do fato de um
casal de idosos ter filhos, um bom agouro. Isso é resposta de Deus às nossas
preces, diziam. Essa criança trará sorte a Brisabela, atrás dela muitas
crianças virão. E naquele dia não se falou de outro assunto, e tocaram os sinos
da Paróquia, o Senhor Pároco veio abençoar o casal, e o Senhor Prefeito
decretou Feriado.
Numa
noite de lua cheia, uma mulher disse a outra que disse a outra que disse a
outra que a criança dos idosos iria nascer. E todos os moradores deixaram as
luzes de suas varandas acesas.
Mas
a criança não nasceu. Foram consultar a Senhora Parteira, que estava ao fogão
fazendo doce de leite, que lhes disse ainda não ser tempo, que voltassem para
suas casas, que o bebê chegaria no tempo certo, tudo isso sem se descuidar do
ponto do doce.
Mas
o povo não acreditou.
A
cidade tornou a deixar as luzes acesas na noite seguinte, e na outra, e na
outra; deixaram até o final da lua cheia. Mas a criança não veio.
O
tempo foi passando, e já quase não se via luzes acesas, apenas uma aqui, outra
acolá, até que chegou o tempo em que não se acendeu nenhuma, e todos se
desencantaram, deve ser gravidez psicológica, disse alguém. E todos,
entristecidos, deixaram de esperar.
Menos
o casal. A Mamãe continuava a bordar e a tricotar um rico enxoval de bebê,
auxiliada pelo Papai, que radiante, emprestava as mãos para segurar a meada de
lã.
Passaram
três anos.
Numa
tarde morna e preguiçosa, já quase crepúsculo, a Senhora Parteira, uma forte
mulata usando um lindo vestido longo florido, com um pano branco amarrado como
turbante na cabeça, carregando um enorme cesto, empurrou o portãozinho da casa
dos velhos, que descansavam tranquilos, e toda risonha e festeira disse: –Vamos,
que já não está na hora de trazer esta criança ao mundo?
Todos
na cidade estavam sentados às suas mesas de jantar, e nenhuma lâmpada havia
acesa em nenhuma varandinha, quando se ouviu no silêncio apenas quebrados pelo
cricri dos grilos e conversas esparsas ao longe misturadas a difusos sons de
talheres batendo nas louças, um forte e inconfundível choro de bebê.
Os
vizinhos correram até a casa dos velhos, e se depararam com uma surpresa e um
milagre. A surpresa era que sim, a mulher estivera grávida sim. E o milagre era
que a criança viera ao mundo com três aninhos, e todos entraram no quarto a
tempo de ver a criança pular do colo da Mamãe e caminhar saltitante até o colo
do Papai dizendo: – pa-pa. Era uma menina, das mais lindas que aquela cidade já
vira.
E
todos riam e choravam e se abraçavam agradecendo a Deus pelo milagre, e todos
beijavam a calva do velho e as mãos da senhora jovem mamãe, que a tudo
retribuíam também com lágrimas e risos.
Na
manhã seguinte, Papai e Mamãe foram registrar a menina, e a menina não quis de
forma alguma seguir no colo, quis caminhar, e todos saíram às ruas para ver
passar a menininha recém-nascida de mãos dadas com papai e mamãe, passinhos
incertos a caminho do Cartório.
Chegando
ao Cartório, o Senhor Escrevente já informado da notícia os aguardava, o enorme
livro aberto sobre a mesa do enorme edifício de três amplos janelões voltados
para a única pracinha da cidade.
O
nome que Papai e Mamãe escolheram para a menina foi Preciosa. O Senhor
Escrevente começou com sua letra caprichada de notário P-r-e-c-i-o-s-a... e
sentiu um nó na garganta. Lembrou-se de sua filhinha falecida, que sua esposa
insistiu em batizar como Maria das Dores, nunca se perdoou, por que permiti que
minha filha tivesse dor no nome, pensou? Decerto foi isso que a levou de mim, e
engolindo em seco perguntou aos pais, receoso: – vocês me dariam o privilégio
de acrescentar mais um nome? O casal, emocionado, concordou, e o notário
acrescentou Flor. Preciosa Flor.
Quase
toda a cidade se acotovelava na pracinha, tentando ver o ato de registro pelos
janelões, e deram de opinar que isso não era direito, por que somente o
escrevente podia dar um nome à menina? Consultaram os pais, que concordaram
imediatamente, e todos falavam ao mesmo tempo acrescentando nomes, e a todos o
escrevente ia ouvindo e anotando cuidadosamente.
Começou
assim: Preciosa Flor dos Dias Ensolarados e das Noites Frescas de Luar, das
Ruas Iluminadas de Sol, do Barulho do Vento e do Som Delicioso das Noites
Chuvosas, e dos Campos de Girassóis, das Águas Frescas dos Poços, da Alegria
das Boas Notícias, do Perfume da Chuva nos Caminhos de Terra, das Aveleiras,
das Laranjeiras, das Quaresmeiras e do Incenso das Florestas.
Era
o horário do término das aulas, e as crianças também quiseram opinar, todas
falando ao mesmo tempo, e o notário pedia calma, e virando a enorme página,
continuou com sua letra caprichada: e das Quermesses, das Maçãs do Amor, dos
Lindos Desenhos em Lápis de Cera e das Massinhas de Modelar. Da Hora do
Recreio, do Pega-Pega, do Pular Corda, dos Cachorros Peludos e dos Gatos Fofos
nos Telhados, do Bolo de Coco com Cobertura, Amendoim, Pipoca, Paçoca e Sorvete
de Creme.
As
professoras pediram para ver o Livro de Registros, e elogiaram o notário que
soubera virgular muito bem, e ele ficou vaidoso, porque estava justamente nessa
dúvida: – Virgulo ou não virgulo? E as professoras opinaram também.
Das
Promessas de Amor, das Juras dos Enamorados, dos Lindos Vestidos de Noiva, das
Elegantes Cartas de Amor, dos Sonhos Felizes, dos Doces Romances, dos Anéis de
Noivado, dos Lindos Buquês de Flores, dos Colares de Pérolas, das Mãos
Entrelaçadas e dos Passeios nos Campos. Da Felicidade, da Ventura, da Ternura,
da Deliciosa Solidão, arrematou a Senhora Diretora.
As
senhoras que saíam da Missa disseram a uma só voz: – de Maria! Como que até
agora ninguém se lembrou do nome da Amada Mãe de Nosso Senhor? E continuaram a
opinar, e o notário continuou caprichando sua bela letra.
De
Amada Maria do Nosso Senhor, das Preces Respondidas, da Ternura da Virgem, dos
Sinos Repicando ao Longe, das Novenas Amorosas, dos Santos Mistérios, do
Rosário Dourado, do Missal Perolado, dos Santos Sacramentos, dos Belos
Paramentos, das Relíquias Adoradas, das Velas Ternamente Consagradas e do
Sagrado Sinal da Santa Cruz.
E
não acabou, nomes vieram de todos os lados. Das Verbenas, das Alfazemas, das
Rosas e das Acácias, das Avencas, da Grama Aveludada, do Jardim Molhado, dos
Amores Perfeitos, dos Dias Felizes que se Foram e dos Dias Felizes que Virão. E
dos Enfeites Ricamente Elaborados, e dos Dias de Feriado, e do Orvalho na Flor,
dos Abraços Amigos e dos Pinheiros Farfalhantes. Do Dia de Natal, da Árvore
Iluminada, da Carta Amiga que Chega e do Presente Inesperado. Do Dia de Parada,
Banda e Fanfarra. Da Cura Milagrosa do Olhar Que Nunca Viu.
–
E dos Olhos de Deus e de Brisabela, finalizou o Senhor Pároco entrando no
recinto, e o casal acrescentou os nomes de família: dos Santos e dos Dias. E
dali seguiram todos para a paróquia, batizar Preciosa. À pia batismal, o tempo
que você levou para ler até aqui foi o tempo que o pároco levou para dizer
todos os nomes da menina. Em seguida fizeram uma enorme mesa na praça, e todos
trouxeram coisas boas de se comer, e presentes. Desde galinhas para a
convalescença da Mamãe a santos e medalhinhas bentos de ouro e prata, e
brinquedos que as crianças trouxeram, e trabalhos bordados que as senhoras
fizeram, e até títulos de propriedade, a menina ganhou de um tudo.
Essa
história, que de tão bela todos contaram a todos, correu o mundo, vieram
elegantes Moças de Televisão, e muitos povos do mundo se encantaram com a
menina Preciosa. Uma elegante e rica dama da Cidade Grande, comovida, escreveu
aos pais dizendo que arcaria com os estudos da menina até a Universidade.
No
dia da formatura de Preciosa todo o povo da cidade compareceu, e Papai e Mamãe
na primeira fila, em trajes de gala, velhinhos e de cabelos branquinhos, não se
cabiam em si de tanto gosto. Preciosa se formou Médica de Crianças. Crianças de
Brisabela, que nunca mais pararam de nascer.
Na
entrega do diploma, o tempo que você levou para ler até aqui, foi o tempo que o
idoso Senhor Reitor levou para ler o nome da Jovem Formanda. Maior ainda foi o
tempo em que Brisabela aplaudiu.
E
essa história correu mundo, e até hoje toda criança gosta de decorar e repetir,
orgulhosa, os nomes da menina Preciosa. E da ensolarada Itália ao comprido
Chile, da charmosa França ao iluminado Brasil, e da simpática Argentina à
distante China, todas as crianças gostam de recitar sem errar o nome da menina.
E
do pequeno Paraguai ao desenvolvido Japão, e até àquele país de nome esquisito,
o Kadjiquistão, passando pelo inquietante Paquistão e chegando à orgulhosa
Espanha e dali seguindo para a corajosa Alemanha, cada um no seu dialeto, cada
qual no seu alfabeto, todas decoram direto e reto, e dizem que virou a lição de
casa favorita na Venezuela, recitar todinho o nome da menina de Brisabela.
Ficamos
sabendo que crianças angolanas fazem roda, e uma começa a declamar, e a
turminha ouve calada: – Preciosa Flor dos Dias Ensolarados e das Noites Frescas
de Luar, das Ruas Iluminadas de Sol, do Barulho do Vento e da Delícia das
Goteiras nas Noites Chuvosas, e dos Campos de Girassóis, das Águas Frescas dos
Poços, da Alegria das Boas Notícias, do Perfume da Chuva nos Caminhos de Terra,
das Árvores de... e de repente esquece e para, embatucada, e todos batem palma
e dizem: – errou! na maior caçoada. E a
próxima criança recomeça animada, do ponto em que a outra parou, até chegarem
ao fim dessa deliciosa rodada.