e os e-mails não chegaram nunca mais



Ela o conheceu pela net num fórum de discussão que não tinha nada a ver com ela, no qual ela não sabia nem opinar. Assunto difícil, a Complexidade da Inclusão Social da População Indígena. É que ela queria conhecer gente importante. Conhecer nesses casos não é bem o termo, mas era um começo, ela pensou. Achou bonitas as coisas que ele escreveu, embora não entendesse. Pediu seu e-mail. E ele teve muito tempo para se arrepender de tê-lo passado, e o e-mail pessoal ainda por cima, o que a secretária não abria, devia estar cochilando quando fez isso, ele pensava. E foi então que tudo começou.

Ela passou a escrever todo o dia, e para contar coisas triviais. Se ele não tivesse respondido, a coisa teria parado por aí, o caso é que ele era educado, ou pedante. Professor Doutor em Antropologia, vivia insistindo com seus alunos para que nunca dispensassem um contato, por mais simples que fosse a pessoa, e se orgulhava por fazê-lo, então responder aqueles e-mails era uma forma de autenticar suas convicções. Precisava ser coerente com suas opiniões, dizia-se de si para si no seu pedantismo. E praticava sua coerência na forma de uma fingida cortesia. Mas para ela o importante era que ele respondia, e entendendo isso como um incentivo, continuava escrevendo mais e mais.

E as respostas dele eram invariavelmente que bom minha querida, fico contente por você, é isso mesmo, concordo, acho que você está certa, eram respostas nesses termos.

Se ela fosse menos inocente teria percebido que as respostas vinham num mesmo formato. Talvez ela até percebesse lá no seu íntimo, mas... gostava de escrever contando bobagenzinhas, e sonhando com o dia de conhecê-lo pessoalmente.

Você não imagina a quantidade de passarinhos que cantam aqui nas redondezas de onde eu trabalho, tem um que...

Sabe, essa manhã, coisa mais engraçada, um sujeito deu uma coxinha a um cachorro de rua, e o bichinho ao invés de comer ficava latindo pra todo mundo, defendendo a coxinha, achei tão legalzinho...

Cortei meus cabelos, mas só três centímetros, todo mundo disse que ficou bom.

Bobagens desse tipo.

Ele adivinhava que a maior parte senão todos os seus assuntos eram mentira, um motivo para puxar conversa, ou de se fazer de bacaninha para impressioná-lo, pensando bem, achava que os dois. Ela dizia que trabalhava numa instituição elegante da capital, mas ele não acreditava nem um pouco. Ela na verdade trabalhava sim, mas numa função humilde. Ele teve certeza disso quando ela fez considerações sobre um livro que não poderiam vir de alguém como ela, e de fato a pobre só tinha lido as abas e as críticas. Mas ele só respondeu que bom querida, você vai gostar muito desse autor, eu o conheci quando estive em Londres, abraços.

Uma esnobada básica...

E a coisa continuou. Ao saber que ele conhecia Londres e escritores famosos ela ficou ainda mais encantada, e inocentemente deu de sonhar, quem sabe... e achou que escrever era investir num futuro bom relacionamento e...e o resto... o resto não sabia. Escrevia.

Professor universitário dos mais graduados, publicando livros, dando entrevistas, conhecido em todo o país, recebendo correspondência do mundo todo, e lá estava ela, em sua caixa postal, a perguntar se ele tinha gostado de Tropa de Elite 2. Se ele também achava engraçada a roupa dos rapazes do comercial do cartão de crédito. A enviar letras de música e pedir sua opinião.

Gente, essa boba não para de escrever? O quê? Letra de Caetano? Pois se ele frequentava a casa de Caetano!

Olá querida, obrigado pela letra, Caetano é sempre Caetano não é? Abraços.

- O senhor tem certeza doutor? Mas quando será isso?

- A qualquer momento, filha. Quando médico chama paciente de filho a coisa é feia. Você mesma já está sentindo, não está?

- Mas tem operação, doutor?

- Sim... tem... eu vou colocar seu nome na lista de espera e...é aguardar.

- Lista de espera, aguardar? Mas o senhor não acaba de dizer que pode acontecer a qualquer momento? E o médico respondeu com aquele gesto vago de quem não tinha outra resposta diferente daquela. – É...

Certas pessoas quando dão de frente com um problema muito grande, ao invés de pensar no problema passam a pensar em outro, um substitutivo. Isso acontecia com ela. Ela não parou mais de pensar que precisava vê-lo, e urgente. O tempo corria contra ela.

Mas não queria contar, passou a insinuar, mas não era boa nisso.

Oi, tudo bom, então, quando é que eu posso te VER, ver negritado e em caixa alta. Perguntas desse tipo começaram a cair muito na caixa postal do professor.

Olá querida, qualquer dia desses acontece, estou sentindo você muito ansiosa a respeito desse assunto, não fique assim, as coisas acontecem quando têm de acontecer. Ele se sentia tão por cima que se dava ao luxo de doutrinar. Tinha a destreza que muitos têm, de responder certos e-mails no automático, já pensando na resposta ao seguinte, escrevia sem pensar. O próximo item da lista era um comunicado do gabinete do Reitor cancelando uma importante reunião, que resolveria demais umas questões suas, putz! E clicou aborrecido enviando para ela a resposta desinteressada do dia.

O que para ele era tão corriqueiro quanto dar bom dia a um subalterno cujo nome nem se sabe, era para ela a sua razão de viver. Ela não trabalhava com um computador, mas havia um à disposição dos funcionários menores, e ela chegava mais cedo só para ser a primeira a usá-lo.

Agora para ela era ainda mais importante. Não bastavam suas respostas, ela precisava vê-lo. Aquele sentimento a deixava um pouco confusa, não poderia ser amor, se eu nem o conheço? Mas ela gostaria muito de ser sua amiga, amiga de verdade, lá no fundo incomodavam aquelas respostas sem envolvimento, sem amizade. Impessoais. Mas, e quando o conhecesse, teria assunto com alguém tão importante? Mas ainda assim sentia que precisava muito vê-lo antes de... antes de.

Sabe, esse mês não paguei a conta de LUZ, acho que vou ficar sem LUZ.

Será que essa boba quer dinheiro emprestado? Era só o que me faltava, reveja seus gastos querida, estabeleça prioridades, elimine supérfluos, tenho certeza de que irá conseguir, abraços.

Abraços... Mas era justamente o que ela queria. Dar um último abraço olhando bem fundo nos olhos dele, olhos que imaginavam serem cinzentos, ela nem sabia ao certo o que eram olhos cinzentos, para ela era uma frase que lia muito nos romances que comprava em bancas de jornal. O que ela queria era apenas um abraço, um triste abraço de adeus. O adeus mais adeus que existe, sem nenhuma expectativa de volta. Na verdade ela sempre soube que não ocupava sequer um por cento de sua atenção, mas foi com a notícia da doença que se deu conta disso por inteiro, ao constatar que jamais usaria um computador, interrompendo assim essa frágil ligação, unilateral, que só existia por insistência dela. Por qualquer lado que se olhasse...que se olhasse... era uma questão de adeus.

Mas entre esses pensamentos, vinha o problema real, vinha o arrepio de medo do dia fatídico, o dia de não ver mais a luz. Passou a ter medo de dormir, na verdade era medo de acordar, ficava de olhos estatelados para o teto, luz acesa, e só dormia quando cansadíssima e vencida pelo sono, antes fazendo várias vezes o sinal da cruz e beijando o escapulário, ah, minha Virgem, meu Nosso Senhor, tende piedade de mim...

Continuava a escrever para ele, a cara cada vez mais enfiada na tela do computador do refeitório, mas chegou o dia em que a chamaram ao RH para comunicar que ela precisaria parar de trabalhar. Já está tudo certo, disseram com aquela cara de piedade, você irá receber uma pensão e depois...

- E depois...?

- Depois nada. Você irá receber uma pensão e não precisará mais trabalhar...

Olá, bom dia, tudo bem, sabe, adoro cinema, e fico pensando se um dia eu não puder mais VER os filmes que tanto amo, você já parou para pensar nisso?

Olá querida, você já pensou em comprar um DVD? Compre a prazo, é bem baratinho, filmes você compra piratas, baratos também, tenho certeza de que você irá conseguir, abraços.

Foi então que chegou seu último dia de luz. Aconteceu durante o dia e não durante o sono como ela pensava que seria. Estava na janela de seu quarto de pensão olhando para o céu quando...quando Deus apagou a luz. E ela entendeu, coração num pulo, que aquele céu ela não veria nunca mais.

Céu...azul...adeus...Deus...meus olhos...olhos...azuis...e as lágrimas escorriam de seu olhar vidrado.

Uma amiga anotou para enviar o que seria seu último e-mail. Ela quis que fosse uma poesia, mas não era boa nisso também, a amiga muito menos, e as duas adentraram a noite quebrando a cabeça, mas noite não era mais seu problema, era sua realidade.

Na manhã seguinte, o renomado professor, forte candidato à vaga que se anunciava na Reitoria de uma das universidades mais charmosas do país, que privava com cientistas, filósofos, artistas, escritores e intelectuais de todo tipo daqui e do exterior, recebeu em sua caixa postal uma mensagem que se afigurava anacrônica aos seus olhos aculturados com o mundo.

Olá meu caro amigo
Fiquei pensando comigo
Quanto queria te conhecer
Mas agora eu te digo

Preste atenção no que vou dizer
Guarde sempre consigo
Eu nunca mais vou te ver.

- An?!

Excelente deixa para dar um basta ele pensou. Chega de respostas. Finalmente ela entendeu, então está bem queridinha, nunca mais vou te ver também, olha o problemão, e riu intimamente: - E não é que eu adoraria que esse fosse o maior dos meus problemas? Estimada Professora Doutora Fausta, analisando seus posicionamentos... e ignorando a imensidão da tragédia pessoal da boba por detrás daquele poema bobo já deletado, ele continuou tranquilamente o seu dia.

E os e-mails não chegaram nunca mais.