na minha insanidade, achava que era só minha

Eu comecei a sacar que estava acabando quando você disse que esqueceu a jaqueta na sua mãe, cara, você adora aquela jaqueta, vive reclamando que a casa de sua mãe cheira a panela velha, jamais que deixaria sua jaqueta lá. Você nem se deu ao trabalho de disfarçar o tom de mentira da voz, e eu me fiz de sonsa, mas bem que estava sentindo vagamente uma ou outra roupa sua faltando, já deveriam estar na quitinete, que eu acabei descobrindo que estava alugada porque vi o contrato bem dobradinho no bolso da calça que você, mesmo beirando o fim do relacionamento, botou pra eu lavar como qualquer homem faz, sem remorso algum.

Então você me chamou para um papo de fim de relacionamento, mais uma vez usando de mentira, dizendo que queria almoçar na nossa praça de alimentação, aí foi a vez de eu não me fazer de sonsa, você sabe que eu odeio o barulho daquele lugar, a gente precisa gritar pra ser ouvido, acha mesmo que eu iria aceitar terminar anos de relacionamento rodeada de adolescentes devorando hambúrguer? Claro que não fui, e nem me dei ao trabalho de ligar, ficasse lá, tomando aquele chope sem graça que se toma quando se está só e de mau jeito.

Aí foi acompanhar você oficializando o fim, começou você desentranhando os livros, e eu numa decepção maior do mundo, porque se todos os livros como tudo o mais foram comprados pela gente juntos, então eles eram nossos, não poderiam jamais ser divididos. E assim foi também com os discos, que eu dizia que só serviam pra pegar poeira, mas era mentira, eu gostava muito, foi uma dor quase física ver você enfiando na mochila o Kronos com a The Beatitudes, amado!, como desentranhar aquilo de nós?

Não era maluco eu estar sofrendo por objetos, porque sabia que a dor maior, a real, viria quando você encostasse a porta, o desentranhamento de dois metros de você de meu apartamento e de minha vida, então vamos sofrer por partes, pensei, dolorida de ver o retângulo mais claro deixado pelas bandeirinhas do Volpi na parede.

Mas o problema mesmo eram as fotos. Essa mania de só se ter fotos digitais, e eu vivia querendo imprimir e emoldurar uma foto sua e o tempo pra fazer isso nunca aparecia. Verdade também é que eu queria que você me desse uma foto, minha mãe tinha uma foto do meu pai ainda mocinho na carteira, aquilo sim era romântico, ganhar uma foto, então eu fiz que fiz pra que você me mandasse uma foto por e-mail, aquela em preto e branco que fizemos de você usando meias, a que eu mais gostava, e quando você mandou eu disse "agora ela é minha, tá?",  achando que você estava entendendo o intrínseco da frase.

Mas tudo o que é ruim pode piorar. Hoje vi que você postou a foto, meu!, inteligente como você é, não posso acreditar que você não entendeu que a foto mesmo sendo de você e mesmo sendo digitalizada era minha, você deveria tê-la apagado, que foi o que eu fiz com o conto em quatro capítulos, super amador, que lhe fiz como presente de sei lá que data, enviei por e-mail e apaguei do Enviados e o original do Bibliotecas, presente é presente, achei que essas coisas a gente não precisava explicar.

Não vou ligar para reclamar, porque se eu lhe conheço um pouco e acho que conheço você já mudou de número, e mesmo que não tivesse mudado eu não ligaria, ou você não conhece meu orgulho? Tem também que não quero passar recibo de que estou dodói. Estou dodói. E por último não vou reclamar porque penso assim, se você não entendeu a liturgia da coisa, agora já foi, ou se você entendeu e fez pra me provocar, doeu mais ainda e não há nada que conserte. A esta altura do campeonato uma pá de gente nada a ver já copiou e salvou a foto que eu na minha inocência, ou antes, na minha insanidade, achava que era só minha.